Política

O projeto dos dominantes era não só retirar a esquerda do poder político, como afastá-la juntamente com os setores democráticos do cenário político do país, mas o pleito de 2020 mostra que tal aniquilação não ocorreu

A sobrevivência da esquerda e dos setores democráticos é algo a ser muito comemorado. Foto: Marcelo Camargo/ABr

Muitos comentaristas/jornalistas políticos comemoraram o suposto retorno da política nas eleições de 2020. Para eles estaria sendo superada a atitude antipolítica, que caracterizou as eleições de 2016 e 2018 e que viabilizou a vitória de desconhecidos, intransigentes e inimigos de qualquer diálogo político. Ou seja, partidos e pessoas distantes do campo democrático, próximos da extrema-direita e com aparente discurso antissistema, mais voltado à desconstrução da democracia que à derrubada do capitalismo.

Efetivamente tais posições autoritárias emergiram com muita força naquelas eleições, com a ascensão da extrema-direita, de partidos como o PSL e de nomes como Messias Bolsonaro, dentre outros. Nas eleições de 2020 tal avalanche amenizou. Poucas foram as vitórias de candidatos de extrema-direita assumidos. Neste sentido, Messias Bolsonaro e seu bando foram os grandes derrotados das eleições deste ano. Sem dúvida, um alento nada desprezível para a reconquista da democracia no Brasil, atingida pelo golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016, que depôs a presidenta legítima, e pelas eleições não democráticas de 2018. Derrotar a extrema-direita é condição vital para a democracia no Brasil e no mundo.

A comemoração tem limites não só pela presença e votação ainda relevante de setores da extrema-direita; pela contaminação das eleições por candidaturas de pastores, militares e milicianos; pela violência acontecida na campanha eleitoral e principalmente pelo avanço de partidos vinculados ao mal chamado “centrão”, que não tem nada de centro e tudo de fisiologismo, a exemplo do PP e do PSD, e de partidos mais nitidamente de direita, como o DEM. O declínio do PSDB pode ser imputado à contradição entre sua pretendida imagem democrática e sua atitude de incentivo ao golpe e de estímulo à produção do ódio, fabricado pela grande mídia, sempre controlada e/ou submissa aos tucanos.

Todos estes partidos estão irmanados em sua adesão irrestrita ao (ultra)neoliberalismo de Paulo Guedes/Messias Bolsonaro, que busca destruir os direitos da cidadania e todas as conquistas das políticas públicas dos governos democráticos, em especial, aquelas implementadas nas gestões petistas de Lula e de Dilma. O que resta de civilidade e democracia no país não está apenas ameaçado pelo (ultra)neoliberalismo, que amplia ainda mais as enormes desigualdades sociais, mas pelo descompromisso destes partidos com a democracia e com a defesa da civilidade. Eles não tiveram nenhum pudor em participar do golpe e em apoiar a extrema-direita no poder. Eles não se contrapuseram com o vigor necessário aos descalabros da gestão Messias Bolsonaro nas suas continuadas agressões à cultura, à educação, à ciência, à universidade pública, ao meio-ambiente, à soberania nacional e a setores da sociedade, como povos originários, mulheres, negros e demais segmentos explorados e oprimidos. Também não serviram de contraponto ao estímulo constante de Messias Bolsonaro à violência, ao ódio e aos gestos e discursos destituídos de verdade e de qualquer civilidade.

Nesta perspectiva, a chamada volta da política, tão comemorada pela grande mídia, é o retorno da velha política das classes dominantes, com seus escandalosos privilégios; seu descompromisso com a superação das desigualdades, das opressões e da exploração sociais; sua atitude de exclusão e desrespeito aos segmentos majoritários da sociedade brasileira. Ou seja, comemora-se mais do mesmo, apenas com pequenas limitações aos desatinos da gestão Messias Bolsonaro. Dificilmente estes partidos das classes dominantes vão deixar de apoiar o governo federal. Antes vão utilizar sua força ampliada pelas eleições para extorquir do governo mais vantagens e privilégios para eles e para as classes dominantes. O avanço de tais setores políticos pode apenas representar pequeno freio ao extremismo de Messias Bolsonaro, sem nenhuma ruptura mais substantiva agora. Tão somente abre a possibilidade da costura de uma alternativa política neoliberal sem Messias Bolsonaro em 2022. Para que isso seja possível, a condição para todos eles é o desmantelamento dos setores democráticos e de esquerda.

O projeto dos dominantes foi não só retirar a esquerda do poder político, mas afastar a esquerda e mesmo os setores democráticos não associados à esquerda do cenário político brasileiro. A eleição de 2020 demonstra que tal aniquilação não ocorreu. Apesar da brutal instrumentalização de expedientes midiáticos, jurídicos, políticos, econômicos e sociais para desmoralizar e derrotar esquerda. Apesar da construção do ódio e da violência para destruir a esquerda. Apesar da transformação da esquerda de adversária política legitima no regime democrático em uma inimiga, a ser aniquilada. Apesar de todas estas atitudes antidemocráticas, legais e ilegais, a esquerda sobreviveu, inclusive o PT, alvo maior da fúria dos dominantes por ter chegado à Presidência com um trabalhador e uma mulher e ter vencido quatro eleições presidenciais consecutivas em 2002, 2006, 2010 e 2014. A sobrevivência da esquerda e dos setores democráticos é algo a ser muito comemorado, pois eles são básicos para o processo de luta pela democratização do país e para a transformação da democracia formal, a ser conquistada, em uma efetiva democracia substantiva, que garanta direitos para todos, destrua privilégios e enfrente a desigualdade social.

A esquerda, ainda que fragilizada, disputou eleições e ocupou relevantes espaços políticos e eleitorais em todo Brasil, seja em prefeituras, sejam em câmaras de vereadores. Das 57 cidades que têm segundo turno nas eleições de 2020, 26 contarão com a presença da esquerda, com candidatos oriundos do PT (15), PSB (8), PSOL (2) e PCdoB (1). A ampliação de bancadas em câmaras de vereadores em diversas cidades aponta para a presença da esquerda e de setores democráticos em vários municípios.

Outro dado vital que não pode ser desconsiderado na análise é a floração de um conjunto relevante de novos agentes políticos eleitos, na maioria ligada aos partidos de esquerda e aos setores democráticos, que agendam novas pautas emancipadoras na cena política, a exemplo de questões culturais, ambientais, de gênero, de igualdade racial, de orientação sexual, de juventude etc. Tais candidaturas trazem inovadoras e potentes agendas para renovar o cenário político atual e para o fundamental embate contra autoritarismo, privilégios, desigualdade, violência, ódio e discriminação, que se ampliaram a partir do golpe de 2016 e da tomada do poder pela extrema-direita. Além de novos conteúdos, estes agentes buscam inventar formas de atuação e participação na política, muito desgastada tanto pela sistemática campanha da grande mídia dominantes contra a política, quanto por práticas nada republicanas de parte importante dos políticos tradicionais e de um sistema político corroído, que necessita ser radicalmente democratizado.

A sobrevivência nacional da esquerda e seus sinais de atualização e renovação devem ser vivamente comemorados por todos aqueles que têm compromisso com a democracia e a luta pela transformação da sociedade. Entretanto, não podem fazer esquecer que sua atuação não atende e/ou corresponde às necessidades enormes do grave momento em que (sobre)vivemos no país. Na atualidade brasileira se assiste a complexa combinação de pandemia, irresponsavelmente (mal)tratada pelo governo federal, e pandemônio, conjunção caótica e sobreposta de graves crises: econômica, social, ambiental, política, cultural e ética. A deterioração da situação do país ameaça sua população, nosso presente e nosso futuro. Ela exige muito mais da esquerda e dos setores democráticos. Exige uma atuação política mais ampla, atualizada, clara, consistente, diferenciada, inovadora, potente e radical.

Os desafios para a esquerda e os setores democráticos são gigantescos. Eles têm que estar à altura da gravidade do momento presente. Na atual conjuntura, o desafio político mais imediato emerge como a urgente constituição de frentes democráticas e de esquerda para vencer a direita e a extrema-direita nos embates do segundo turno das eleições de 2020. Tais frentes podem, em prazo mais longo, desenvolver uma dinâmica de atuação mais unificada, que o Brasil e sua população tanto precisam para reconquistar a democracia, lutar por seus direitos e batalhar pelo acesso a políticas públicas, que garantam um país melhor, mais justo e criativo para os brasileiros.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade Federal da Bahia. Ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia