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A hiperpolitização da polícia militar cearense é parte de um processo mais amplo de crise da democracia liberal em que os valores do respeito à lei, aos fundamentos garantistas do Estado de Direito, são fortemente relativizados

A segurança pública foi incorporada ao discurso dos políticos como tema central nas campanhas eleitorais. Foto José Cruz/ABr

O motim dos policiais cearenses no mês de fevereiro ganhou as páginas dos jornais, tevês e rádios do Brasil e do mundo. Toques de recolher, policiais encapuzados, formação de reféns, arruaças nas ruas, foram a tônica de um movimento autodeclarado grevista, a despeito de sua evidente inconstitucionalidade e afronta à população trabalhadora, mas, principalmente do caráter violento adotado por aquele, de tom manipuladoramente político reacionário. Aliás, o Supremo Tribunal Federal em sede de ação de constitucionalidade, bem como de recurso extraordinário que teve como reclamado o Sindicato dos Policiais Civis de Goiás, já reconheceu, por meio de voto do relator Alexandre Moraes, a inconstitucionalidade do direito de greve dos policiais, tanto civis como militares, pelo caráter específico dos serviços prestados pela categoria, além da prerrogativa singular de andarem armados. O artigo 142, § 3°, IV combinado ao art. 42 da Constituição Federal deixa claro, de maneira insofismável, como o movimento paredista dos policiais aponta para uma grave violação aos deveres de garantia da ordem pública, ao mesmo tempo promove uma conspiração contra sociedade, na medida em que a torna refém de um destacamento armado que só é autorizado a usar dos meios de força, presumidamente, em favor da sociedade ou quando solicitado pelo Estado.

No entanto, via de regra, o comportamento da polícia, especificamente a militar, tem se caracterizado como agente da violência física ilegal e ilegítima que se volta especialmente contra jovens, negros e pobres da periferia, além de estar a serviço das classes dominantes, reprimindo movimentos sociais em sua luta por direitos, herança do período autoritário que formatou a polícia militar brasileira, conforme os princípios da Lei de Segurança Nacional, para perseguir os “inimigos internos” do regime autocrático estabelecido em 1964. Ou seja, a polícia militar é sobrevivência do entulho ditatorial que não conseguimos remover em nossa “transição transada”, pejada pela conciliação promovida entre as classes dominantes.

Essa configuração deixa a população refém de uma situação em que a (in)segurança pública e a violência fazem parte importante do cotidiano de cada pessoa, embora sejam percebidas e vivenciadas de forma diferente dependendo da classe ou grupo social a que pertencem, fazendo com que a atuação da polícia militar seja vista, a rigor, com medo e desconfiança. Mas a quem recorrer?

O fato é que a problemática da violência e da segurança se tornou uma das principais preocupações do brasileiro, conforme mostram pesquisas de opinião do Instituto Datafolha, numa série histórica que vai de 2002 a 2018, aparecendo sempre entre os quatro principais problemas do país, conforme vemos na tabela abaixo:

ANO

PRINCIPAL PROBLEMA DO PAÍS

2002 Desemprego (34%) Fome/Miséria (15%) Violência/Segurança (14%) Saúde (7%)
2003 Desemprego (41%) Fome/Miséria (15%) Violência/Segurança (13%) Saúde (8%)
2004 Desemprego (36%) Fome/Miséria (15%) Violência/Segurança (14%) Saúde (10%)
2006 Desemprego (27%) Saúde (17%) Violência/Segurança (16%) Educação (9%)
2007 Saúde (21%) Violência/Segurança (21%) Desemprego (18%) Educação (10%) Corrupção (7%)
2008 Saúde (25%) Desemprego (18%) Violência/Segurança (16%) Educação (9%)
2009 Saúde (27%) Violência/Segurança (16%) Desemprego (14%) Educação (9%)
2010 Saúde (23%) Violência/Segurança (19%) Educação (7%) Corrupção (6%)
2011 Saúde (31%) Violência/Segurança (16%) Educação (12%) Desemprego (11%)
2012 Saúde (40%) Violência/Segurança (20%) Educação (11%) Desemprego (6%)
2013 Saúde (48%) Educação (13%) Corrupção (11%) Violência/Segurança (10%)
2014 Saúde (43%) Violência/Segurança (18%) Corrupção (9%) Educação (9%) Desemprego (4%)
2015 Corrupção (34%) Saúde (16%) Desemprego (10%) Educação (8%)

Violência/Segurança (8%)

2016 Corrupção (32%) Saúde (17%) Desemprego (16%) Educação (6%)

Violência/Segurança (6%)

2017 Saúde (24%) Desemprego (18%)

Corrupção (18%)

Educação (10%)

Violência/Segurança (10%)

Economia (6%)
2018 Saúde (23%) Violência/Segurança (20%) Desemprego (14%) Corrupção (14%) Educação (12%)

Fonte: Datafolha (http://datafolha.folha.uol.com.br/)

O problema se tornou tão grave que a bandeira da segurança pública passou a ser incorporada ao discurso de inúmeros políticos aparecendo como tema central nas campanhas eleitorais, alavancadas pelos programas policialescos, contribuindo para a eleição de personagens pitorescos, anedóticos, mas também de profissionais dos órgãos de segurança que, no imaginário social, dariam um fim à onda de violência, garantindo a “lei e a ordem” para os “cidadãos de bem” numa sociedade marcada pela “sujeira” e pela corrupção. Tendo ainda sido incorporada a ideia de que os “direitos humanos” tinha o único propósito de defender bandidos e assassinos em detrimento dos inúmeros policiais mortos a cada dia.

A cristalização desse discurso aliado ao clima de insegurança vivenciado pela sociedade cearense e a deterioração das condições de trabalho dos policiais militares e o baixo salário serviram como combustível para a deflagração da primeira greve da Polícia Militar do Ceará no final de 2011 e início de 2012, gerando uma onda de pânico na população alimentada por falsas notícias de arrastões em diversos pontos do estado.

Apesar disso, o movimento paredista foi visto com ampla simpatia pela maior parte dos cearenses, pois os salários daquele segmento encontravam-se comprimidos por décadas de achatamento salarial que atingiam quase todas carreiras do setor público, potencializado pelo sentimento de insegurança coletiva que gerava o deslocamento das organizações criminosas Comando Vermelho, PCC e outras para o território de Fortaleza, dada a posição estratégica de rota de passagem da capital para o continente europeu, mercado privilegiado do consumo de drogas. Ademais, os policiais por intermédio de suas lideranças mais destacadas, mostravam-se dialógicos com outros setores da população, não se isolando e apresentando suas demandas não como meras reivindicações corporativistas, mas sim como parte componente de seus compromissos com o povo.

Meses antes, em setembro de 2011, como parte de um acordo com a então deputada Fernanda Pessoa, esta se licencia e assume a cadeira de deputado o suplente Capitão Wagner que teria um papel fundamental na condução e os desdobramentos da greve de 2011/2012, capitalizando o sentimento da tropa e de grande parcela da população. Seu papel foi tão relevante que nas eleições municipais de 2012 se tornou o vereador mais votado de Fortaleza, com 43.655 votos e em 2014, o deputado mais votado para a Assembleia Legislativa do Ceará, com 194.239 votos.

Com esses movimentos e a partidarização das demandas das polícias militares, estas ganharam um protagonismo político sem igual elegendo mais representantes no Parlamento. Cabo Sabino (deputado federal em 2014), Soldado Noélio (vereador em 2016 e deputado estadual em 2018) que, em conjunto com o deputado federal Capitão Wagner, tentaram capitalizar a insatisfação da tropa fechando acordo com o governo do estado, mas que acabaram desautorizados pelos ânimos mais inflamados de policiais militares que optaram por se amotinarem.

A hiperpolitização da polícia militar cearense integra um processo mais amplo de crise da democracia liberal em que os valores do respeito à lei, aos fundamentos garantistas do Estado de Direito, são fortemente relativizados. Crise de valores que se desdobra em várias crises, incluindo a econômica, a política e a social, decorrente da ação subvertora da ordem constitucional pelos próprios capitalistas, ditos “liberais”, mas incapazes de conviver com qualquer regime de direitos que se expanda em favor dos mais pobres. A ordem para “os de cima” só prevê direitos para os ricos, notadamente os direitos civis ligados à propriedade; para os pobres apregoa-se a “exceção permanente”, salientando-se o penalismo punitivo que os encarcera.

Agora, mais do nunca, a extrema direita apresenta como única alternativa para a recomposição da “ordem”, o apelo ao controle violento da sociedade, atribuindo centralidade institucional às forças armadas, às polícias e à justiça punitiva. Faz parte do processo golpista desencadeado desde a derrubada da legítima presidenta Dilma Rousseff em que “com o Supremo com tudo”, buscou-se interditar a Constituição de 1988 e sua identidade cultural pautada na tutela dos direitos fundamentais, dos princípios regentes do Estado e de suas políticas públicas voltadas para investimentos na educação, saúde, habitação etc.

