“Nenhuma nação consolida transformações significativas em sua economia e nas relações sociais que modificou por meio de rupturas ou por meio de processos democráticos de acumulação institucional, sem expressá-las claramente no universo simbólico – ou seja, pela cultura – dos setores que deles se beneficiaram. Em uma frase: não há transformação social duradoura sem uma transformação cultural, simbólica que lhe corresponda”. (Política Cultural e Gestão Democrática no Brasil, Albino Rubim (Org.), Fundação Perseu Abramo, 2016).
I.
Abro esse terceiro capítulo da reflexão que me propus oferecer aos leitores “sobre a revolução cultural necessária”, uma contribuição às indagações sobre os desafios das esquerdas e os limites do seu modo de encarar a batalha contra-hegemônica na sociedade brasileira, preenchendo os dias de quarentena a que foi levado o país, submetido a severos limites em razão da pandemia da Covid-19.
Os retrocessos que colhemos desde 2016, com a violação da Carta de 1988, o golpe contra a presidenta eleita Dilma Rousseff, por meio de um impeachment fraudulento – porque resultante de um processo que não conseguiu provar crime de responsabilidade –, derivam de um conjunto fatores de natureza econômica, política e jurídica. Eles têm sido fartamente analisados pelos estudiosos e ocasionais observadores da crise brasileira. São raras, todavia, as abordagens que incluem os fatores de natureza cultural.
A pandemia da Covid-19, que assombra o mundo e desembarcou no Brasil a partir de março, abre espaço para inúmeras possibilidades de análises e interrogações sobre os processos de desenvolvimento, sobre a dinâmica do sistema de produção e consumo que ameaça os próprios meios de sobrevivência da espécie, considerando que o planeta já não consegue regenerar-se e repor seus estoques de matéria-prima e energia na velocidade exigida pelo impulso devorador da sociedade capitalista contemporânea.
Estamos devendo uma abordagem mais atenta das ilusões das esquerdas, particularmente do Partido dos Trabalhadores – pela relevância e o significado das posições que assume ou deixa de assumir frente ao país, a respeito de como encaramos durante aqueles anos (2003-2016) a necessidade de travar no cotidiano a batalha contra os valores culturais conservadores. Valores tecidos em torno do direito absoluto à propriedade e à exploração do trabalho, modelados durante 300 anos de escravidão e seus derivados – o individualismo, o consumismo, o machismo, o racismo, o autoritarismo, a intolerância, o preconceito, o atalho, a trapaça –, cultivados e disseminados na sociedade.
Recupero um breve diálogo sobre os caminhos que havíamos escolhido para conduzir o projeto de desenvolvimento de inclusão social baseado no consumo de massa, com a embaixadora de um país amigo, ela própria solidária com o processo democrático que vivíamos na América Latina, me interpelou: “O que pretendem as esquerdas brasileiras com seu governo? Converter o Brasil num grande shopping center?
Levantei como contra-argumento: o país era tão atrasado que o governo popular ainda batalhava para pôr de pé políticas públicas duradouras capazes de garantir três refeições por dia aos seus cidadãos mais pobres. E, ao mesmo tempo, tomar as iniciativas adequadas para criar um mercado interno de massas, capaz de dinamizar o processo produtivo e retirar o país da estagnação. A pergunta, todavia, permaneceu como um eco a nos cobrar algo que faltava.
O desfecho dos acontecimentos de 2013 e do golpe de 2016 demonstrou que não basta assegurar as três refeições diárias e, ainda que precariamente, o atendimento à saúde e à educação públicas, garantir emprego e remuneração digna, com a política de elevação do salário mínimo. Uma vez alcançados esses objetivos, outras demandas de natureza semelhante bateriam às portas do Estado.
