“Para um jogador sem vontade de jogar até a bola lhe atrapalha.” O ditado muitas vezes repetido em partidas de futebol de várzea é uma boa analogia ao processo utilizado pelo governo federal em suas estruturas para o pagamento do auxílio emergencial. Como dizem: quando não se tem vontade, quando não se quer o jogo, jogue a bola para fora, pois ela pode atrapalhar.
O pandemônio criado pelo governo federal e seguido pela direção da Caixa Econômica Federal e de outros órgãos do governo federal para o cadastramento e, mais ainda, para o pagamento do auxílio emergencial evidencia qual é o jogo e deixa claro que a estratégia é a do não jogo, para retardar o pagamento, para não pagar ou pagar a um menor número possível de beneficiários. O reconhecimento de que o auxílio emergencial é um direito, uma necessidade frente à pandemia e é uma obrigação a ser cumprida pelo governo federal, não se traduz nas ações dos órgãos governamentais.
A pandemia da covid-19 é o alvo das ações e está no centro da estratégia de todos os governos dos países afetados, seja com políticas integradas entre as diversas áreas governamentais, criação de sala de situação, veiculação constante de informações, forte articulação internacional, seja nas pesquisas e políticas públicas de apoio direto às cidadãs e aos cidadãos mais vulneráveis, o grande contingente de pobres. No Brasil, o sinistro cenário montado pelo governo federal é uma nuvem cinza, sem qualquer condição de visibilidade e carregada de desconfiança, características próprias do atual agrupamento que tomou o poder central.
Enquanto a crise aberta pela pandemia já levou 1,5 milhão de trabalhadores a recorrerem ao seguro-desemprego, alta de 31% nos pedidos realizados entre março e abril em comparação com o mesmo período no ano passado, o ministro da Economia Paulo Guedes afirma que “não vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”. E aquele que deveria estar no comando da nação por ora está preocupado em blindar a si e seus familiares de investigações que partem de diversas denúncias por crimes e irregularidades.
É nos momentos de crise aguda que o caminho que faça chegar os recursos públicos para as camadas mais pobres da população deve ser reduzido e ajustado, em processos que garantam a agilidade para dar um mínimo de sobrevivência. Com essa visão, diversos países estruturaram ações para suprir com recursos financeiros e ajuda material a população mais vulnerável. E o que assistimos no Brasil, passados mais de dois meses da aprovação do auxílio emergencial no Congresso Nacional? Assistimos à ausência de uma estratégia que nem ao menos previu como os recursos chegariam aos mais vulneráveis, aqueles que não têm celular, acesso à internet ou ainda condições de baixar um aplicativo para realizar o seu cadastro, e selecionados, saber como e de que maneira receberiam. No final de maio, ainda havia quase 10 milhões de pessoas aguardando a análise, ou seja, a confirmação para recebimento.
Ainda que o Congresso Nacional tenha definido as regras para quem deveria ser beneficiário do auxílio, ao trilhar o caminho do atendimento virtual o governo federal desconsiderou os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2017, ou seja, que 78,2% da população com 10 anos ou mais possuíam telefone móvel de uso pessoal e que um quarto dos domicílios brasileiros não tinha acesso à internet, sendo o motivo preponderante o fato de não saberem usá-la.
Mesmo se considerarmos um possível avanço nesses percentuais até 2020, a escolha deixou de fora a parcela da população que não tem acesso à internet, a telefone celular; não tem acesso sequer à informação de que esse direito existe, a exemplo dos moradores de rua e outras populações vulneráveis.
Não se observam quaisquer articulações com estados e municípios para estruturar ações para busca e assistência dessa população, que ficou invisível ao governo federal. Um triste exemplo é a pergunta de um morador de rua: “Por que tanta gente está usando pano no nariz e na boca?”. Essas pessoas nem ao menos sabem da pandemia, não têm nenhuma condição de preencher um cadastro de forma autônoma para requisitar o benefício.
A Caixa e a Dataprev apresentaram no final de maio balanços dos números do auxílio emergencial e, ao serem indagadas, cada uma delas se eximiu da responsabilidade pelo atraso nas análises dos dados cadastrais. Os dois órgãos são vinculados ao Ministério da Economia, que deve ser responsabilizado pela demora nas análises e no pagamento do auxílio. A Defensoria Pública da União, ante diversos relatos de demora no pagamento e com o objetivo de frear o número de ações judiciais abertas em todo o país relacionadas à demora na análise, entrou com ação civil pública determinando o prazo máximo de vinte dias para análise do auxílio emergencial. A Advocacia Geral da União (AGU), o Ministério da Cidadania, a Caixa e a Dataprev firmaram acordo judicial para cumprimento do prazo.
São bem-vindas as ações da Defensoria Pública da União e outros órgãos regionais diante da omissão das diversas esferas do governo federal frente ao descalabro nas filas nas agências da Caixa, aos atrasos nas análises e pagamentos, a esse perverso e sinistro “jogar a bola pra fora”. Jamais conseguiremos dimensionar a humilhação, a dor, a fome e o desamparo de mulheres e homens que até hoje aguardam uma resposta. Reiteramos, o auxílio emergencial é um direito e, como tal, os órgãos envolvidos têm o dever de fazer com que ele chegue a toda a população reconhecida nos critérios definidos.
Clarice Coppetti é economista, pós-graduada em Gestão Estratégica de Tecnologia da Informação, foi vice-presidenta da Caixa de 2004 a 2011
Maria Fernanda Ramos Coelho é especialista em Planejamento e Gestão Organizacional, ex-presidenta da Caixa, onde trabalhou por 28 anos