A reivindicação de que “o cidadão, e não o poder econômico, esteja em primeiro lugar” recoloca o conflito redistributivo no centro do debate nacional
A reivindicação de que “o cidadão, e não o poder econômico, esteja em primeiro lugar” recoloca o conflito redistributivo no centro do debate nacional
Os protestos de junho de 2013 parecem ampliar os horizontes da política e da democracia. A reivindicação de que “o cidadão, e não o poder econômico, esteja em primeiro lugar” recoloca o conflito redistributivo no centro do debate nacional. A possibilidade de contribuir para esse debate motivou a série de artigos sob o tema “Desenvolvimento e política social”, da qual este é o primeiro
Na atual etapa da concorrência capitalista no contexto da globalização, o controle do poder econômico sobre as formas de representação foi ampliado em detrimento da esfera pública, que expressa os interesses gerais da sociedade. As bases materiais e financeiras dos Estados nacionais foram minadas, e eles perderam capacidade de planejamento e de coordenação de ações de longo prazo. Os projetos ambiciosos de transformação da sociedade deixaram de ocupar o horizonte imediato da ação política.
Nesse cenário, o debate sobre o desenvolvimento brasileiro foi interditado por mais de um quarto de século e só nos últimos anos voltou a ser ensaiado nos meios acadêmicos e governamentais. Mas até recentemente a viabilidade da agenda de desenvolvimento esbarrava em limites políticos objetivos, pois, em última instância, a superação do subdesenvolvimento político, econômico e social implica enfrentar o conflito distributivo entre capital e trabalho na perspectiva da luta de classes.
Os protestos de junho de 2013 parecem ampliar os horizontes da política e da democracia. A reivindicação de que “o cidadão, e não o poder econômico, esteja em primeiro lugar” recoloca o conflito redistributivo no centro do debate nacional. O enfrentamento desse ponto reforça a visão de que o desenvolvimento requer Estado forte e democrático.
Esse cenário inesperado abre novas oportunidades para o desenvolvimento brasileiro. A possibilidade de contribuir para esse debate central motivou a elaboração de uma série de artigos que serão publicados nas próximas semanas por Teoria e Debate e pela rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento.
Razões do “mal-estar contemporâneo”
O primeiro conjunto de artigos procurará identificar as razões do “mal-estar contemporâneo” na perspectiva histórica. Como ponto de partida, sublinharei a aparente afinidade entre as marchas atuais e aquelas das décadas de 1970 e 1980. Mesmo considerando a radical especificidade de cada período, observe-se que, em essência, os movimentos anteriores lutavam pela democracia e pelos valores do Estado de Bem-Estar, enquanto os atuais questionam a qualidade da democracia e da cidadania social que vigoram hoje no país.
Para demonstrar esse argumento, revisitarei o projeto reformista e democrático construído pelos movimentos sociais nos anos de 1970 e 1980 que desaguaram na Constituição de 1988, marco do processo civilizatório brasileiro.
Se a análise estiver correta, o próximo passo será enfrentar a seguinte questão: o que ocorreu entre 1988 e 2013?
À primeira vista, essa quadra parece repetir episódios analisados por Celso Furtado (1979) que denotam a “secular capacidade das elites preservarem o status quo social”. Sua indignação traz elementos para compreender que 1988 e 2013, por diversas vezes, a soberania popular ganhou, mas não levou. E, hoje, essa fatura estaria sendo cobrada.
Será destacado que a contraofensiva das elites começou em plena transição democrática, marcada pela formação de amplo pacto conservador, e caminhou em marcha forçada entre 1990 e 2002. A adesão passiva das elites ao neoliberalismo acarretou profunda incompatibilidade entre a estratégia macroeconômica e de reforma liberal do Estado e as possibilidades de desenvolvimento social.
A política social brasileira atravessou acirrada fase de tensões entre dois projetos antagônicos: Estado Mínimo, cerne do neoliberalismo, versus o Estado de Bem-Estar Social, cujos valores haviam sido inscritos na Constituição da República poucos anos antes. A conservação do status quo passava a exigir a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social” da Carta de 1988, dado seu profundo antagonismo com a agenda liberalizante: seguridade social versus seguro social; universalização versus focalização; direitos versus assistencialismo; prestação estatal direta dos serviços sociais versus “Estado Regulador” e privatização; e direitos trabalhistas versus desregulamentação e contratação “flexível”.
Procurou-se impor a focalização como a “única” política social possível no Brasil. A tática ideológica enaltecia programas dessa natureza para pavimentar o caminho para a reforma do Estado que desconstruísse as políticas universais e privatizasse serviços públicos.
Ao contrário do que sustentam analistas acometidos por espécie de amnésia ou sociopatia intelectual, será enfatizado que as sementes do “mal-estar contemporâneo” foram plantadas precisamente nessa quadra.
Em seguida, sublinharei como, entre 2003 e 2013, uma parte dessa herança foi enfrentada, especialmente em função da maior convergência entre objetivos econômicos e sociais a partir de 2006.