Onde guardamos – e por que guardamos? – o discurso político capaz de explicar, aos próprios beneficiários situados na base da pirâmide, que a inclusão social não é obra dos desígnios divinos, mas de uma vontade política organizada que, depois de 22 anos de lutas, alcançou o poder de Estado e que essa inclusão é apenas uma etapa do processo de transformação mais profundo da ordem radicalmente injusta que herdamos de cinco séculos de história? Uma das respostas possíveis é: não construímos ao longo do percurso um corpo de valores alternativos àqueles que julgávamos combater. Não construímos, nem na formulação teórica, nem na prática quotidiana das lutas, uma ampla e sólida cultura democrática e socialista.
II.
O bombardeio implacável movido pelos oligopólios dos meios de comunicação, em particular a Rede Globo, contra o projeto popular de desenvolvimento com inclusão social cumpriu papel central na disputa de valores culturais na sociedade brasileira, sem ser incomodado. Não fomos capazes de nos contrapor em volume de produção de conteúdos, nem na velocidade adequada à cobertura totalizante da indústria do entretenimento. Do noticiário à novela, dos enlatados aos cultos religiosos.
Faltou ousadia aos governos populares. Hoje, ao examinar o período, fazemos a mesma pergunta: Por que não regulamentamos, quando detínhamos força política para tanto, os artigos 220 a 224 do Capítulo V, da Constituição Federal que tratam dos meios de comunicação? A resposta mais ouvida é: não detínhamos maioria num Congresso conservador, composto por parlamentares aliados ou reféns dos meios de comunicação para fazê-lo. De todo modo, resiste a constatação: não fizemos o que estava ao alcance do Executivo para democratizar os meios de comunicação, utilizando a legislação existente.
Não é demasiado reconhecer a baixa compreensão das organizações populares sobre a necessidade de construir suas próprias redes contra-hegemônicas de comunicação. Mas é grave não reconhecer nossa omissão frente às tentativas das organizações populares de montar as redes comunitárias de comunicação e, mais ainda, nosso silêncio quando foram alvo da repressão do aparato estatal, nominalmente a Polícia Federal, as rádios comunitárias. Precisamente quando buscavam espaço para veicular seu discurso em defesa das políticas públicas implementadas por nossos próprios governos.
Aparentemente cedemos à arrogância e ao deslumbramento dos que tomam o triunfo em uma batalha – a conquista do governo central – pela vitória na guerra inteira. Como se a luta de classes numa das sociedades mais desiguais do mundo resolvesse com essa vitória todas as contradições e imprimisse ali seu ponto final.
Essa ilusão nos levou a subestimar um fator indispensável na disputa pela hegemonia cultural nas sociedades contemporâneas da periferia do sistema capitalista: a necessidade de suprir o déficit informacional histórico em uma nação culturalmente colonizada. Articular estreitamente a ação do Ministério da Cultura com os programas do Ministério da Educação. Investir em políticas concretas, mobilizar nossos instrumentos, os sindicatos, associações e movimentos populares em campanhas em democratização dos meios de comunicação de massa. Nada além do que está previsto na Constituição de 1988, como defendeu o então chefe da Secretaria de Comunicação, jornalista Franklin Martins.
Aquele bombardeio de saturação dos valores mais conservadores, repito – o individualismo, o consumismo, o racismo, o machismo, o autoritarismo, a intolerância, o preconceito, o desprezo pelo conhecimento, o atalho, a trapaça – promovidos pelo cartel da mídia familiar, foi apoiado sistematicamente pelas redes capilares das denominações pentecostais e neopentecostais disseminadas pelas periferias do país. Esse nexo não é menor, como veremos.
Elas estiveram envolvidas no combate ideológico à experiência dos governos democrático-populares a partir de 2003, ancoradas no discurso dos pastores, apóstolos e bispos fundamentalistas alimentados pela chamada “Teologia da Prosperidade”, mesmo quando foram integradas na operação cotidiana das políticas de inclusão social conduzidas pelo governo.
III.
