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"A primeira Canudos foi destruída pelo fogo da guerra, a segunda pela água de Vaza Barris e a terceira vai se acabar no pó", diz a profecia. Mas o sertanejo não se rende. Em meio à inclemência da seca e ao descaso do governo ferderal, ele luta e soluções criativas são desenvolvidas.

É um momento fascinante do dia, o amanhecer nos sertões do Nordeste. Sem o orvalho da noite, a vida que estava em repouso sai de novo, seca. Vem aos pedaços, assuntando aqui e ali, lentamente, como os viventes daquelas paragens, nunca apressados. Aqui, em Alto Alegre, na antiga Canudos, o presente parece não caminhar para o futuro, teima em continuar vinculado ao passado e o nascer do dia tem um encanto especial no despertar da caatinga repleta de histórias das pelejas do povo sertanejo. A vida acorda com berros de cabras e bodes pastejando nas margens do açude de Cocorobó e quebrando o silêncio de uma fileira de cruzes fincadas na entrada do povoado.

Os crucifixos de madeira, cem no total, com os nomes de alguns dos seguidores de Antônio Conselheiro – Beatinho, João Grande, Pajeú, Maria Rita e Teresa de Alexandrino, entre outros –, reverenciam homens e mulheres que viveram e lutaram luta de morte no arraial de Belo Monte até serem massacrados pelas tropas do governo.

Cem anos depois, por falta de chuvas, a tragédia da Guerra de Canudos se atualiza nas águas baixas da represa e na secura da vegetação desse pedaço guerreiro do sertão da Bahia. No ambiente árido e rebelde, onde mandacarus e xiquexiques brotam vigorosos e verdes do solo pedregoso, a própria natureza entra em conflito e faz ressurgir na paisagem cenas do passado.

Antes do nascer do sol, num barco, dois jovens pescadores – Rogério Freitas de Souza, de 16 anos, e seu irmão Leandro, de 14 anos – recolhem a rede deixada no açude no dia anterior e contemplam, no horizonte, a Canudos guerrilheira vindo à tona, afrontando a República e enfrentando o Vaza Barris: o rio que em 1967 afogou Belo Monte.

Do açude com pouca água emergem o arco da igreja do antigo arraial, as ruínas do cemitério, os pilares da capela que Conselheiro estava construindo quando começou o conflito. Mas, o resultado da pescaria, uma tilápia com menos de meio quilo, é insuficiente para alimentar a família de Rogério e Leandro, que nasceram e moram com os pais e dois irmãos no Alto Alegre, na Canudos velha, e sobrevivem do pescado, a exemplo de 70 famílias do lugarejo. Resignados, os meninos devolvem a rede à represa na esperança de mais peixes no outro dia.

Para essa gente, além dos escombros da guerra, a falta de chuvas faz vir à tona o cenário dramático da seca que castiga mais uma vez a população de 18 mil habitantes da antiga e da nova Canudos e 22 milhões de pessoas da região do semi-árido nordestino. Até agosto passado, a seca já tinha provocado o desespero e a decretação do estado de calamidade pública em mais de 1.207 municípios do Nordeste, em 140 outros de Minas Gerais e em 27 do Espírito Santo.

A seca desnuda a realidade perversa da falta de educação, saúde, renda, terra, alimentação e até de água potável para a população de muitas cidades e povoados do interior nordestino. A desnutrição e a sede saciada em águas poluídas fez a mortalidade infantil aumentar. Em algumas cidades do sertão do Ceará, como em Monsenhor Tabosa, por exemplo, as mortes de crianças subiram 180%, passando de 53,6 por mil nascidas vivas no primeiro semestre de 97 para 150 por mil no mesmo período de 98.

Na última seca, em 1993, 11,7 milhões de pessoas foram afetadas e mais de 2 milhões se inscreveram nas "frentes de emergência". Agora, segundo a Sudene, 70% dos 1.787 municípios do Nordeste (incluindo o norte de Minas e o Espírito Santo) estavam em situação crítica e mais de 10 milhões de pessoas da área rural do semi-árido estavam em dificuldades. De acordo com Mário Jorge, chefe da Coordenação de Defesa Civil da Sudene, em termos de área, a seca atual é equivalente à de 1993 e só perde para a que ocorreu entre 1979 e 1983: "É uma seca de grandes proporções, a redução de chuvas é superior a 50% na sua distribuição temporal e espacial, as safras de milho, feijão e mandioca quebraram entre 50% e 100%".

Em janeiro passado, o flagelo da fome já estava instalado. Mesmo avisado com antecedência pelos técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que apontavam desde agosto de 1997 uma redução drástica das chuvas no Nordeste e previam o prolongamento da estiagem em 1998, o governo de Fernando Henrique só decidiu tomar providências em abril, depois que jornais e televisões mostraram pessoas famintas realizando saques a caminhões, supermercados e feiras livres. O presidente da República procurou contornar a tragédia distribuindo cestas básicas, alistando o povo nas "frentes produtivas" e tentou atribuir a desordem, que a própria omissão do governo provocara, aos sindicalistas rurais e aos integrantes do MST, que defendem o direito do povo pegar alimentos.

Em agosto, segundo a Sudene, 1,1 milhão de pessoas estavam empregadas nas "frentes" recebendo R$ 80 mensais – R$ 65 do governo federal e R$ 15 dos governos estaduais – correspondentes a 27 horas de trabalho semanal. Mário Jorge informa que o programa de distribuição de alimentos do Comunidade Solidária estava destinando ao Nordeste, 2,5 milhões de cestas básicas com 19 quilos de alimentos e dois litros de óleo.

O prejuízo da fome

No passado, somente com o atendimento às populações alistadas nas "frentes" (de serviço, de trabalho, ou de emergência) o governo gastou nas secas de 1958, 70, 76, 79-83 e 93, o equivalente a 10,077 bilhões de dólares, uma média de 1,459 bilhão de dólares por ano de seca, diz o economista e agrônomo Otamar de Carvalho, autor do livro A economia política do Nordeste, seca, irrigação e desenvolvimento. Com a seca de 1998, a Sudene estima vir a gastar 1,739 bilhão de dólares, que somados aos gastos realizados com as secas de 1958 a 93, totaliza um dispêndio de 11,8 bilhões de dólares, a preços de maio de 98.

Otamar de Carvalho diz que as perdas de safra representam, no mínimo, outros 12 bilhões de dólares. A seca de 70, por exemplo, produziu uma contração no PIB da economia nordestina de 1,5 bilhão de dólares, equivalente a quase três vezes o valor dos recursos gastos nas "frentes de serviço", naquele ano. A seca de 98, segundo estimativas da Sudene, produzirá perdas sobre a produção agropecuária de 4,086 bilhões de dólares: "O prejuízo poderia, em boa medida, ter sido consideravelmente minimizado se Estado e sociedade (no Brasil e no Nordeste) estivessem realmente preocupados, trabalhando para promover o fortalecimento da economia do Nordeste como um todo e de suas áreas semi-áridas em particular", diz o economista.

Hoje, como no passado, as medidas do governo federal apenas amenizam a miséria das pessoas que vivem na área rural do semi-árido nordestino, diz Expedito Rufino, assessor da Contag e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape): "Fizemos dois documentos ao presidente da República exigindo ações de emergência e permanentes. Não cestas básicas e sim um programa de renda mínima com frentes de trabalho que recuperassem e fizessem obras pequenas como construção de adutoras, chafariz etc. Os movimentos sociais reivindicaram que 2 milhões de pessoas fossem trabalhar nessas frentes e que uma parte delas tivesse a possibilidade de ser capacitada ou alfabetizada. Até junho, apenas 785 mil pessoas estavam alistadas e recebiam sem fazer nada".

A Contag reivindicou financiamento para os agricultores familiares, mas até agosto, apenas 10% do crédito anunciado pelo governo tinham sido efetivamente liberado, diz a Contag.

Na Bahia, onde existem 500 mil pequenas propriedades no semi-árido com até 200 hectares, os técnicos da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), que sucedeu a Emater, encaminharam ao Banco do Nordeste do Brasil 110 mil projetos solicitando financiamento do programa especial para combate à estiagem, no valor de R$ 464,9 milhões. Apenas 38 mil cadastros foram aprovados e ainda assim, até junho, só 6 mil créditos, num total de R$ 60 milhões, foram liberados.

O lucro dos ricos

A maioria dos investimentos públicos do governo FHC é destinada aos grandes projetos de irrigação, de empresas que cultivam principalmente frutas na região do rio São Francisco, em Petrolina, Juazeiro e outros pólos de irrigação, enquanto a agricultura de sequeiro não tem incentivo, diz Manuel Correia de Andrade, professor da Universidade de Pernambuco, especialista em geografia econômica. Na sua opinião, a irrigação é importante na produção de alimentos, mas, "insuficiente enquanto solução para todo o Nordeste, porque apenas 8% no máximo da área do semi-árido pode ser irrigada, segundo levantamento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)".

Estudando a realidade nordestina há 50 anos, Manuel Correia de Andrade explica que a seca é um fenômeno natural, acontece periodicamente e a principal causa é o fato da região estar localizada num ponto que é atingido perifericamente por três massas de ar diferentes: a equatorial continental que se forma na Amazônia, a tropical atlântica que se forma no Antártico sul e a intertropical formada no Atlântico Norte. Há ainda a interferência da massa polar antártica que sobe pela costa, provoca as chuvas no Sudeste e vai até a Paraíba. Quando essas massas de ar chegam no semi-árido nordestino já estão fracas e são insuficientes para provocar chuvas, que em alguns anos escasseiam completamente. Além disso, quando ocorre o El Niño – como em 1997 –, junto com outro fenômeno, chamado Dípolo do Atlântico, a probabilidade de ocorrência de uma seca nos meses subseqüentes é de 95% e isso se confirmou.

O Polígono das Secas não é um deserto e sim uma região semi-árida que, segundo os critérios da Sudene, totaliza uma área de 950 mil quilômetros quadrados, dos quais 43 mil são de serras, vales úmidos e sub-úmidos e é considerada a mais densamente povoada do mundo: 26 milhões de pessoas moram no sertão e no agreste nordestinos, das quais 10 milhões na zona rural. A parte maior e mais seca do semi-árido é o sertão, onde a estação de chuva – de três a cinco meses de duração – ocorre a partir de novembro. No agreste, que vai do Rio Grande do Norte até a Bahia e abrange uma faixa de transição entre a região úmida da zona da mata e o sertão, a estação de chuva dura de três a cinco meses e ocorre a partir de abril.

As precipitações médias anuais no semi-árido variam de 400 a 700 milímetros, bem abaixo da média de 1.500 a 2.200 milímetros registrada na zona da mata.

Historicamente, diz o professor, os períodos de seca são cíclicos: secas menores e localizadas de quatro em quatro anos e maiores que atingem todo o semi-árido em ciclos de onze anos. Mesmo quando chove, as precipitações são irregulares no tempo e no espaço e muito localizadas. Além disso, enquanto 50% da área é de terrenos sedimentares, com boa capacidade de armazenamento de águas subterrâneas, a outra metade é de solos com embasamento cristalino, com acumulação de água, geralmente salobra, apenas nas fraturas.

A terceira tragédia de Canudos

Uma parte dos 3 mil quilômetros quadrados da área de Canudos está sobre o cristalino. Aqui, a pluviosidade média anual é de 454 milímetros. O povo do lugar não via chuvas desde 1997, sentiu um gostinho de dois dias em janeiro passado e depois disso apenas a garoa.

O prefeito João Ribeiro Gama dá os números da tragédia: as águas da represa de Cocorobó estão reduzidas a 50 milhões de metros cúbicos, 23% da sua capacidade e o que resta nos outros três pequenos açudes só dura até novembro.

Mesmo quando chove, a agricultura de milho, feijão e mandioca produzida pelas 11 mil pessoas que moram na roça mal dá para o auto-sustento familiar. Segundo o prefeito, se não chover até dezembro, nem as 159 famílias da Cooperativa dos Irrigantes poderão continuar irrigando suas lavouras de banana, quiabo, tomate e verduras que vendem na feira livre da cidade. Para o "mercado" não faz muita diferença. Afinal, o município é abastecido com arroz, farinha e feijão que vêm de Sergipe e hortaliças de São Paulo. Apenas a carne de bode é do lugar.

Além dos 800 aposentados rurais, só têm rendimento fixo os 200 empregados ativos e inativos do que restou do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e os 440 funcionários da prefeitura, que ganham em média dois salários mínimos. O orçamento de Canudos é de R$ 200 mil mensais, dos quais R$ 90 mil são gastos com pessoal e outros R$ 20 mil vão para o pagamento de cinco carros-pipa que abastecem a área rural porque as cisternas e aguadas secaram. O dinheiro gasto com a água faz falta aos serviços públicos de educação, saúde e saneamento básico.

Pelo menos 40% da população é analfabeta; a única maternidade que existe é particular e a prefeitura administra um ambulatório que conta com oito leitos e a abnegação de quatro médicos. Os problemas de saúde da população se agravam por falta de alimentação e condições de vida precárias. Doenças como a tuberculose, hipertensão, desnutrição e diarréia continuam matando e o índice de mortalidade infantil é de 50 crianças por mil nascidas vivas.

"Canudos é discriminado pelos governos estadual e federal", reclama o prefeito, eleito pelo PSDB numa coligação com o PT vencendo o candidato do PFL. Embora do mesmo partido do presidente, o máximo que João Ribeiro conseguiu, depois que decretou a calamidade pública, foi alistar 713 pessoas nas "frentes produtivas" – e não 1.500 como pretendia – e a distribuição de 2.494 cestas básicas e não as 4.300 necessárias.

Em Alto Alegre as dificuldades são iguais, diz Manoel Travessa, o homem mais importante do povoado. Alto e forte, pele morena e estorricada pelo sol, chapéu de couro, Travessa conta que foi um dos primeiros a repovoar o lugar, no início da década de 70, depois que o governo militar fez uma represa e em 1969 inundou a Canudos verdadeira (reconstruída após o conflito) com o argumento de que implantaria projetos de irrigação no lugar e transferiu o povo para Cocorobó, a 30 quilômetros do antigo arraial.

Misto de pescador, agricultor e pequeno comerciante, Travessa chegou ali em 1971 e construiu sua casa num morro às margens do açude que engoliu o arraial do Conselheiro. Com o tempo se interessou pela história da guerra, fez uma capela e um "museu", que foi formado com peças da luta em Canudos que o povo achava pelas trincheiras: moedas, espingardas de pederneira, uma barricada alemã de carregar pólvora, balas, armas, utensílios do conflito.

Da simples casa do Travessa, o lugarejo virou arraial com 400 moradores e é distrito do município da nova Canudos, antigo Cocorobó, emancipado de Euclides da Cunha em 1985. Na época, Travessa foi eleito vereador pelo PTB, passou por vários partidos e hoje exerce o quarto mandato pelo Partido Social Liberal (PSL); é o chefe político e o único empresário do povoado.

Ele diz que o lugar está mais atrasado do que há 100 anos e que era para todo mundo ter uma bomba dd’água, mas o projeto de irrigação não foi adiante. E não esquece da profecia do avô Mundu: "A primeira Canudos foi destruída pelo fogo da guerra, a segunda pela água do Vaza Barris e a terceira vai se acabar no pó".

A tragédia e a valentia de Canudos pelejando para não ser banido pela terceira vez, é um pequeno retrato do que acontece no sertão e no agreste nordestinos, onde o povo luta pela sobrevivência com suas próprias forças e o apoio dos seus sindicatos, movimentos sociais e de algumas organizações não-governamentais.

Na fronteira da fome

Bom Jardim, no agreste pernambucano, está localizado a 83 quilômetros de Recife e tornou-se município há 105 anos. A população soma 37 mil habitantes, dos quais 25 mil espalhados em 90 comunidades rurais.

Em estado de calamidade pública, o município enfrentava uma seca desde agosto do ano passado. As safras renderam apenas 10%, a barragem de Pedra Fina que abastece a cidade quase secou e as cisternas e poços da maioria das comunidades rurais secaram. O abastecimento de água está sendo garantido pelos carros-pipa do governo de Pernambuco, 3 mil cestas básicas são distribuídas mensalmente e 2.952 pessoas foram alistadas nas "frentes produtivas".

Na seca de 93 foram abertas 4 mil vagas nas "frentes" e agora ficou gente de fora, diz Fátima Maria de Lima, secretária de política agrícola do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A escolha dos alistados foi definida pela Comissão Municipal da Seca, instituída por reivindicação dos movimentos sociais e obrigatória em todos os municípios pelo decreto presidencial, que prevê a participação paritária de representantes do prefeito, de líderes do governo e da oposição na câmara municipal, técnico da Emater (representando o governo do estado), agente comunitário de saúde, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, das igrejas evangélicas e católica e de entidades e organizações não-governamentais.

Aqui, diz Fátima Maria, a comissão foi criteriosa na escolha dos alistados porque o sindicato tem 5 mil associados, é atuante, faz reuniões nas comunidades e o povo pressiona o prefeito Fabiano Rufino (PFL). De qualquer forma, como o governo federal não quis atender a todos os flagelados, só permitindo uma pessoa alistada por família e apenas naquelas em que não há aposentados rurais e que não têm qualquer tipo de renda monetária, só foram para as "frentes produtivas" uma parte dos pobres mais miseráveis.

A pequena grande mulher

Metro e meio de altura, boné na cabeça, camisa e calça encardida, Maria Beatriz da Conceição, de 54 anos, é uma mulher miúda que sobrevive com dificuldades num roçado também miúdo de 2,5 hectares, em Umari, distrito de Bom Jardim, onde 500 outros pequenos produtores rurais vivem na mesma situação.

Pequena no tamanho, a mulher é grande na valentia, labuta na roça desde menina, casou e quando o marido foi embora e ela virou "viúva da seca" – a exemplo de muitas outras mulheres do povoado – vestiu roupa de homem e deu conta de tudo. Criou quatro filhos e enfrenta a vida seca com coragem. Desde abril, ela não tinha mais água na propriedade, a cisterna de 20 mil litros estava sendo abastecida pelo carro-pipa e junto com 150 outros pequenos agricultores atravessou a fronteira da fome e foi parar na "frente produtiva". Há dois meses, Beatriz estava recebendo R$ 80 e uma cesta básica com arroz, farinha, feijão e fubá.

Além da terra, toda sua fortuna é uma novilha, uma vaca magra, três galinhas, três pintos, duas cabras, duas cabritas e dois bodes, que cria de meia com a vizinha. Beatriz dá duro no pequeno roçado e há três anos começou a implantar, num pedacinho de terra, o sistema agroflorestal. Primeiro o milho, feijão e mandioca, depois cará, guandu, coco, banana, goiaba, caju, manga, graviola, ingá, seriguela e árvores, e cultiva capim elefante e palma para os animais.

O sistema agroflorestal está sendo difundido no município pelo Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, uma organização não-governamental que sucedeu ao Centro Josué de Castro e que desde 1995 trabalha com um grupo de 180 agricultores, em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. O agrônomo José Aldo dos Santos, responsável pelo programa de políticas públicas do Sabiá, explica que a entidade tem o apoio do Ministério do Meio Ambiente, é financiada por organizações internacionais e incentiva o agricultor a manejar a terra em cooperação com a natureza buscando melhor produtividade e diversidade de produtos com culturas resistentes à estiagem, que recuperem o solo, garantam pasto para os animais e a alimentação humana.

