Parte 6 – Levantes: a marcha das mulheres (1)
Protótipos e padrões
O Anjo Azul (1930) – dir.: Josef Von Sternberg. Estrelado por Marlene Dietrich, que nas décadas a seguir encarnaria a vamp, ou seja, a mulher fatal, a que nenhum homem resistia. Dona de forte personalidade e presença marcante, entrou no imaginário quando fez esse filme, ainda antes de sair da Alemanha e conquistar Hollywood, vivendo uma delas, que seduziu e levou à ruína um pacato professor. Marcado pela estética do Expressionismo Alemão, é um clássico. YOUTUBE
Ninotchka (1939) – dir.: Ernst Lubitsch. Greta Garbo vive a Comissária do Povo, soviética e assexuada, comunista inexorável, que vai em missão revolucionária a Paris, onde acaba tendo contato com as seduções do Ocidente decadente. Comédia divertidíssima, obra de um mestre. Greta Garbo viveria muitos outros papeis de mulher forte e dona de seu nariz, entre eles os de Ana Karenina e Rainha Cristina. O roteirista de Ninotchka é Billy Wilder, que também seria o roteirista de outro filme mostrando uma mulher extraordinária: Bola de Fogo, com Barbara Stanwick. Doravante seria diretor de brilhante carreira. CINEMALIVRE.NET
A Costela de Adão (1949) – dir.: George Cukor. Os anos 1940, quando as mulheres substituíram os homens engajados na Segunda Guerra, viram surgir as “novas mulheres”, profissionais e independentes. Mas o interregno não dura, e quando os homens regressam e retomam os empregos, elas voltam para a cozinha. No cinema, há muitas comédias, em geral protagonizadas por Katharine Hepburn ou Barbara Stanwick ou Rosalind Russell, em que as mulheres, além de seguirem uma carreira, dão um banho de inteligência e arte de viver nos homens. Famoso por ser simpático às mulheres, George Cukor faria 10 filmes em parceria com Katharine Hepburn, que era autônoma e vibrante também na vida real. Em A Costela de Adão, a protagonista e seu marido advogam a mesma causa no tribunal, um deles na defesa e o outro na acusação. Divertidíssimo, magistral mesmo. Depois dessa fase, as mulheres em posição de destaque escasseiam novamente, sendo apenas possível pinçar um ou outro filme, antes da nova onda destes últimos anos.
Tudo Que o Céu Permite (1955) – dir.: Douglas Sirk, outro diretor de filmes simpáticos às mulheres, que encena um romance entre uma viúva e seu jardineiro, socialmente inferior e mais jovem. Os filhos já crescidos interferem e acabam com o namoro. É inesquecível a cena em que os filhos presenteiam a mãe com a grande novidade da época, anunciada como o maior aliado no combate à solidão: um aparelho de TV. Vê-se o olhar desencantado da mãe refletido na tela do aparelho. Mas ela tem a coragem de enfrentar a chantagem e a reprovação não só familiar como comunitária, e reata o namoro. HBO
Modesty Blaise (1966), com Monica Vitti e Barbarella (1968), com Jane Fonda. Surgem estas mulheres autárquicas e de combate, verdadeiras Donzelas-Guerreiras. Elas são espiãs, com grandes missões, correndo perigos extraordinários e suportando provações extremas. Essas heroínas libertárias já anunciam a segunda onda do feminismo, que logo estouraria. Os filmes são engraçados, irreverentes, põem as mulheres lá em cima; além disso, são visualmente belíssimos e sofisticados. Nenhum dos dois é hollywoodiano: o primeiro é inglês, dirigido por Joseph Losey, que se refugiou na Inglaterra para escapar à perseguição macartista, e o segundo, francês, dirigido por Roger Vadim. Vistos hoje, conservam todas as suas excelsas qualidades. YOUTUBE e TELECINEPLAY
Bagdá Café (1987) – dir.: Percy Adlon. Filme alemão. De como uma mulher oprimida conquista sua liberdade. No meio do deserto do Arizona, ao fim de uma briga, uma turista alemã de meia-idade salta do carro e vê o marido ir embora. Fica por ali, no Bagdá Café, e, silenciosa e discreta, vai-se adaptando aos excêntricos frequentadores: poucos, pois o Café fica no meio do deserto. Um trunfo do filme é transformar o vilão estereotipado Jack Palance (especialista em papeis como Átila o Huno etc.) num delicado pintor que se apaixona por ela e a transfigura – rechonchuda e nua – num Botero. GLORIA.TV, YOUTUBE
Thelma e Louise (1991) – dir.: Ridley Scott. A amizade e tentativa de evasão de duas mulheres do interior, uma garçonete e uma dona de casa. Vemos as duas avançando na sororidade, na defesa mútua, enquanto fogem e são perseguidas por forças repressivas crescentes que incluem o FBI, e que não entendem nada do que se passa. Tornou-se um clássico. GOOGLEPLAY
Orlando – A Mulher Imortal (1992), dir.: Sally Potter. Filmagem do célebre romance de Virginia Woolf, em que a protagonista, num enredo que cobre 400 anos, às vezes é mulher e às vezes é homem. Lindíssimo filme, suntuoso mesmo, que transcorre em cenas lentas, cheias de majestade. Tilda Swinton, grande atriz, é tratada como uma madona renascentista, graças à maquiagem e à iluminação, com reminiscências de Boticelli e Leonardo da Vinci. E sobretudo no presságio de um sorriso que não desabrocha, lembrando La Gioconda, aliás Mona Lisa. Decididamente feminista, reconhece em Virginia Woolf uma precursora. OLINK.TV, TELECINEPLAY
A Velha Dama Indigna (1965) – dir.: René Allio. Francês. O texto fonte do roteiro é de Bertolt Brecht. Uma velhinha enviúva após uma vida inteira dedicada à servidão doméstica. Para escândalo dos filhos, resolve viver a vida, sozinha, em sua modesta medida: ir ao cinema, beber nos bares, frequentar reuniões políticas, viajar. Filme de estreia de um desconhecido, arrebatou o grande prêmio no Festival Internacional do Rio de Janeiro.
Ensina-me a Viver (1971) – dir.: Hal Ashby. Outra velha dama indigna. Tira sua graça do contraste entre uma senhora idosa dotada de grande alegria de viver e um jovem suicida, que com ela aprende a valorizar a existência. YOUTUBE
Estrelas Além do Tempo (2016) – dir.: Theodore Melfi. O filme mostra três cientistas – mulheres e negras – que fizeram todo o trabalho dos cálculos de base da corrida espacial da NASA e que jamais foram reconhecidas, a glória ficando para os astronautas americanos, todos homens e brancos. Sem lembrar que a segunda pessoa a circundar a Terra em vôo solo foi uma mulher, a russa Valentina Tereshkova, em 1963, logo depois do pioneiro Gagarin, e bem antes de Neil Armstrong pisar na Lua. TELECINEPLAY, NOW, GOOGLEPLAY, YOUTUBE
A conquista dos direitos
As Sufragistas (2015) – dir.: Sarah Gavron. Não podemos esquecer o início do movimento feminista na virada de século 19 – 20, quando a grande causa era o voto para as mulheres – donde o nome do movimento. As mulheres que reivindicavam o mero direito de votar em eleições livres e democráticas eram debochadas, espancadas, presas. E quando faziam greve de fome eram, uma ignomínia, submetidas à alimentação forçada através de tubos na garganta. Demoraria ainda a obtenção do direito ao voto: 1920 nos Estados Unidos, 1934 no Brasil, 1944 na França. E parece mentira: na Suíça só em 1971. GOOGLEPLAY, YOUTUBE