Num contexto internacional favorável, o crescimento voltou a ser contemplado na agenda governamental após quase três décadas de marginalização. O governo optou por políticas fiscais e monetárias menos restritivas, sobretudo após a crise financeira internacional de 2008. Com o Programa de Aceleração do Crescimento, o Estado voltou a ter algum papel de coordenação dos investimentos públicos e privados. A melhoria do mercado de trabalho e a recuperação do valor real do salário mínimo foram fatores determinantes para a elevação do consumo das famílias e redução das desigualdades sociais. Papel semelhante tiveram os programas de combate a pobreza extrema e as transferências monetárias da seguridade social.
No entanto, outra parte da herança recebida não foi enfrentada. Muitos dos constrangimentos estruturais das políticas sociais universais e das políticas urbanas permaneceram intocados. Com menor intensidade, a política social continuou a enfrentar tensões entre o Estado de Bem-Estar e o Estado Mínimo. Em alguma medida esse fato tem conexão com ambígua relação que o PT sempre teve com a cidadania social conquistada em 1988. De um lado, teve participação ativa nesse processo, especialmente no campo sindical, trabalhista e na defesa da reforma agrária e da seguridade social. De outro, parece não ter compreendido o alcance desse processo que ajudou a construir.
O “reformismo fraco” dessa etapa também guarda relações com a irrupção do “espírito do Anhembi” em plena campanha eleitoral de 2002. No plano político, a política de alianças abriu espaços para a conciliação de interesses díspares e antagônicos (Singer, 2012).
Esses limites também se devem ao fato de que a “ruptura necessária” (Partido dos Trabalhadores, 2001) com o modelo anterior não foi efetivada. Num primeiro momento, isso decorreu da “chantagem” que os mercados financeiros fizeram com o país em plena campanha eleitoral de 2001. Era necessário “cautela inicial, caso contrário Lula seria desestabilizado”, afirma Belluzzo (2005). Mas o experimento foi longo demais e somente sofreu inflexão marginal a partir de 2006.
Novas oportunidades
Esse “diagnóstico” é importante para elaborar propostas para enfrentar a questão política e o conflito redistributivo que os protestos populares recolocaram no centro do debate nacional.
Sem dúvida, a reforma política é a mais importante das reformas. No entanto, a proposta do plebiscito foi arquivada pelo Congresso Nacional, que ensaia novos expedientes de preservação do status quo.
O conflito redistributivo, implícito na reivindicação de “saúde, educação e transporte público com padrão Fifa”, foi respondido com pactos setoriais em torno de temas minimalistas que escamoteiam complexas questões estruturais. Esse reducionismo também tem sido replicado por atores do campo progressista. É emblemático que muitos pregam a taxação das grandes fortunas, mas não propõem o enfrentamento radical da profunda injustiça fiscal que vigora no sistema tributário brasileiro desde meados da década de 1960 – a começar pelo questionamento do projeto de reforma tributária que tramita no Congresso Nacional.
Será enfatizado que as respostas para esses problemas devem ser pensadas na perspectiva da agenda de desenvolvimento. Elas dificilmente poderão ser encontradas no âmbito restrito de cada política setorial.
O conflito redistributivo se expressa de diversas formas, como na disputa pelos fundos públicos, por exemplo. Não equacionaremos os problemas saúde, da educação e dos transportes públicos sem superar os limites impostos ao gasto social pela captura de fundos públicos pelo poder econômico. Da mesma forma, teremos de enfrentar temas estruturais complexos, como a reforma tributária, a revisão do pacto federativo, a reforma do Estado e da gestão pública e a contenção da mercantilização em várias frentes das políticas sociais, entre outros. A questão da saúde deve ser pensada na perspectiva da Seguridade Social, que desde 1989 sofre graves riscos de desconstitucionalização.
Será preciso resistir às pressões e tentações pela retomada da política macroeconômica excessivamente ortodoxa e contrária ao crescimento e ao desenvolvimento. A necessária busca pela competitividade externa e a defesa da indústria não podem ser obtidas pela penalização do emprego, do salário e do mercado doméstico, que tem sustentado o crescimento do país. O Estado deve ser fortalecido para ter papel ativo nas transformações exigidas pela sociedade e não teremos desenvolvimento sem enfrentar as causas estruturais da concentração da renda e da riqueza.
O aproveitamento das novas oportunidades requer consensos entre os diversos atores do campo progressista em torno da importância da formulação de novo projeto nacional de desenvolvimento, que articule políticas econômicas e sociais num contexto de reforço do papel do Estado e da centralidade da dimensão da política e da democracia em uma perspectiva ampliada.
O objetivo desta série de artigos é contribuir para que essa nova oportunidade – aparentemente histórica – não seja desperdiçada.
Referências
BELLUZZO, L.G. (2005). Entrevista. “Medo da esperança”. Carta Capital, 11/7.
FURTADO, C. (1979). “Brasil: da República oligárquica ao Estado militar”. In FURTADO, C. (Org.). Brasil: Tempos Modernos. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
PARTIDO DOS TRABALHADORES (2001). A Ruptura Necessária. XII Encontro Nacional, realizado em Olinda (PE), entre 14 e 16 de dezembro. Resoluções de Encontros e Congressos e Programas de Governo. Partido dos Trabalhadores (Fundação Perseu Abramo).
SINGER, A.V. (2012). Os Sentidos do Lulismo – Reforma Gradual e Pacto Conservador. São Paulo: Companhia das Letras.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento