Cultura

A guerra cultural nos agride de modo cotidiano e sistemático. Utiliza a violência, simbólica e física, para transformar seus adversários em inimigos a destruir. Não enfrentar a disputa político-cultural será um grave erro

A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) desarticulou mais um acampamento de grupos extremistas de apoio ao presidente Jair Bolsonaro.

O enfrentamento não deve se dar nos moldes semifascistas da guerra cultural, mas como disputa pela hegemonia político-cultural. Foto: PCDF

Aproximam-se as eleições municipais. No estado de exceção em que vivemos, elas significam um lampejo no contexto de graves ataques à democracia, desde o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições antidemocráticas de 2018. Nesta difícil conjuntura, sobredeterminada e ferida pela pandemia tratada de modo irresponsável pelo governo federal, as eleições municipais adquirem um valor político inestimável para a luta pela democracia e contra o autoritarismo.

Por óbvio, as eleições municipais trazem sempre para a cena política vivas demandas relativas às cidades e aos municípios nas quais ocorrem. Mas a atual circunstância vivida pelo país, com graves ameaças de imposição de mais uma ditadura, impõe à agenda das eleições pautas políticas nacionais relativas à defesa dos direitos e das liberdades. No momento de exposição política, que são as eleições, impossível esquecer a luta contra as medidas autoritárias, que atingem as instituições democráticas, a soberania nacional, as conquistas populares e as políticas públicas desenvolvidas nos governos petistas de Lula e Dilma.

Este texto pretende desenvolver argumentos em prol da incorporação política do tema da cultura como dado essencial das campanhas petistas de prefeitos e vereadores. De modo sintético, ele pretende responder à questão: por que o PT deve colocar na agenda política das eleições municipais o tema da cultura? As respostas, por certo, podem ser múltiplas. Cabe no texto trazer algumas delas para estimular o debate público e uma maior atenção com o tema da cultura, dentro e fora do partido.

Em primeiro lugar, vivemos hoje no país uma guerra cultural desencadeada pela extrema-direita que tomou o governo nacional, gestões estaduais e municipais, e se estabeleceu em parte da sociedade civil. A extrema-direita está apoiada pelas classes dominantes, por segmentos médios e até populares, em especial, aprisionados pelo fundamentalismo religioso. A guerra cultural agride, de modo cotidiano e sistemático, áreas como: democracia, liberdades, saúde, educação, universidades, cultura, artes, ciências, direitos, trabalhadores. Ela utiliza a violência, simbólica e física, para transformar seus adversários em inimigos a destruir. Nesta perspectiva não enfrentar a disputa político-cultural imposta será um grave erro político. Como na política não existem espaços vazios a ausência na disputa levará ao avanço do autoritarismo e do conservadorismo das classes dominantes brasileiras e seu ultraneoliberalismo de extrema-direita. O enfrentamento não deve se dar nos moldes semifascistas da guerra cultural, mas como disputa pela hegemonia político-cultural na sociedade em termos democráticos. Isto é, buscando a derrota dos adversários e não o aniquilamento físico dos inimigos pela violência.

Em segundo lugar, desde o golpe de 2016, o campo cultural, majoritariamente, tomou posições públicas a favor da democracia, das liberdades, dos direitos, da cultura, da educação, das ciências, das universidades, da saúde etc. Ele se colocou de modo expressivo contra o golpe de 2016, a gestão Temer, a prisão e interdição da candidatura de Lula, a candidatura e depois a gestão Messias Bolsonaro, além de se posicionar a favor das candidaturas de Lula e depois de Fernando Haddad. Em suma, os agentes, grupos e comunidades culturais, mais expressivos em maioria assumiram posições democráticas e emancipatórios. O movimento Lula Livre foi belo exemplo da generosa atuação política do campo cultural. Ele se mostrou um aliado político de primeira linha, que não pode e não deve ser abandonado.

Em terceiro lugar, para além dessas dimensões político-culturais nacionais, a luta contra a irresponsabilidade do governo federal no enfrentamento da pandemia demonstrou a importância política da estrutura federativa do Brasil. Não fosse a atuação competente de diversos governadores e prefeitos a tragédia brasileira seria muito maior que as mais de 120 mil mortes. Tal atuação na contramão da gestão Messias Bolsonaro demonstra ser possível no âmbito da federação a realização de políticas públicas estaduais e municipais contrapostas aquelas autoritárias e irresponsáveis do governo federal. Neste sentido, os municípios podem desenvolver, mesmo com limitações orçamentárias, políticas públicas de cultura que se oponham às posturas da gestão nacional e se orientem pelas liberdades de criação e expressão, pluralidade, diversidade cultural, cultura cidadã, cidadania cultural e direitos culturais. O desenvolvimento de tais políticas é parte imprescindível do processo de luta pela democracia no Brasil. Além da resistência às violências, simbólicas e físicas, cabe construir experimentos criativos, que expressem alternativas político-culturais para o Brasil. O governo municipal pode se constituir em um relevante espaço de luta democrática e de experimentos inovadores em políticas públicas, inclusive de cultura.

Em quarto lugar, a cultura no século 21 emerge como relevante ativo para o processo de desenvolvimento municipal. Para esta dinâmica se realizar em plenitude, a cultura deve deixar de ser tratada como adorno e ornamento, como mera cereja do bolo, como afirmou diversas vezes o ministro Gilberto Gil. Ela deve se tornar parte efetiva e essencial do plano municipal de desenvolvimento. A cultura precisa se integrar ao plano de municipal de desenvolvimento por meio de diferentes abordagens. Como dimensão econômica do desenvolvimento, a economia dos bens e serviços culturais cresce em ritmo superior à economia de bens e serviços materiais. Tendencialmente a cultura ocupa cada vez mais espaço na economia do século 21. Como dimensão social, a cultura produz identidades coletivas, que organizam e estimulam a autoestima de comunidades, grupos e agentes. Como dimensão política do desenvolvimento, a cultura empodera agentes, grupos e comunidades, animando a postura política ativa. Como dimensão ambiental, a cultura não polui, nem compromete o futuro, pelo contrário ela propicia um desenvolvimento limpo e sustentável. Como dimensão estritamente cultural do desenvolvimento, a cultura incentiva o processo de desenvolvimento do indivíduo e aprimoramento da subjetividade. Deste modo, a cultura se insere no plano municipal de desenvolvimento em suas diversas dimensões.

Em quinto lugar, no mundo contemporâneo as cidades e os municípios adquiriram papéis, antes reservados apenas ao estado nacional. Hoje as relações internacionais não são um monopólio legal dos governos centrais, mas cidades e municípios, a depender de suas capacidades, dimensões e interesses, realizam intercâmbio e trocas internacionais visando seu desenvolvimento. Algo similar ocorre com os planos de desenvolvimento, antes restritos ao âmbito federal. Hoje estados, municípios e inclusive consórcios regionais, a exemplo do Consórcio Nordeste, podem e devem exercer seu papel de sujeitos de processos de desenvolvimento. Claro que planos municipais, estaduais e regionais não substituem os planos nacionais, mas colaboram muito no enfrentamento dos graves problemas de pobreza e desigualdades sociais, que assolam o Brasil. A cultura, a depender das potencialidades em cada município, torna-se componente importante do processo local de desenvolvimento, com destaque para sua associação em políticas transversais como outras áreas: educação, turismo, economia etc.

Outras argumentações são possíveis para demonstrar a relevância que precisa ser dada ao tema da cultura nas eleições municipais de 2020. As indicadas são uma pequena mostra do papel crescente da cultura na política brasileira e internacional. Basta, por exemplo, lembrar do crescimento das lutas e políticas identitárias no mundo contemporâneo. Elas não existem sem seu componente cultural. Uma visão meramente econômico-social da disputa política não se adequa à atualidade. No mundo em que vivemos, cada vez mais a disputa e lutas político-culturais assumem papéis vitais na transformação da sociedade, que setores democráticos de esquerda almejam e buscam realizar.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade Federal da Bahia. Ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia