Passos nas escadas. Sons abafados vindos do passado. Como se do Catete, do Piratini, do La Moneda quisessem ainda Getúlio, Brizola, Allende nos dizer de coragem, dignidade, fidelidade às convicções, capacidade de oferecer a vida em nome delas, se preciso. Há um encontro nesses três palácios. Encontro de três homens. Tal encontro nos ajuda a compreender a história. Exemplo de homens dispostos a sustentar um limite a partir do qual não há transigência possível.
Ao lembrar os três em seus palácios em 1954, 1961, 1973, evoco Walter Benjamin e sua ideia: o passado não se entrega a nós. Ele só nos envia sinais cifrados. E tais sinais dão conta misteriosamente dos anseios de redenção presentes nele. E as lutas atuais constituem a chave para entrever a verdade das lutas ocorridas anteriormente. A recuperação do passado se dá na forma de recordações que cintilam num momento de perigo – está lá no belo livro de Leandro Konder sobre Walter Benjamin. Tais recordações nos proporcionam “a pequena imagem fugaz, em contraposição ao conforto científico”.
É o perigo do momento a trazer a afinidade com os nossos predecessores. Essa afinidade nos alerta para não cedermos diante da opressão. O passado acena para nós de longe, mas só será possível aproveitar a riqueza das energias humanas contidas nele se formos capazes de agir no presente com genuína paixão libertadora, dispostos a assimilar todas as experiências vividas pelos homens de maneira enriquecedora, assimilar todos os sonhos generosos vividos por eles.
Benjamin dava muita importância ao aproveitamento de todas as experiências humanas do passado, voltado sempre às lutas vividas no presente. Os oprimidos de hoje só terão ânimo para combater “se re-assimilarem”— como registra Leandro Konder a respeito dele – “as aspirações e os anseios dos oprimidos de ontem”. Trata-se de buscar o que foi sonhado, desejado, e que restou reprimido. É com esse sentimento minha sensação de ouvir ecos daqueles palácios.
Do Palácio do Catete, Getúlio Vargas capaz de na manhã de 24 de agosto de 1954 barrar um golpe com um tiro no próprio coração. Derrotar com seu gesto as forças conservadoras, as aves de rapina, as hordas imperialistas, cujos privilégios não aceitavam ver arranhados em um milímetro sequer. Quisera, a partir da eleição de 1950, na volta ao poder, construir uma Nação soberana e seguir adiante na melhoria das condições de vida do povo. Deram o golpe, e antes de consumado com a destituição dele do poder, derramou o próprio sangue para derrotá-los. Deixou a carta-testamento como seu último discurso ao povo brasileiro, um legado jamais esquecido.
Fala na espoliação do capital estrangeiro, da burguesia nacional vendida, da lei de lucros detida, da revolta contra o reajuste do salário mínimo, da reação contra a Petrobras, dos obstáculos à Eletrobras. E ao final, abre seu coração.
Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência.
Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
Extraí trechos aleatoriamente, tentando expressar a dramaticidade do gesto do presidente, a coragem dele diante dos golpistas. Um documento nunca mais ignorado.
Lições vindas do Palácio Piratini. Brizola, com sua audácia, disposição de luta, arraigadas convicções, fez do Piratini, de onde governava o Rio Grande do Sul, o bastião da resistência ao golpe dos três ministros militares, dispostos a não aceitar a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Nos porões do palácio, montou o Movimento da Legalidade, incluindo uma cadeia de emissoras de rádio, mobilizou o povo gaúcho, e acabou por levar o III Exército a não ter alternativa senão apoiar a atitude dele de exigir o respeito à Constituição, dar posse a Goulart. A ordem de bombardear o palácio, dado pelo ministro da Guerra, não foi suficiente para amedrontá-lo, provocar o seu recuo, e Goulart acabou tomando posse.
Pela Rádio Legalidade, já ciente da ordem dos ministros militares para o bombardeio do Piratini, sua sentença de morte, não reluta em denunciar os EUA, os trustes internacionais, e espera o desfecho, o fim da vida.
Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória.
Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem com os armamentos que compraram à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estamos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo.
