É factível e frutífero levantar alguns dos problemas do nosso sistema que atingem a juventude, e que deveriam ser prioritariamente debatidos e solucionados
É factível e frutífero levantar alguns dos problemas do nosso sistema que atingem a juventude, e que deveriam ser prioritariamente debatidos e solucionados
As atuais manifestações, se bem aproveitadas pelo campo da esquerda, podem mudar a dinâmica social do país, permitindo o estabelecimento de uma aliança sólida entre as classes populares, as classes trabalhadoras e as classes médias, construindo processos de mobilização que ajudem os governos progressistas a tomar as medidas justas para a maioria da população
Milhares de jovens nas ruas em todo o Brasil desde o dia 17 de junho provocam os sentimentos mais diversos em quem é de esquerda, em quem se preocupa com a construção de um país democrático e igualitário. A empolgação imediata e instintiva vem acompanhada de uma preocupação com o novo, com a falta de foco, com a violência contra os partidos, com a “despolitização” de uma juventude que se mobiliza pelas redes sociais, sem dialogar – ou mesmo rejeitando – as formas tradicionais da política. Passada a surpresa inicial e o susto diante das dimensões dos atos, já é possível respirar fundo e tentar refletir sobre o que está acontecendo nas ruas das grandes cidades brasileiras nesse momento. Trata-se de uma oportunidade histórica para avançarmos na construção de um novo projeto de sociedade, e isso precisa ser dito e aproveitado.
Quem são esses jovens?
Em artigo de maio de 2013, publicado no portal da Fundação Perseu Abramo (O PT e as classes sociais no Brasil: reflexões após dez anos de Lulismo), afirmava que “um novo Brasil surge após uma década de governo nacional petista. Novos processos sociais, culturais e políticos emergiram no país”. No texto eu me referia à emergência de uma nova classe trabalhadora, fruto das políticas de desenvolvimento econômico, distribuição de renda e geração de emprego que o governo Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT) pôs em curso desde 2003.
Todavia, a maioria dos jovens que ocupou as ruas de dezenas de cidades brasileiras não é oriunda dessa nova classe trabalhadora, mas sim da chamada classe média tradicional. Fazer essa constatação não significa dizer que todos nas manifestações são playboys, ou que a classe trabalhadora está contra a mobilização. Mas quem teve a oportunidade de presenciar pelo menos um ato percebeu esse perfil social majoritário de classe média.
A força da novidade na nossa estrutura de classes expressada pela emergência da nova classe trabalhadora, somada ao papel reacionário que parcela significativa da classe média tradicional cumpriu ao longo dos dez anos de governo petista, se colocando contra as mudanças em curso no país, fez com que quase todos nós, da “esquerda tradicional”, não déssemos a devida atenção o tema da classe média, às suas demandas e possíveis mobilizações. Vamos tentar correr atrás do prejuízo então.
A juventude que está nas ruas é filha do governo Lula. São jovens que nunca viveram os tempos duros do neoliberalismo no Brasil, que não presenciaram o desemprego galopante do segundo mandato de Fernando Henrique, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que não viram o sucateamento das universidades federais. Não se trata de uma juventude sem futuro e essa característica terá papel decisivo nas atuais mobilizações: não são lutas de resistência, mas sim indignações que querem algo novo.
Um segundo aspecto a ser levantado é a pluralidade desses jovens. Não temos nas ruas uma só juventude, uma só voz, uma só novidade. São milhares falando contra o aumento das passagens de ônibus, pedindo mais direitos, como saúde e educação; outros milhares gritando contra a corrupção, repudiando os partidos políticos, e mesmo vestindo branco e cantando o hino. Muitas vezes os jovens aderem a mais de uma dessas “bandeiras” ao mesmo tempo, um tipo de “tudo junto e misturado, tudo ao mesmo tempo agora”.
Outro elemento que merece ser destacado é o ambiente internacional com o qual esses jovens estão conectados. Afinal, é uma juventude altamente escolarizada e com acesso intenso às redes sociais. Ou seja, muitos desses jovens têm conhecimento dos processos de mobilização ocorridos na Europa e nos EUA, tais como o 15M da Espanha e o Occupy Wall Street em Nova York, bem como a primavera árabe e os recentes conflitos na Turquia. Aqui pouco importa se essa juventude conhece a fundo ou tem opinião formada sobre esses processos de luta. A questão é que muitos querem fazer parte dessa “história”, assim como ocorreu no Maio de 1968.