É preciso compreender o motim dos policiais militares do Ceará como um desdobramento de um processo mais amplo de deterioração democrática, de construção ideológica do neofascismo que já perdura anos em nosso país, e que busca normalizar a dominação completa da sociedade civil pelas forças repressivas do modelo neoliberal, este expressão da lógica global do capital financeiro e seu projeto de recolonização do Brasil.

Não é à toa que o motim contou com o apoio explícito de outros atores políticos como a Major Fabiana (PSL-RJ) e Capitão Alberto Neto (Republicanos-AM), que juntos como Capitão Wagner (PROS-CE) registraram Boletim de Ocorrência (BO) contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT-CE) por tentativa de homicídio no episódio da retroescavadeira em Sobral, quando Cid Gomes acabou baleado.

Alimentados por essa lógica, forjada pela lógica do inimigo interno, os policiais militares do Ceará passam a agir “livremente” ao sabor das conveniências de alguns líderes, compromissados com o “plebeísmo fascista” que nos ameaça, ultrapassando todos os limites prudenciais do Estado de Direito que prenuncia a ascensão totalitária da extrema direita. Por isso, tal motim não pode ser compreendido isoladamente, como um ponto fora da curva, pois resulta de um conjunto de ações, omissões e contradições que envolvem diversos atores, desde os próprios policiais, mídia, governo do Estado, até a atuação do bolsonarismo e de sua inserção nos aparatos repressivos, agravado em muito pela assunção recente da extrema direita ao governo federal.

É importante ressaltar que a eleição de Camilo Santana (PT) em 2014 e sua reeleição em 2018 apontaram para um desanuviamento do clima entre policiais e governo estadual, devido ao estabelecimento de uma mesa de negociação entre as partes e também pelo tratamento mais institucional das controvérsias, menos voltados para os conflitos entre personalidades.

Entretanto, apesar dos avanços no campo da elaboração de uma política de segurança pública, posto que estribada numa apreensão mais ampla, complexa dos múltiplos fatores de produção da criminalidade, manteve-se a ótica discutível do governo Cid Gomes, de apostar na expansão dos efetivos policiais e na repressão ostensiva nas ruas. Prioridade esta que se amplificou no segundo governo Camilo Santana quando se optou pela nomeação de um secretário para atuar na área da Administração Penitenciária, de perfil punitivista, versado em declarações bombásticas, agressivas, alinhado com a concepção da “lei e da ordem” que banaliza a violação aos direitos humanos como critério de combate ao crime organizado. Com o novo secretário de Administração Penitenciária, Mauro Albuquerque, recrudesce a política de segurança pautada na contratação de mais e mais policiais, na ênfase do poder dissuasório unilateral da repressão, bem como num fechamento ao diálogo com a sociedade civil e com os próprios policiais.

Claro que isso não justifica os abusos crescentes dos policiais, de suas lideranças recrutadas pelo bolsonarismo militante, mas identifica problemas a serem urgentemente sanados pelo desenvolvimento de uma política de segurança adequada, democrática e pautada no reconhecimento dos direitos humanos da população e dos policiais.

A firmeza do governador Camilo Santana com o comando dos policiais ao não anistiar os que se amotinaram foi um passo decisivo para assumir o controle da situação, pondo fim à dramática inversão de perspectivas trazida pela liderança dos policiais, tendo encontrado respaldo e apoio da população cearense. Deve-se também elogiar sua capacidade de interlocução com a categoria, com a sociedade, transmitindo uma mensagem de que a autoridade que era conferida pelo povo, pela Constituição, precisa ser respeitada.

É preciso para o restabelecimento das fundações democráticas de uma Política de Segurança em consonância com os valores democráticos, socialistas e emancipatórios de uma definição mais clara acerca da relação entre polícia e sociedade, das formas de controle sobre seus efetivos, ao tempo que deve se orientar por uma maior proximidade das comunidades, que deve ser ouvida e chamada a participar dessa construção, bem como se deve impor um ataque sistêmico, transversal às causalidades da violência em nossa sociedade que têm raízes profundas na desigualdade e na injustiça diária e permanente cuja vítima principal é a imensa maioria da população. A saída é o fortalecimento da Democracia, a garantia e a efetiva aplicação dos Direitos Sociais e Políticos garantidos pela nossa Constituição.

Newton de Menezes Albuquerque é professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza

Hebert Lima é especialista em Gestão e Políticas Públicas, mestrando no curso Maestria Estado, Governo y Políticas Públicas pela Flacso