A fortuna da história o manteve vivo, mas a morte esteve próxima, e ele insistiu sempre: é melhor a morte digna do que a vida sem honra.
Palácio La Moneda. Um Salvador Allende sitiado, os aviões prontos para o bombardeio, golpe já consumado, os militares oferecendo um avião para ele e família se retirarem a salvo do país, naquele 11 de setembro de 1973, e ele irredutível. Se os militares não eram capazes de cumprir dignamente os deveres deles, ele cumpriria o seu. Fora eleito pelo povo, e não sairia do La Moneda senão morto. Em duas ocasiões, fala por emissoras ainda não destruídas, e reafirma sua convicção de que não poderia se entregar ou fugir. Iniciado o bombardeio, antes que o capturassem ou o fuzilassem, ele próprio se mata, depois de ter dito que mais cedo do que os conservadores esperavam o povo voltaria às ruas com as bandeiras defendidas durante o seu governo.
Allende fala à Rádio Magallanes.
Yo no voy a renunciar. Colocado en un tránsito histórico, pagaré com mi vida la lealtad del pueblo. Tienen la fuerza, podrán avassallarnos, pero no se detienen los procesos sociales ni con el crimen nin con la fuerza. La Historia es nuestra y la hacen los pueblos. Sigan ustedes, sabiendo que mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes Alamedas por donde pase el hombre libre para construir una sociedad mejor. Viva Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores! Estas son mis últimas palabras. Tengo la certeza de que mi sacrificio no será en vano; tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonia, la cobardia e la traición.
Curiosidade. O jornalista Flávio Tavares, na casa seus 20 anos, encontrou Allende em Xangai logo depois do suicídio de Getúlio, em 1954. O gesto do presidente brasileiro havia impressionado muito o então senador. Em mais de uma conversa com Tavares, tentou entender a escolha de Getúlio. Mais tarde, Allende se verá na trágica contingência de escolher entre a vida e a morte. O livro leva um título sugestivo: O Dia Em Que Getúlio Matou Allende.
As falas, nos três casos, são muito mais ricas. Extraí os incríveis pontos de unidade desses homens diante da vida política, a capacidade deles de encarar a morte em nome de suas convicções, a profunda consciência anti-imperialista dos três, a certeza da ação dos EUA nos três golpes, e o mundo gira, gira, e os EUA seguem interferindo na América Latina, golpes sobre golpes, não importa se efetivem de outras maneiras. Ao ouvi-los, sentimos a força da história: o golpe de 1954 adiado por dez anos e derrotado em 1985, o de 1961 derrotado pela audácia de Brizola, e nos dias de hoje assistimos a alamedas chilenas derrotando o neoliberalismo. Eles vaticinaram isso.
Allende em sua fala à Rádio Magallanes lembra na despedida, senão diretamente, a despedida de Getúlio da carta-testamento, como inegavelmente antes Brizola o faz, ao admitir que poderia ser morto. Moniz Bandeira lembra isso no seu livro Fórmula Para o Caos: ascensão e queda de Salvador Allende (1970-1973). Um documento a ligar os três grandes homens pela sua força, pelas verdades contidas nele, ainda presentes nessa América Latina de veias abertas, a sangrar até hoje.
Três homens de luta. Defendiam seus sonhos. Trazem-nos alento para os dias atuais.
Para que renovemos seus sonhos não realizados.
Para que tenhamos coragem de enfrentar a luta em condições adversas.
Sonhos constituem o alimento da vida.
Que vale a vida se não for vivida com dignidade?
Se não for vivida animada por sonhos?
Referências
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Fórmula Para o Caos: ascensão e queda de Salvador Allende (1970-1973). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, 640 p.
KONDER, Leandro. Walter Benjamin: O Marxismo da Melancolia. Rio de Janeiro: Campus, 1988, 112 p.
NETO, Lira. Getúlio: da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 429 p.
TAVARES, Flávio. 1961: o Golpe Derrotado. Luzes e sombras do Movimento da Legalidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011, 240 p.
TAVARES, Flávio. O Dia Em Que Getúlio Matou Allende e Outras Novelas do Poder. Rio de Janeiro: Record, 2004, 332 p.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vols.), entre outros