E, nesse sentido, a repressão brutal que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), ordenou contra os manifestantes, em defesa da “ordem” (nada, aliás, muito diferente da forma como o governador tucano e sua polícia militar tratam os jovens das periferias paulistas, sobretudo os negros e negras) ajudou a forjar essa identidade comum, pois todos esses processos de luta foram duramente reprimidos pelas elites dos seus respectivos países, e essa repressão foi bastante denunciada.
De onde vem essa juventude
Uma vez identificados esses jovens e seus sentimentos, é preciso investigar por que isso aconteceu logo agora, nesse momento, para afastar as teorias do “raio em dia de céu azul”. Esses jovens são filhos do governo Lula, porém é importante afirmar que eles não são parte do “lulismo”, isto é, de base social que o ex-presidente Lula construiu com suas políticas de distribuição de renda, proteção social e criação de empregos. Se essa juventude não faz parte da base social do governo Lula, vamos então mapear onde estavam esses jovens nos processos políticos e eleitorais do país nessa última década.
Sem nenhuma dúvida, podemos identificar que esse sentimento de indignação generalizada da classe média com a política explodiu a partir da crise que atingiu o governo Lula em 2005, chamada de “mensalão”, quando o PT, por erros cometidos por parte importante de sua direção, foi alvejado por denúncias de corrupção que terminaram por afastar em definitivo um segmento da classe média que havia se aproximado do petismo nos anos 1990, justamente pelo debate da ética na política.
“A crise do mensalão” não provocou um aumento significativo no sentimento de desencanto com a política e com os partidos. De acordo com dados do Datafolha e do Ibope, de 1989 até 2002, os números de entrevistados que não escolhia nenhum partido como seu preferido oscilava entre 47% a 59%. Após 2005 a oscilação aumenta um pouco, mas em nenhum momento supera o pico de 57% do ano de 2012. O que de fato ocorreu foi um aumento da descrença com os partidos entre a classe média, segmento no qual os que não confiam em partidos passou de 56% em 1995 para 64% em 2012.
Vale registrar que tal sentimento de indignação é parte estrutural do sistema de democracia representativa e liberal, isso não só no Brasil, mas em todos os países onde esse sistema está em vigor. O sistema representativo, com pouco ou nenhum controle efetivo sobre o poder político, pressupõe um tipo de distanciamento dos cidadãos e cidadãs que gera alienação, desencanto, decepção. E as forças conservadoras da sociedade trabalham, desde sempre, para manter esse sentimento vivo e poderoso, de modo a manter o status quo. A questão da corrupção aparece aqui como a manifestação mais imediata desse afastamento das pessoas comuns do poder real.
Apesar do crescente sentimento de desencanto, e das denúncias de corrupção, a democracia segue funcionando no Brasil. Nossos índices de abstenção eleitoral (abrangendo aqui tanto aqueles que não compareceram como aqueles que votaram branco e nulo) não crescem exponencialmente a cada eleição, pelo contrário, chegaram mesmo a cair: após um índice relativamente baixo em 1989, de 21%, a taxa de abstenção “explode” nos anos 1990, sendo 32% do eleitorado em 1994 e 36% em 1998, para então cair significativamente no século 21, para 26% em 2002, 24% em 2006 e 25% em 2010. Para efeito de comparação, a abstenção nas eleições presidenciais francesas de 2012 foi de 52%, nas eleições gerais italianas de 2013 foi de 45%, ambos os resultados apresentando crescimento da não participação com relação aos pleitos anteriores. O mesmo ocorre em outros países da Europa.
Em outras palavras, não é possível identificar esse sentimento de desencanto com a política na ruptura com o processo democrático de maneira geral. Este, em nosso país, segue forte e funcional do ponto de vista das instituições e também da integração social, tendo em vista as conquistas que a parcela mais pobre da população obteve no último decênio.
