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O desmonte promovido pelos governos Temer e Bolsonaro no SUS não afeta diretamente a possibilidade de concepção do enfrentamento do COVID-2019. Mas pode afetar gravemente a porta de entrada do sistema de saúde

Toda a sociedade precisa seguir as orientações técnicas oficiais dos dirigentes da área da saúde. Foto: Fernando Frazão/ABr

A leitura do artigo “COVID-19: levar a epidemia a sério”, de Ion de Andrade, inspirou-nos a escrever este texto1.

Nele, o autor mostra preocupação com a polarização política do país, que, segundo ele, poderia dificultar o enfrentamento político e sanitário do COVID-19, porque o governo federal não teria credibilidade (para dois terços da população, já que para cerca de um terço, a julgar por pesquisas de opinião, teria, acrescentamos).

Ele elide o fato de que, com ou sem credibilidade, o governo federal não tem interesse político em nada fazer. O Ministério da Saúde está se reunindo com dirigentes estaduais, emitindo orientações públicas e outras medidas, inclusive porque no órgão continuam existindo funcionários de carreira e preparados, os quais, vale lembrar, como servidores públicos foram agressivamente chamados de "parasitas" por uma autoridade federal, há poucas semanas. De outro lado, estados potentes política e sanitariamente, como São Paulo, estão atuando agilmente, entre outros exemplos.

Caso hoje o critério de repasse de recursos federais para municípios, estados e Distrito Federal fosse o mesmo de antes da Emenda Constitucional nº 95 de 2016, teríamos cerca de R$ 20 bilhões a mais na saúde 2. Neste momento, o desmonte que o golpismo dos governos Temer e Bolsonaro patrocinam no Sistema Único de Saúde (SUS) não afeta diretamente a possibilidade de concepção do enfrentamento do COVID-2019. Mas pode afetar gravemente a porta de entrada do sistema de saúde – prontos-socorros e ambulatórios – e a capacidade de operação dos laboratórios de saúde pública, caso ocorra aumento da incidência de casos de pessoas suspeitas de infecção pelo coronavírus. Explicamos.

O Brasil, desde o final do século 19 e início do século 20, foi construindo uma positiva tradição – fenômeno dotado de historicidade – no enfrentamento dos grandes problemas de saúde pública, cuja resolução interessasse direta e imediatamente aos detentores do capital. Apesar de se relegar a saúde pública ao segundo plano dentre as políticas sociais do Estado brasileiro depois da Revolução de 19303, não perdemos essa tradição. Ao contrário, lentamente, fomos aprofundando-a durante o século passado.

Então, no acompanhamento técnico da evolução do quadro sanitário decorrente da existência de casos confirmados de infectados pelo COVID-19, no estabelecimento de critérios clínicos e epidemiológicos de confirmação de casos, na realização de exames laboratoriais para detecção do vírus, na investigação epidemiológica de contatos de pacientes suspeitos, na orientação do que fazer em ambientes coletivos, na orientação de procedimentos individuais adequados, entre outras providências, a União, os estados, o Distrito Federal e as municipalidades, em especial as médias e grandes, dominam as tecnologias de processo – digamos assim, o como fazer.

Em alguns estados e em instituição da União, com o quadro epidemiológico atual (trabalhamos com a informação de nove casos confirmados no país: seis em São Paulo, um no Espírito Santo, um no Rio de Janeiro e um na Bahia), contamos com tecnologia de produto e com pessoal suficientes para realização adequada de exames laboratoriais. Enfatizamos: com o quadro epidemiológico atual.

Onde o desmonte do SUS, que vem sendo implementado desde 2016 pelos governos Temer e Bolsonaro, pode dificultar sobremaneira o enfrentamento dessa emergência sanitária? Nos prontos-socorros e ambulatórios públicos, nos quais a maioria da população com síndromes respiratórias é atendida e continuará sendo. Por quê?

A área da saúde é intensiva em mão de obra, portanto, secretarias das municipalidades, estaduais e do Distrito Federal convivem com a diminuição de muitos bilhões de reais de transferências do governo federal para a saúde, por força da Emenda Constitucional nº 95 de 2016, que congelou "gastos" nas áreas sociais, dificultando contratações de médicos e de pessoal de enfermagem, bem como dificuldade de custear novos equipamentos e insumos diversos, ensejando, assim, a diminuição da suficiência da assistência, quiçá, aumentando o sofrimento das pessoas e – será inverossímil? – podendo fazer emergir, talvez, mortes evitáveis.

É preciso ter presente que os dirigentes municipais, estaduais e do Distrito Federal da área da saúde não são Midas – aquele monarca da Antiguidade, do Reino da Frígia, que diz a lenda que tudo que tocava virava ouro!

Em síntese: toda a sociedade precisa seguir as orientações técnicas oficiais dos dirigentes da área da saúde, e não de "especialistas" convidados pela mídia para tratar do assunto, bem como, quando clinicamente necessário, procurar os serviços médicos.

Já o governo federal deve, desde já, remanejar emergencialmente recursos federais para a saúde – municípios, estados e Distrito Federal e, se for preciso, para órgão vinculado ao Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Frisemos, remanejar para a saúde recursos originários de áreas que beneficiam o grande capital e não recursos alocados nas áreas sociais!

Por fim, o único consenso desejável no momento em torno do controle da disseminação do COVID-19 é esse!

Isso porque a ninguém interessa problemas na assistência, ou caos na assistência, no caso de progressão da detecção de pacientes suspeitos de infecção pelo COVID-19, com prontos-socorros e ambulatórios funcionando com dificuldades e convivendo com aglomerações de pessoas e filas ainda maiores do que hoje, bem como laboratórios de saúde pública convivendo com dificuldades para realizar, ao seu tempo, exames laboratoriais pertinentes.

Ricardo Fernandes Menezes é médico sanitarista, mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e doutorando no Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas
Iara Alves de Camargo é médica pediatra e sanitarista, mestre em Ciências pela Universidade Sorocaba