Esse processo vertiginoso movido pelas novas tecnologias digitais de comunicação somou-se a outros dois fatores relevantes: a) de um lado, o movimento político dos setores mais reacionários do parlamento na cruzada contra as conquistas dos assalariados acumuladas desde os anos 40 do século 20 com a emergência do projeto nacional de desenvolvimento da era Vargas consolidadas depois da derrota da ditadura (1964-1985) na chamada Constituição Cidadã promulgada em 1988 e, b) de outro, um fenômeno cultural inteiramente novo: o deslocamento de vastos setores da população mais pobre do país do catolicismo popular tradicional rumo às confissões evangélicas pentecostais e neopentecostais.
É possível afirmar que o Brasil vive uma espécie de contrarrevolução cultural. No país cujas expressões simbólicas mais genuínas fincam suas raízes na religiosidade popular: o catolicismo dos colonizadores mestiçado com os cultos de matriz africana – expressão sincrética e, portanto conflitiva, mais profunda da resistência dos colonizados e dos submetidos à escravidão –, a expansão das denominações pentecostais e neopentecostais se afirma há mais de quarenta anos. Gradualmente o país vai deixando de ser, na sua base popular, majoritariamente católico.
A Igreja Universal do Reino de Deus foi fundada formalmente em 1977, em São Paulo; a Igreja Internacional da Graça de Deus, em 1980, no Rio; a Igreja Mundial do Poder de Deus, em 1998, em Sorocaba (SP), para mencionar três dos exemplos mais vistosos. Desconsiderando um estilo fake, histriônico, característico dos imitadores colonizados, consolidaram três marcas fortes – Universal, Internacional, Mundial –, que assumem pretensões totalizantes e explicitam em maior ou menor medida aspirações de poder, frente ao rebanho de deserdados que elegeu como alvo para construir seus alicerces. A Universal converteu as aspirações num projeto político de poder terreno, concreto e trabalha nele com coerência, consistência e tenacidade. Constitui-se, hoje, numa das poucas organizações leninistas... em atividade no país...
Para entendermos melhor: nesses quarenta anos montou um corpo de quadros profissionais (A Igreja); em torno de um líder (Macedo); articulou uma central de produção político-ideológica que imprime um jornal para centenas de milhares de pessoas (Folha Universal); comprou uma rede de televisão de alcance nacional, portanto, garante a audiência de alguns milhões de pessoas (Rede Record) e com ela trava a disputa de valores; elege há anos uma bancada parlamentar cada vez mais numerosa; estabeleceu alianças com todos os governos eleitos, independente do programa político ou do credo ideológico que professam, para abrir caminho em direção aos cofres públicos.
Pesquisas publicadas recentemente indicam os evangélicos como a principal âncora social do governo Bolsonaro – 41% consideram ótimo ou bom o desempenho do capitão em relação à pandemia da Covid-19 e a reprovação do presidente neste segmento é de apenas 28%. Esses são dados de abril de 2020.
Esse fenômeno de vasto alcance incide na medula do sistema de valores, atitudes e comportamentos, sobretudo nos estratos mais pobres, na base da sociedade, o que quer dizer, entre os trabalhadores assalariados. Ou bem esse processo passou batido sob os olhos das esquerdas ou, se foi identificado, não foi compreendido seu alcance na disputa de classes por partidos e organizações populares habitualmente focados nos desafios da pauta econômica, social e política stricto sensu, para quem a disputa de valores é assunto para diletantes... Ajudam a compreender a extinção do Ministério da Cultura, entre os primeiros atos do governo, a demolição do MEC e o caráter da ofensiva contra a produção cultural e o sistema educacional, particularmente as universidades públicas como produtoras e difusoras do conhecimento. O governo de extrema-direita entendeu como central na disputa a batalha em torno dos valores. Formulou o conceito de “guerra cultural” e estabeleceu uma estratégia militar, bem ao gosto do fascismo, para impor sua hegemonia sobre a sociedade.
Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.