Se a abstenção não é um caminho fértil para mapear onde estava essa juventude, podemos buscar nos chamados “fenômenos eleitorais”, isto é, naqueles candidatos cuja votação surpreendeu o quadro político-partidário estabelecido. Se acompanharmos o desenvolvimento desse tipo de processo, talvez possamos encontrar boas pistas para saber onde estavam esses jovens nos últimos anos. Pegamos quatro manifestações eleitorais que galvanizaram esse sentimento difuso de jovens insatisfeitos com a atual organização política e partidária brasileira, que não viveram os tempos neoliberais e que cobram melhores serviços e uma democracia mais efetiva. São elas as eleições municipais no Rio de Janeiro em 2008 e 2012 e eleições presidenciais de 2006 e 2010, com recorte na capital carioca. Em todas essas disputas, candidatos outsiders, de pequenos partidos, sem grandes alianças, catalisaram os votos da juventude de classe média indignada com a corrupção e com a qualidade dos serviços.
Em 2008, o então deputado federal Fernando Gabeira (PV) obteve 25% dos votos válidos para prefeito do Rio de Janeiro, levando a disputa para o segundo turno e quase vencendo. Sua campanha, ao menos no primeiro turno, se concentrou em uma plataforma ambientalista e defensora dos direitos civis, com forte ênfase no debate da ética na política. Em 2012 o quadro se repetiu com um novo protagonista: Marcelo Freixo, deputado estadual pelo Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), conquistou 28% dos votos válidos, mobilizando essa juventude para uma “primavera carioca”, criticando todo o sistema político e econômico, incluindo a corrupção e o modelo de cidade então existente, com serviços caros e ruins.
Com relação às eleições presidenciais na cidade do Rio de Janeiro, em 2006, a candidata à presidenta pelo PSOL, Heloísa Helena, registrou 20% dos votos válidos. A senadora, segundo seu discurso, havia sido expulsa do PT por ser contra a “roubalheira” promovida pelos políticos tradicionais. Já em 2010 a também senadora Marina Silva, que deixou o PT para ser candidata pelo PV, chegou a 32% dos votos válidos na capital. Assim como nos casos anteriores, Marina se apresentou como de fora do sistema político tradicional, e adensou um elemento inédito à sua plataforma, para além do discurso ambiental e do tema da ética: a superação da dicotomia esquerda e direita, representada por PT e PSDB. Para ela, era necessário reconhecer que ambos os partidos fizeram coisas boas e ruins para o Brasil, e que a polarização atrapalhava o país em conquistar novos avanços. Ela se colocava acima da divisão clássica da política em todo o mundo, entre esquerda e direita, em prol de um novo modelo não muito bem definido.
Esses percentuais de votos obtidos por esses quatro candidatos representam, em todos os casos, milhões de cariocas atingidos por sua mensagem e que se mobilizaram em seu favor. E um cruzamento dos mapas eleitorais mostra que os votos vieram praticamente dos mesmos lugares: os bairros de classe média, seja aqueles identificados com uma classe média conservadora, que nunca votou no PT (Ipanema, Leblon, Gávea, Barra da Tijuca) seja naqueles bairros onde o PT costumava ter muitos votos até a “crise do mensalão” (Flamengo, Botafogo, Laranjeiras, Tijuca). Por fim, é fundamental recordar que as quatro campanhas tiveram como protagonistas nas ruas e, principalmente, nas redes sociais (em especial a partir de 2010) justamente a juventude de classe média.
Quadro semelhante pode ser buscado em outras cidades, exercício desnecessário para os fins desse texto. Ao mesmo tempo, outras grandes cidades brasileiras vão apresentar configuração política-eleitoral diversa, como São Paulo, por exemplo, onde os candidatos “anti-sistema” não logram muito sucesso diante da polarização entre PT e PSDB. De todo modo, esse levantamento serve para registrar que essa juventude que ocupa as ruas das grandes cidades não surgiu do nada, mas vem se manifestando de forma difusa desde pelo menos 2006, com crescente grau de insatisfação e indignação na medida em que os problemas do atual sistema político e econômico brasileiro se consolidavam, substituindo os problemas antigos do neoliberalismo nos anos 1990.
O que querem esses jovens
Dadas às características dessa onda de manifestações – tão repetidas pelos “especialistas” da grande mídia – tais como a mobilização horizontal pelas redes sociais e difusão das pautas, além da rejeição à chamada política tradicional, é bem difícil definir o que querem esses jovens. Na verdade, essa sequer é a pretensão desse texto. Mas é sim factível e frutífero levantar alguns dos problemas do nosso sistema que atingem essa juventude, e que deveriam ser prioritariamente debatidos e solucionados.
Primeiro, o Brasil vive uma situação diferente daquela dos anos 1990, tempos da hegemonia neoliberal. O desemprego de FHC foi substituído por uma situação de quase pleno emprego. O aumento da concentração de renda e da miséria deu lugar a uma forte redução da pobreza extrema e uma lenta diminuição das desigualdades. Houve ainda uma explosão do consumo entre as classes de baixa renda historicamente excluídas desse mecanismo. Por fim, o Estado brasileiro foi reconstruído após o desmonte neoliberal, com significativas melhoras na educação e na saúde.
Mas dez anos de governo petista não resolveram (e nem poderiam resolver) todos os problemas criados por uma modernização capitalista conservadora e excludente tal como a existente no Brasil. Mais do que isso, na medida em que essa década foi resolvendo alguns dos problemas estruturais brasileiros, outros limites e impasses do nosso modelo de sociedade foram prevalecendo no cotidiano da população como um todo e dessa juventude em particular.
Nesse sentido, no mesmo texto sobre a nova classe trabalhadora, publicado no início de maio eu afirmei que não há como negar que a vida nas cidades piorou em muito nesses dez anos de desenvolvimento. O aumento da quantidade de carros em circulação congestionou as ruas das cidades; os novos postos de emprego continuam sendo gerados nos locais mais distantes dos bairros populares, levando a nova classe trabalhadora a fazer deslocamentos enormes em um transporte público de péssima qualidade; as periferias, favelas, “comunidades”, bairros populares, seguem carentes de opções de lazer e cultura, enquanto esta nova classe trabalhadora tem cada vez mais condições sociais e financeiras de desfrutar desse direito outrora restrito aos mais ricos; as melhores opções de ensino superior também estão distantes da juventude dessa nova classe, que entra nas universidades pelo Prouni e precisa fazer um esforço gigantesco para estudar, saltando de um lado a outro da cidade, em uma tripla jornada diária.
A hipótese trabalhada no texto era de que a partir das questões do direito à cidade poderíamos mobilizar a nova classe trabalhadora para construir uma mudança qualitativa no atual modelo de desenvolvimento brasileiro, agregando à questão do acesso ao mercado de trabalho e consumo a pauta da conquista de direitos fundamentais e a execução de reformas estruturais que desmercantilizem nossa sociedade.
Novamente, e pelos mesmos motivos, subestimamos o fato de que essas condições de vida poderiam mobilizar não só a nova classe trabalhadora, mas também a classe média tradicional. Esta também sofre com os grandes engarrafamentos urbanos, ou seja, o problema da mobilidade afeta a todos; seu o custo de vida aumentou muito nas grandes cidades, com o crescimento dos preços dos aluguéis e dos custos para acessar os bens culturais. Os serviços públicos, por mais que tenham apresentado melhoras com relação aos anos 1990, são ainda insuficientes para toda a população, e sua qualidade nem sempre acompanha sua universalização. A tudo isso se soma a pauta da corrupção.
Não é por acaso, portanto, que essas manifestações de massas tenham começado pela revolta com o aumento das tarifas dos transportes públicos, e que rapidamente outras pautas tenham surgido, sempre de modo difuso, reivindicando mais verbas para a saúde e educação e não para a Copa do Mundo, ou defendendo o poder de investigação do Ministério Publico (contra a PEC 37) em nome do combate à corrupção.
É preciso ainda analisar o papel das forças da direita nessas mobilizações, em especial após os acontecimentos do dia 20 de junho, quando militantes de partidos de esquerda e organizações “tradicionais” dos movimentos sociais – Central Única dos Trabalhadores (CUT), Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), União Nacional dos Estudantes (UNE) – e também ativistas feministas e do movimento negro foram agredidos fisicamente em São Paulo e no Rio de Janeiro por grupos conservadores organizados em nome do anti-partidarismo, com apoio ou ao menos conivência de parte da juventude de classe média que estava nos atos.
Ora, é natural que, em um processo de mobilizações de massa, a direita conservadora, que não puxou esses atos, tente se aproveitar das mobilizações para construir sua agenda anti-petista. E ela fará isso usando todos os meios que dispõe, próprios do seu autoritarismo histórico e estrutural, provocando o medo e a violência, igual a sempre fez, em especial na conjuntura pré golpe de 1964. O erro é confundir essa minoria de direita organizada com a maioria de classe média que está nas ruas. Mais uma vez recorro ao debate sobre a nova classe trabalhadora para refletirmos sobre as mobilizações juvenis atuais. É comum classificar essa nova classe trabalhadora como “mais conservadora”. E contra isso escrevi que:
“Partindo de Gramsci, pode-se problematizar a ideia de conferir à nova classe trabalhadora um conjunto de valores definidos como 'conservadorismo popular'. Pertencemos a algum grupo social que possui determinadas valores e ideias que são distintas de outros grupos. Nas palavras de Gramsci: 'pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado'.”
Essa dinâmica contraditória serve para todas as classes sociais, para a classe trabalhadora organizada em sindicatos, para a nova classe trabalhadora emergente, para a classe média tradicional, quer seja aquela mais progressista que já votou na esquerda quer seja aquela que assume posições reacionárias desde os anos 1960. Por isso, é totalmente compreensível que exista um sentimento anti-partido forte nas manifestações, e que isso venha aliado a uma critica difusa ao sistema e à corrupção. Afinal, o sistema representativo pressupõe algum grau de alienação. Em determinados momentos históricos tal estranhamento é maior para algumas classes, e menor para outras.
É provável, por exemplo, que ao longo dos anos 1980, quando lutamos pela redemocratização, o desencanto da classe média com a democracia fosse menor, e que este tenha aumentado na medida em que o regime democrático não soluciona os seus problemas fundamentais, o contrário ocorrendo com os mais pobres, que aumentaram sua crença da democracia na medida em que, a partir do governo Lula, saíram da miséria, tiveram acesso a alguns direitos e foram incluídos à sociedade de consumo. É evidente, porém, que para essa juventude nas ruas, que não viveu as lutas do final do século 20, o sistema não representa seus anseios e demandas.
A questão é que, muitas vezes, os anseios e demandas da classe média são capturados pela direita conservadora que quer paralisar o processo de distribuição de renda e ascensão social da nova classe trabalhadora. E as atuais manifestações são uma oportunidade histórica de construir uma nova dinâmica social no país, quebrando essa relação entre demandas da classe média e direita conservadora.
A nova oportunidade histórica
Muitos dos jovens em marcha pela redução de aumento da passagem estão afirmando que não se trata apenas de R$ 0,20, mais de direitos. Esses direitos aparecem em geral como mobilidade urbana, saúde e educação, quase sempre misturados com o tema da corrupção, todas essas pautas que são temas clássicos da esquerda. Ou seja, possuem um sentido progressista inquestionável, embora venham muitas vezes acompanhados de demandas conservadoras, como a repulsa aos partidos ou a crítica ao assistencialismo do bolsa-família. Algumas vezes o alvo do sistema é o Estado, o que joga água no moinho do conservadorismo, mas em diversos outros momentos o alvo é o Capital, personificado nos lucros das empresas de ônibus ou nos lucros da FIFA com a Copa do Mundo. E quase sempre, novamente, esses sentimentos vêm misturados.
A questão é como intervir nesse processo, sabendo que as forças conservadoras e a grande mídia vão tentar direcionar as mobilizações para o seu campo, criticando o governo, tentando atingir a Dilma, reduzindo a luta ao combate à corrupção.
Ao campo progressista, formado por aquelas e aqueles que querem construir um Brasil radicalmente democrático e justo, cabe intensificar a participação nas mobilizações, com as bandeiras dos direitos e da desmercantilização. Os partidos de esquerda devem ouvir as muitas vozes das ruas, e tentar dialogar com um novo programa para o Brasil. Não basta mais falar em redução da miséria ou nas conquistas dos últimos dez anos. É urgente listar uma nova série de conquistas, organizar um novo programa que dê conta, em especial, do tema dos direitos e do fortalecimento da democracia. Um novo programa que leve em conta mecanismos de radicalização democrática, tipo orçamento participativo, tão caros ao PT nos anos 1980 e 1990, e que contribuam para diminuir o desencanto democrático e ao mesmo tempo ajudem a combater a corrupção; uma nova visão de cidade, onde o mercado imobiliário, o mercado de transportes, o mercado da saúde e da educação sejam de fato regulados, com lucros limitados e com a construção de políticas públicas que transformem cada vez mais esses serviços e direitos.