A diversidade de produtos é fundamental porque o minifúndio prevalece no campo – 2 mil dos 2,5 mil estabelecimentos rurais são propriedades com menos de cinco hectares e o povo consegue produzir no máximo para o autoconsumo e assim mesmo quando as chuvas estão normais.

Maria Beatriz deixa brotar um sorriso quando conta que no ano passado colheu os frutos do trabalho: banana, cará, milho, feijão e mandioca. Comeu de tudo, fez canjica, cuscuz, bolo de fubá assado no forno de brasa, vendeu cará, guandu, feijão de porco e apurou R$ 80. Essa foi toda a renda monetária que a mulher conseguiu no ano. Em 1998 não apurou nada.

De qualquer forma, o sistema agroflorestal melhorou as condições da roça e se a natureza for generosa e permitir boa colheita na próxima safra, ela pretende levar o excedente dos produtos ao mercado, como já fazem quinze pequenos agricultores que trabalham com a orientação do Sabiá e vendem alimentos sem veneno, adubo químico e produzidos sem queimadas, numa feira agroecológica em Recife, apurando dois salários mínimos mensais.

A praga do latifúndio e a miséria no minifúndio

Vender a produção no mercado para ter renda monetária é fundamental para os pequenos agricultores sobreviverem com dignidade. Mas, para isso, a colheita dos "anos bons" tem de ser suficiente para manter a família nos "anos ruins", diz a economista Tânia Bacelar, que trabalhou 30 anos na Sudene, foi secretária de Planejamento e Fazenda do segundo governo de Miguel Arraes e hoje é professora no Mestrado de Geografia, na Universidade Federal de Pernambuco: "Grande parte da população não acumula e não guarda a colheita dos ‘anos bons’ para os períodos de seca porque sua capacidade de gerar excedente é reduzida".

Tânia Bacelar lembra que a propriedade típica do semi-árido é o latifúndio e a atividade econômica predominante é a pecuária extensiva, que permite o consórcio com a agricultura. No passado, os fazendeiros faziam a rotação das pastagens com o plantio de algodão arrendando a terra ao pequeno produtor parceiro, que além de plantar a fibra e assegurar uma renda monetária mínima, fazia sua reserva de alimentos plantando um canto de milho e de feijão: "Na hora que recebia o algodão, o fazendeiro fazia a conta, descontava a semente, o adubo, o dinheiro emprestado e o que sobrava para o parceiro era quase nada. De 1980 para cá, com a crise do algodão, provocada pela praga do bicudo, a situação se agravou e acabou com a pequena renda monetária dessa gente".

"A maioria das pessoas que está nas ‘frentes’ ou não tem terra ou tem um minifúndio, que não é capaz de dar renda", diz Tânia.

Uma propriedade para ser viável na área de sequeiro precisa ter no mínimo 100 hectares, segundo a Embrapa. Mas, 60% das propriedades da região ocupam apenas 9% das terras. Por isso, diz a economista, a estrutura fundiária tem de ser alterada por uma reforma agrária nos latifúndios e a ampliação dos minifúndios.

Mas os grandes fazendeiros e políticos conservadores fomentam a "indústria da seca", se beneficiam de recursos federais para construção de açudes em seus imóveis rurais ou abertura de estradas passando por suas fazendas, manipulam as comissões da seca para controlar a distribuição de alimentos à população faminta e não querem mudanças. E quando suas propriedades improdutivas são ocupadas por famílias de sem-terra, eles contam com a ajuda de alguns juízes para perseguir, prender trabalhadores e lideranças dos movimentos sociais que lutam pela reforma agrária.

Juiz do mato

O povo sertanejo reage contra a injustiça e São Bento do Una, município no agreste pernambucano, onde metade dos 45 mil habitantes ainda mora no campo e a calamidade pública foi decretada por causa da seca, é palco de um conflito. No centro da cidade, 600 pessoas concentradas em frente ao Fórum cantam músicas de combate e protestam contra as prisões do coordenador do MST em Pernambuco, Jaime Amorim, e dos trabalhadores rurais Cláudio Jorge de Oliveira e Carlos Roberto dos Santos, encarcerados por decisão do juiz Gilvan Macedo dos Santos.

A confusão começou em abril, depois que 120 famílias de sem-terra, que ocupavam a propriedade do fazendeiro Honorito Cabral, foram despejadas por ordem do juiz e os policiais tomaram as lonas, ferramentas, panelas e as cestas básicas que os sem-terra conseguiram com o governador Arraes. Após tentar, sem êxito, reaver os alimentos, os trabalhadores reocuparam a fazenda e Gilvan Macedo mandou prender todos: 42 homens, 60 mulheres e crianças. Por determinação do Tribunal de Justiça de Pernambuco, os sem-terra foram libertados, mas Cláudio Jorge e Carlos Roberto continuaram presos e já estavam encarcerados há 117 dias, quando o juiz também decretou a prisão preventiva de Jaime Amorim, que mesmo não estando na ocupação era acusado de ser responsável pelos incidentes e no dia 19 de agosto foi aprisionado em Caruaru.

As prisões dos sem-terra estavam relacionadas à pressão do governo federal que acusava o MST de incitar os saques. O ministro da Justiça, Renan Calheiros, já tinha declarado querer a prisão dos trabalhadores ligados ao movimento e somente em Pernambuco, onde ocorreram 35 saques até agosto, 68 pessoas foram presas e 74 estão sendo processadas.

Jaime Amorim não se abateu na prisão, falou sobre a reforma agrária para os presos e disse que o governo FHC é responsável pelo flagelo da seca: "Previnimos desde o ano passado que não havia acumulação de água no Nordeste, mas o governo dizia que não havia problema e não tomou medidas preventivas".

A marcha do MST contra a fome, que chegou ao Recife em 17 de abril, chamou a atenção da imprensa nacional e internacional sobre a seca, o povo já estava desesperado e aconteciam saques no interior. A Contag se mobilizou, houve manifestação da CNBB apoiando o direito dos flagelados pegarem alimentos e só então o governo prometeu cestas básicas, "frentes produtivas" e resolveu uma pequena parte do flagelo, diz o líder dos sem-terra. A solução dos problemas provocados pela seca e o desenvolvimento do Nordeste dependem de medidas de emergência, que incluem obras hídricas para garantir água para produção agrícola, consumo humano e animal, mas também, diz o coordenador do MST, de ações permanentes e a reforma agrária é principal delas.

No confronto, o tempo esquenta em São Bento do Una. Acampados na frente do Fórum, os trabalhadores exigem que seus companheiros sejam libertados e o juiz, "protegido" por dezenas de soldados, continua irredutível dentro do prédio. Na rua, mulheres e homens de mãos calejadas batem palmas e gritam palavras de ordem.

Na mesa do magistrado, dezenas de fax de várias partes do mundo protestando contra as prisões. Até o presidente do Tribunal de Justiça do estado, Etério Galvão, critica publicamente o juiz e diz que sua decisão era ilegal e atabalhoada. No dia 22 de agosto, Jaime Amorim é libertado por decisão do Tribunal de Justiça, que dois dias depois também mandou soltar Cláudio Jorge e Carlos Roberto.

Quando a notícia chega em São Bento do Una, os sem-terra suspendem o acampamento e reiniciam a "marcha dos excluídos" que haviam interrompido quando começou a contenda. Nas estradas por onde esse povo caminha, muitas famílias conquistam seu pedaço de chão. No sertão e agreste de Pernambuco já são 21 os assentamentos do MST e em Caruaru há mais três.

Terra dividida

Na fazenda Normandia, de 568 hectares, Luiz Soares da Costa labuta de sol a sol na terra conquistada por ele e quarenta famílias. Enquanto corta palma para o gado diz, levantando o facão, que a terra foi dividida em pedaços iguais e que coube a cada família uma gleba de dez hectares: "A Normandia era de José Tavares, que mora em São Paulo e deixou a fazenda abandonada. Foram quatro anos de luta, várias ocupações e despejos, até que o Incra, em 1996, desapropriou o imóvel.

Tocador de boiada do pé da Serra da Guarita, Luiz Soares sempre trabalhou de empregado para os fazendeiros do lugar e só sabe assinar o nome. Ele já tinha desistido da roça e estava há dois meses em São Caetano (SP), quando soube da luta pela reforma agrária. Voltou para Caruaru, entrou para o MST e junto com outras famílias ocupou a terra improdutiva e começou a construir uma nova vida: "Hoje temos estudo, trabalho e estamos de barriga cheia".

A água para consumo humano vem de um poço artesiano que a Emater construiu e, há 40 dias, o Incra liberou o recurso para os assentados fazerem poços amazonas e barreiros nas suas glebas. Mas as famílias precisam brigar para o governo liberar os financiamentos: "Há 60 dias ocupamos a agência do Banco do Nordeste para receber o dinheiro do custeio que estava preso".

Luiz Soares preferiu não cultivar milho e feijão, pegou os R$ 1.080 do fomento comprou cinco vacas e outros R$ 1 mil, que recebeu do custeio para plantar algodão, também empregou em gado. Já tem um rebanho de oito cabeças. Como o pasto está fraco, ele suplementa a alimentação dos animais com cama de galinha e palma. Afinal, como diz, o sertanejo precisa saber conviver com a seca.

As lições da Caatinga

Em Ouricuri, município encravado no "Polígono das Secas" em pleno sertão do Araripe, em Pernambuco, o clima é muito seco e nenhuma umidade há no ar. À noite a atmosfera, embora fria, não apresenta sequer uma gota de orvalho. Por isso, os sertanejos fazem preces ao padroeiro São Sebastião e ao mesmo tempo ensinam e aprendem lições de convivência com a natureza no Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e Instituições Não-Governamentais (Caatinga). A entidade está na região desde 1986. 80% dos seus recursos financeiros vêm de organizações internacionais e o restante de alguns projetos com a Embrapa, com o Comunidade Solidária e de um programa de capacitação com o governo estadual.

"Nossa missão é buscar alternativas de convivência no semi-árido porque a seca não muda, ou corre dela ou enfrenta", diz o pernambucano Saulo Jorge de Araújo, um dos agrônomos da entidade: "Trabalhamos com 1.358 famílias de cem comunidades rurais de oito municípios da região e nossa atuação inclui a construção de barreiro de trincheira, cisterna de placa, cacimbão e barragem subterrânea, desenvolvimento de recursos genético na criação de caprinos, ovinos, galinhas e abelhas, banco de sementes, capacitação, educação, apoio comunitário, familiar e uma escola rural".

Ele diz que a seca desnuda uma situação de desespero da população por falta de políticas sociais e quando o sertanejo pede obras, os políticos pensam em grandes projetos. Inventaram as grandes barragens, gastam milhões de reais e só atendem aos mais ricos: "A Caatinga está demonstrando que trabalhando com tecnologias mais baratas e adaptadas, o agricultor consegue reestruturar sua propriedade com água e sistema produtivo".

A força do mandacaru

Valdemar Vitorio de Alencar é um sertanejo esguio e forte, chapéu de couro sobre os cabelos grisalhos e orgulhoso porque consegue garantir, mesmo na seca, a alimentação de 30 cabeças de gado e de 30 cabras com a macambira, palma e principalmente com o mandacaru: "Aqui nesse sertão a gente só vê tempo ruim, mas de fome meu gado não morre".

Vaqueiro desde menino, Vitorio é dono do sítio Lagoa do Urubu, de 45 hectares, onde toca a vida com a mulher e três dos sete filhos que continuam trabalhando na roça: "Em 1998 pegamos a oportunidade de uma chuva e colhemos 50 sacas de feijão, mas não deu safra de milho, que todos os anos rende outras 50 sacas".

Determinado, ele encara a seca com menos dificuldade porque trabalha há dez anos com as tecnologias difundidas pela Caatinga, garante a alimentação dos animais com seis hectares de palma, um outro tanto de mandacaru e seis hectares de pasto nativo. Através de calhas de zinco instaladas na beirada do telhado da casa, a água das chuvas é captada, armazenada numa cisterna de placa e a família de Valdemar Vitorio tem o que beber nos períodos de estiagem.

Foi um pedreiro que fazia piscina em São Paulo e voltou para o Araripe, que inventou a tecnologia da cisterna de placa, uma das mais avançadas em captação de água de chuvas; vaza menos e é barata, diz o agrônomo Saulo Araújo: "Uma cisterna com capacidade para 15 mil litros custa R$ 350 e é fácil de fazer".

O papel da Caatinga é construir referências para as políticas públicas, diz o técnico lembrando que o Nordeste tem 2,4 milhões de propriedades rurais e 89% -- 2,1 milhões de imóveis – são de até 50 hectares e 1 milhão não tem recursos hídricos. "Se o governo federal quiser pode fazer um milhão de cisternas de placa nessas propriedades rurais e vai gastar R$ 350 milhões, equivalente a 5% dos R$ 7 bilhões do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

O governo Arraes entusiasmou-se com a proposta e está construindo 10 mil cisternas de placa e 5 mil barragens subterrâneas. E a prefeitura de Ouricuri, através de um convênio com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), está fazendo 115 cisternas de placa, poços profundos com seis dessalinizadores e sete cacimbões no município. Ainda assim, insuficientes para resolver o problema da falta de água, diz João William Rocha de Alencar, secretário de Agricultura de Ouricuri e presidente da Comissão Municipal de Ações Emergenciais de Combate à Seca.

Água salgada e saques

Depois da seca de 93, a quantidade de chuvas em Ouricuri diminuiu de 600 milímetros, em média, por ano, para 420 milímetros. As duas barragens que abastecem a cidade estão com 10% dos 58 milhões de metros cúbicos que podem acumular e o teor de sal é elevado. Embora o município de 48 mil habitantes ainda seja principalmente rural, 18 mil pessoas já vivem numa área urbana bastante movimentada. Por isso, o consumo de água na cidade ultrapassa 100 mil litros diários.

Mesmo com racionamento na cidade e a utilização dos carros-pipa do governo estadual para abastecer a zona rural, apenas 30% das necessidades da população são atendidas. Quem pode, compra água que os carros-pipa particulares trazem do São Francisco, diz William: "Pago R$ 4 por um tambor de 200 litros, coloco cloro e uso para beber".

No campo, os pastos secaram, os animais estão sendo vendidos, o preço de uma vaca adulta, de 400 quilos, desabou de R$ 450 para R$ 150 e deixaram de ser colhidas 90% das safras de milho, feijão e mandioca. A quebra da colheita fez o preço da saca de feijão saltar de R$ 80 para R$ 160.

O estado de calamidade pública foi decretado pelo prefeito Horácio de Melo Sobrinho (PSB) e três caminhões foram saqueados por 80 famílias de sem-terra. João William explica que a prefeitura negociou com os trabalhadores a liberação de uma carreta de boi em troca de 120 cestas básicas: "Não podemos incitar o saque. Mas, é direito do cidadão pegar alimentos quando sua família está faminta".

Durante a seca de 93 aconteceram muitos saques na feira e na época o MST não estava em Ouricuri, esclarece o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Expedito Rodrigues da Silva: "Se não chover até dezembro, acontecerão outros saques porque o agricultor que não colheu e vê os filhos passando fome vem pegar comida".

Três mil pessoas estão nas "frentes produtivas" e houve até ameaça de morte nas filas de alistamento. O município estava recebendo 5.618 cestas básicas e a necessidade é de 10 mil.

Solução debaixo do chão

Gaudêncio Teodoro da Silva é conhecido na comunidade rural de Lagoa Comprida como Zé Preto e respeitado por ser um dos poucos produtores que não precisa de cesta básica e da "frente produtiva" para sobreviver. Mesmo na seca, o homem consegue o sustento para ele, a mulher e nove filhos em 42,2 hectares, onde planta feijão, milho, algodão, banana, caju e goiaba, cria nove cabeças de gado, 20 cabras e produz na apicultura 200 litros de mel por ano. Além de armazenar a água em duas cisternas de placa, ele construiu três barragens subterrâneas que garantem uma área úmida de um hectare, onde colheu, em 1998, 17 sacas de feijão, cinco de milho, caju, banana, acerola e pinha.

A tecnologia da barragem subterrânea foi desenvolvida pela Embrapa e sua construção é simples: basta cavar um buraco até a rocha com largura de 60 centímetros e 30 metros ou mais de comprimento, impermeabilizar as paredes com argila compactada ou lona plástica e tampar com terra. Depois que chove, a água é represada no subsolo, onde forma-se um aluvião que deixa a terra úmida até a superfície. A barragem custa R$ 400 é financiada pela entidade e fundamental para o agricultor ter uma reserva de alimentos e enfrentar os períodos de seca.

Os técnicos da Caatinga entendem que as culturas de sequeiro e a pecuária com ovinos e caprinos são as melhores opções no sertão e incentivam o agricultor a melhorar a capacidade de suporte dos pastos e enriquecer a área com mandacaru e outras forrageiras adaptadas ao clima. Esse sistema aumenta a capacidade das pastagens de meio animal para 1,5 animal por hectare, garante o agrônomo.

Ao mesmo tempo, a entidade fomenta o melhoramento genético do plantel de caprinos com a utilização de raças adaptadas ao clima. Os técnicos foram buscar a tecnologia de criação na Embrapa e os animais em Taperoá, na Paraíba, na fazenda do pecuarista Manoelito Dantas, que é um exemplo de dedicação e de como se deve tocar a atividade rural no semi-árido.

O cerco do diabo

Numa das paredes da sala do casarão, a fotografia de Maria Bonita e Lampião. Ao lado, um quadro com os brasões da família e numa outra parede, os desenhos de Ariano Suassuna. A escolha da decoração não é apenas estética e afetiva. É que além de criar vacas, cabras e ovelhas em meio a aroeiras, angicos, juremas, juazeiros, umbuzeiros e baraúnas, árvores que dão frutas e boa comida para os animais, Manoelito Dantas também admira a valentia de quem resiste aos cercos que nem o diabo agüenta. Afinal, durante mais de vinte anos, Maria Bonita e os cabras de Lampião demonstraram coragem e furaram a bala os cercos das "volantes", até serem derrotados.

Manoelito Dantas, um engenheiro civil que trocou uma próspera profissão e a vida confortável na cidade grande pelo sertão do Cariri paraibano, também enfrenta com bravura, há quase 30 anos, o cerco de várias secas. Conseguiu manter seu rebanho, que totaliza hoje 3 mil cabeças, e fez da fazenda Carnaúbas, de 960 hectares, uma propriedade viável e adaptada ao clima seco.

A ousadia de buscar o novo é marcante nesse pecuarista de 61 anos, que trabalhou com Celso Furtado, na Sudene, até o dia do golpe militar, quando a proposta original da autarquia começou a ser desmontada. Manoelito não esqueceu dos ensinamentos do seu documento básico:

"A seca do Nordeste é muito mais uma crise de oferta de alimentos do que uma crise na oferta de água. Cabe à Sudene expandir a fronteira agrícola do Nordeste em direção à pré-amazonas, adaptar e reorganizar a economia da faixa semi-árida com uma agricultura adaptada à zona seca com lavouras xerófilas e forrageiras".

Quando assumiu a fazenda Carnaúbas, Manoelito começou a trabalhar com elementos biológicos, plantas e animais, compatíveis com o clima. Acabou com as lavouras de milho e feijão que precisam de muita água e fortaleceu na propriedade a pecuária bovina com animais zebu, que produzem leite e carne. Ele estruturou a fazenda para enfrentar a estiagem: no primeiro semestre os animais ficam no pasto em meio à vegetação da caatinga. No segundo semestre, quando não chove, os bichos são semi-estabulados e contam com palma, bagaço de cana e feno de capim buffel, que produz satisfatoriamente no solo pobre e pedregoso.

As cabras de Suassuna

Em 1971, Manoelito surpreendeu o sertão, quando começou a criar cabras e fez da caprinocultura, até então de subsistência, um negócio rentável. Quem deu a idéia foi o primo Ariano Suassuna, dramaturgo e escritor: "Ariano foi muito importante para ajudar na reflexão sobre o que fazer no sertão. Começamos a criação em sociedade e fomos estudar tudo sobre as cabras que foram preservadas na caatinga livre, onde concentram-se 90% das 12 milhões de cabeças que formam o rebanho brasileiro".

Nesse esforço de 28 anos, a juventude de Manoelito se foi, os cabelos embranqueceram e, ainda assim, o homem não envergou. Nem mesmo na última seca, em 93, quando salvou todos os animais e quase morreu. Tinha 80 quilos quando foi internado na UTI de um hospital e 23 dias depois pesava a metade. Levou um tombo e levantou, rígido: "Apesar do cerco, o Nordeste continua aqui e o nordestino teimando".

Em agosto, ele enfrentava dificuldades. Os onze açudes da Carnaúbas estão secos e só resta água em três cacimbões, cada um com 25 mil litros. Como não deu para fazer feno porque não chove desde março do ano passado, Manoelito está dando aos animais apenas bagaço de cana misturado com palma. A produção de leite das cabras caiu de 300 para 70 litros por dia e das vacas baixou de 1.200 para 400 litros: "Estou preservando a sobrevivência biológica e o rebanho está sendo alimentado não para produzir, mas para não morrer".

O pecuarista faz duras críticas ao governo FHC, que além de estabelecer juros altos para os financiamentos ao campo, não tem uma política para o semi-árido e fez de conta que a seca não existe, a exemplo do que aconteceu nos tempos da ditadura militar. Em 1978, o governo dos generais ignorou e mandou esconder um estudo dos meteorologistas Carlos Girardi e Luiz Teixeira, do Centro Tecnológico Aeroespacial de São José dos Campos, que antecipava que o Nordeste ia entrar num outro ciclo de seca em 1979 com problemas graves para a produção, como de fato aconteceu.

O governo federal foi alertado por vários meteorologistas, desde meados de 97, de que haveria seca em 98, diz o pecuarista. O próximo período crítico começa no ano 2000 e Manoelito Dantas não sabe se ele e o rebanho duram até lá: "Se eu morrer não vou para o inferno. São os dirigentes das instituições do governo que irão".

O paraíso na terra

O presidente do PT de Taperoá, vereador Salomão Marinho de Oliveira, diz que o pecuarista é um produtor respeitado em todo o Nordeste porque é produtivo, tenta um novo modelo de atividade rural, é cumpridor de suas obrigações, os empregados de sua fazenda têm casa digna com três cômodos, água, luz, leite diariamente, pagamento quinzenal sempre acima do salário mínimo.

Com certeza, os trabalhadores de Taperoá também terão direito a um lugar no céu, mas preferem lutar para tentar chegar ao paraíso ainda vivos, no tempo que lhes foi concedido nesta terra. Metade dos 15 mil habitantes do município continua no campo, onde 70% dos imóveis rurais são pequenas propriedades de até 50 hectares e ocupam apenas 20% da área. O povo está em dificuldades porque a safra de milho e feijão quebrou e a irrigação de frutas e legumes está proibida desde junho. As 10 mil cabeças de bovinos, outro tanto de caprinos e 4 mil ovinos disputam um resto de água em poços quase secos e apenas dois carros-pipa atendem a zona rural.

O açude Manoel Marcionilo, com capacidade para 17 milhões de metros cúbicos, que além de abastecer Taperoá fornece água para doze outras cidades, já está secando e se não chover até dezembro a sede poderá entrar em colapso, diz Salomão. O município está em estado de calamidade pública, 400 pessoas foram alistadas nas "frentes produtivas" e são distribuídas 1.848 cestas básicas. Em 1993 foram alistados 2.431 trabalhadores e distribuídas cestas em igual número.

A fome atingiu o povo mais pobre. Em junho passado, um grupo de 200 trabalhadores tentou saquear a feira. Como Taperoá só tem três policiais, a prefeitura convocou um pelotão de trinta homens da Polícia Militar e ameaçou reprimir, diz Salomão: "O povo é pacato, só queria saciar a fome e se contentou com uma feira para cada família, equivalente a R$ 4".

O atual prefeito, Adriano Monteiro de Farias, do PMDB, manda na Comissão da Seca e manipula a distribuição das cestas básicas, diz Salomão, que é vereador pela segunda vez consecutiva e já foi ameaçado de morte várias vezes porque faz denúncias sobre problemas na administração da prefeitura: "Conseguimos barrar um projeto governista que previa a concessão de aposentadorias especiais de R$ 1.500 para ex-prefeitos, viúvas de ex-prefeitos e de R$ 800 para vereadores que já tivessem dois mandatos".

Filho de pequenos agricultores, Salomão Oliveira vive com a mulher e o filho de sete meses numa casa simples, é professor da rede estadual, organizou o PT e junto com 86 filiados enfrenta os "coronéis" numa cidade onde emprego fixo garantido só na prefeitura, que tem mil funcionários públicos e apenas dois médicos: "O serviço de saúde funciona precariamente, 80% da população urbana foi atingida pelas epidemias de dengue, cólera e atualmente estão sendo registrados dois casos de doença de Chagas por semana. Apenas 20% das ruas da cidade são calçadas e contam com saneamento básico. Nos últimos dez anos, o êxodo rural intensificou-se e as famílias que ficaram no campo são sustentadas pelo salário mínimo dos aposentados rurais".

O aposentado do sertão

O salário mínimo da aposentadoria rural movimenta o pequeno comércio de Taperoá e de muitas cidades e povoados do sertão. Afinal, de 5,93 milhões de aposentados em toda a área rural do Brasil, 2,68 milhões estão espalhados nos estados do Nordeste, onde, segundo a Contag, existem mais 500 mil pessoas em condições de receber o benefício, mas o governo federal não concede alegando que o povo não prova a contribuição dos 2,2% da produção agrícola que tem de ser declarado em bloco de notas. O problema, segundo a entidade, é que os pequenos agricultores nordestinos são muito pobres, não trabalham com os blocos de nota, conseguem apurar no máximo para a subsistência e os meeiros sem terra trabalham sem carteira assinada.

Mulher valente não chora

O pôr-do-sol é um momento glorioso no sertão. A vegetação seca da caatinga começa a avermelhar e a sertaneja Edite Ferreira da Silva, de 51 anos, ainda trabalha. Limpa o suor que escorre pelo rosto e inclina a cabeça para o alto. Não há sinal de chuvas. Ainda assim, a mulher não desanima, é valente e não tem tempo para chorar. É hora de recolher os animais: 100 bodes e cabras, 40 ovelhas e umas 50 galinhas, que ela, o marido e três filhos criam numa pequena propriedade, em Uauá, município do sertão baiano, onde vivem 24 mil pessoas, das quais 15 mil ainda no campo.

Vizinho de Canudos, Uauá já era um povoado no final do século passado e ficou famoso porque foi lá que 104 soldados do 9° Batalhão de Infantaria do Exército, que marchavam para atacar Belo Monte, foram derrotados pelos homens de Conselheiro. De lá para cá, Uauá cresceu, virou município, mas continua sofrendo nas secas. Agora, o estado de calamidade pública foi decretado, as 200 mil cabeças de caprinos estão sendo alimentadas com o que restou de palma e mandacaru, as safras de mandioca, milho e feijão não renderam nada, 1.381 pessoas foram alistadas nas "frentes produtivas", 3 mil cestas básicas estão sendo distribuídas e a miséria não é maior porque 2 mil idosos do campo são aposentados rurais. Isaías Ribeiro, marido de Edite, é um deles e aposentou-se por invalidez, com problemas na coluna.

A família está sobrevivendo do resto de feijão colhido em 97 e que dura até o final do ano, da carne de bode magro e de uma galinha de vez em quando. Com os R$ 130 da aposentadoria, eles compram alguns mantimentos e pagam o carro-pipa – R$ 50 por 8 mil litros – para abastecer a cisterna de placa, que encheu com água da chuva pela última vez em 96, e a cacimba destinada ao consumo dos animais. A cisterna foi construída com o crédito rotativo do Instituto Regional de Pequena Agropecuária Apropriada (Irpa), uma organização não-governamental, com sede em Juazeiro, que também financiou os agricultores de outras cinco comunidades rurais de Uauá.

Ainda assim, não resolve o problema porque o município tem 110 comunidades rurais e falta água em todas elas, diz João Bosco Gonçalves, bancário e vereador do PT. Quem deveria financiar os agricultores é o governo, mas, segundo ele, o Banco do Brasil liberou apenas 380 contratos do Pronaf para investimento em caprinocultura. A quantidade de créditos é insignificante porque o bode é a principal atividade e o meio de vida de 15 mil pessoas que moram no campo.

O fim da agricultura familiar

A falta de financiamento barbariza o semi-árido, diz José Augusto da Silva Brito, técnico da Secretaria Executiva do Pronaf e de planejamento da EBDA: "O agricultor familiar que tem até 200 hectares e vive na terra consegue no máximo R$ 15 mil para investimento e R$ 5 mil para o custeio. Com esses valores não dá para cavar nem poço de água salobra".

Em Uauá existem 3.500 agricultores familiares e são necessários só para custeio – na base de R$ 5 mil por família – R$ 27 milhões. Mas o governo não libera o crédito. O Pronaf concedeu para toda a Bahia, onde existem 700 mil pequenos agricultores, apenas R$ 50 milhões do crédito de emergência para a seca: "É uma mentira que está existindo financiamento para a agricultura familiar no Nordeste. Mais de 90% do crédito que o governo federal destina aos agricultores familiares fica no Sul do país. O Nordeste tem acesso no máximo a 8% desse crédito".

José Augusto Brito lembra que até as taxas do Pronaf são acima da inflação e diz que só é possível desenvolver uma agricultura familiar com alguma rentabilidade, se houver a intervenção direta do Estado garantindo assistência técnica, linhas de crédito com juros zero e intervenção no processo de comercialização. As políticas agrícolas de outros países protegem o produtor local e no Brasil não. Em Juazeiro, por exemplo, a cebola e o milho de pequenos produtores, mesmo com melhores preços, perdem para produtos importados: "Há dois anos comprei em Irecê (BA) um saco de cebola de 20 quilos por R$ 1 e nos supermercados, em Salvador, o produto estava sendo vendido a R$ 0,50 o quilo".

Os credores da seca

No entardecer do sertão o povo se deixa envolver pela música Ave Maria, que escuta nos radinhos de pilha. O sol vai sumindo no horizonte e escurecendo a caatinga. Aqui em Alto Alegre, bichos e gente fazem silêncio. No açude de Cocorobó, as ruínas de Belo Monte continuam afrontando a República e desafiando o Vaza Barris, até que a natureza, em conflito, tome partido e ajude o rio a engolir o arraial do Conselheiro outra vez. Ainda assim, a história não ficará submersa. Em 1895, Canudos recebeu pena de morte, mas foi guerrilheira, e só deu combate de posição dois anos depois, quando as duas últimas expedições conseguiram chegar até os morros próximos. Conselheiro orava, e já nas últimas batalhas estava morto. Pajeú, João Grande e outros lutaram luta de morte. O canhão Krupp vomitava seu fogo. Um deles foi conquistado a braço e levado para o arraial para servir de bigorna. Em Os Sertões, Euclides da Cunha descreve o instante final:

"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados".

O sertanejo é assim até hoje, não desiste, não se entrega, não se rende. Quando as chuvas chegarem, a vegetação ficará verde, os animais terão pasto e ele voltará a plantar, mas a contenda não estará encerrada. O sertanejo não é um vagabundo empurrado pela seca e muito menos um bicho capaz de vencer dificuldades, como se sentia Fabiano, personagem de Graciliano Ramos, no livro Vidas Secas. Tampouco gosta de cesta básica e "frentes produtivas". Os sertanejos de Canudos e de todo o sertão e agreste nordestinos são credores da República do Brasil.

Otto Filgueiras é jornalista.