Construir esse programa não é impossível. A campanha Haddad para prefeito trabalhou nesse sentido, e não foi por acaso que o atual mandatário da capital do Estado de São Paulo conquistou a maioria dos votos entre os trabalhadores e as classes populares que moram nas periferias, mas também entre a parte progressista da classe média tradicional, que votava no PT nos anos 1990 e se afastou do partido depois de 2005.
As atuais manifestações, se bem aproveitadas pelo campo da esquerda, podem mudar a dinâmica social do país, permitindo o estabelecimento de uma aliança sólida entre as classes populares, as classes trabalhadoras e as classes médias, construindo processos de mobilização que ajudem os governos progressistas a tomar as medidas justas para a maioria da população, como ocorreu com a redução da passagem.
O próprio pronunciamento da presidenta Dilma, na sexta-feira, dia 21 de junho, apontou para essa direção: em meio às criticas que ela fez ao caráter violento de uma minoria dos manifestantes (sem criticar no mesmo grau a excessiva violência policial), a mandatária brasileira pregou a constituição de um pacto para universalizar e melhorar a qualidade dos serviços no país, dialogando com a demanda dos milhões de jovens em luta e apontando para uma nova dinâmica social de avanços progressistas e estruturais.
Esse sentido positivo, progressista, está longe de estar dado na atual conjuntura política brasileira. As ruas estão em disputa, e outras duas hipóteses estão colocadas: primeiro, as forças de direita podem ganhar e hegemonizar as mobilizações – hipótese pouco provável, tendo em vista que os partidos de direita tendem, em seus governos estaduais e municipais, a aprofundar o distanciamento democrático, os casos de corrupção e a mercantilização dos direitos. Desta forma, o PSDB e seus aliados não se apresentam como alternativas para essa juventude de classe média.
Uma segunda hipótese está no arrefecimento das mobilizações nas próximas semanas, com uma retomada da dinâmica de manifestação desse sentimento difuso através de candidaturas “fora do sistema”. Nesse cenário, a ex-senadora Marina Silva, que está em vias de confirmar a criação do seu próprio partido político, chamado “Rede Sustentabilidade”, larga na frente para receber os votos da maior parte dessa juventude. Aqui, uma vez mais, teríamos um teto de 30% para esse tipo de candidatura nas grandes cidades, tendo em vista que, exclusivamente por fora do sistema político-partidário tradicional, nenhuma força política consegue atingir toda a sociedade, em especial a maioria da classe trabalhadora, seja a tradicional ou a nova classe criada pelo lulismo.
A hipótese de que, acabada a onda de mobilizações, as pessoas voltarão para casa e tudo ficará como era antes, existe (ao que parece, esse foi o resultado dos indignados espanhóis ou do Occupy norte-americano) e deve ser levada em conta. Contudo, isso pouco interessa à esquerda. Está cada vez mais claro para a maioria dos intelectuais e dos atores mais conscientes da esquerda que, mantida a presente configuração política, o ciclo de vitórias eleitorais do PT nas eleições presidenciais iniciado em 2002 está se esgotando em 2014, e que dificilmente o pleito presidencial de 2018 se dará sob as mesmas bases da polarização PT e PSDB, este representando o neoliberalismo e aquele representando o desenvolvimentismo.
Trata-se, portanto, de aproveitar essa nova oportunidade histórica aberta com as mobilizações juvenis de 2013, do mesmo modo que o campo progressista aproveitou as mobilizações anti-neoliberais dos anos 1990 para conquistar a presidência com Lula em 2002 e iniciar a década de políticas desenvolvimentistas anti-neoliberais.
Josué Medeiros é doutorando em Ciência Política pelo Iesp/Uerj, pesquisador no Observatório Político Sul-Americano e professor substituto na UFRJ