Revolução em Dagenham (2010) – dir.: Nigel Cole. Em 1968, as 172 mulheres dentre os 40 mil operários da Ford na Inglaterra entram em greve por paridade salarial. Engrupidas pelo sindicato (“divide as forças” etc.), pelos políticos e ameaçadas pelo presidente da Ford, vão em frente e acabam ganhando a causa, que se torna a Lei dos Salários Iguais em 1970. Estritamente histórico. YOUTUBE
Suprema (2018) – dir.: Mimi Leder. Ficção narrando a vida de Ruth Bader Ginsburg, juíza (coisa rara...) naquele antro de machistas que é a Suprema Corte dos EUA. Sua trajetória desde a primeira causa e a firmeza em batalhar pela inconstitucionalidade de tudo que prejudicasse as mulheres. Modesta e nada metida a celebridade. A exemplo de Simone de Beauvoir, só na velhice seria considerada uma precursora e um ícone da causa feminista. HBO, YOUTUBE
As Mulheres de Flint (2017) – dir.: Bruce Beresford. De como simples donas de casa da pequena cidade de Flint, Michigan, levaram avante uma campanha para denunciar e reparar a contaminação por chumbo da água da torneira, para o que as autoridades não ligavam a mínima. Baseado igualmente em fatos reais é Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento (2000 – dir.: Steven Soderbergh), em que uma mãe solteira com três filhos investiga e encabeça um movimento para denunciar água contaminada. NOW, GLOBOPLAY, YOUTUBE
A Lei (2014) – dir.: Christian Faure. A vida de Simone Veil, a ministra da Saúde que enfrentou a direita francesa e a Igreja Católica até consegueguir aprovação para a Lei do Aborto (1975), pioneira no mundo inteiro, que descriminalizou o aborto na França. Discreta e reservada, de ética inquebrantável, Simone Veil era sobrevivente de Auschwitz e capitaneou outras causas de oprimidos, como presos políticos e imigrantes. Seria depois a primeira presidente da recém-criada União Europeia, cuja consolidação muito lhe deve. Rara honra, hoje repousa no Panthéon. Este é um filme de ficção, mas há também belos documentários, como Simone Veil, la loi d´une femme (2007), dir.: Caroline Huppert, ou Simone Veil, une histoire française (2004), dir.: David Teboul. YOUTUBE
Artemisia (1997) – dir.: Agnès Merlet. Biografia romanceada de Artemisia Gentileschi, grande pintora do barroco italiano, que teve vários de seus quadros atribuídos a autores homens. Sua luta por reconhecimento e por impor-se como chefe de ateliê. Depois, seu ostracismo por duzentos anos e o recente resgate de sua importância na história da pintura. YOUTUBE
Malala (2005) – dir.: Davis Guggenheim. Conta a história da adolescente paquistanesa Malala, líder da reivindicação de escolaridade para as meninas de seu país. Por isso os talibãs lhe deram um tiro na cabeça: quase morreu, sofreu inúmeras cirurgias, mas continuou firme em sua luta. YOUTUBE
Meu Nome é Greta (2020) – dir.: Nathan Grossman. A sueca Greta Thunberg, de 16 anos e sofrendo da Síndrome de Asperger, iniciou uma vigília em frente ao Parlamento sueco, reivindicando ações contra o aquecimento global. Desencadeou um movimento que se estendeu aos adolescentes do mundo inteiro. National Geographic.
Libertem Angela Davis (2011) – dir.: Shola Davis. Documentário sobre a trajetória da grande militante e intelectual negra norte-americana, aluna de Herbert Marcuse. Sua vida é mostrada desde os tempos do Black Power, quando foi presa e processada por atentado, passando pelo ativismo na causa negra e na denúncia das condições carcerárias, até os dias de hoje. NOW, TAMANDUA, GOOGLEPLAY, YOUTUBE
Rosa Luxemburgo (1986) – dir.: Margarethe von Trotta. Biografia da pensadora marxista Rosa Luxemburgo, ou Rosa a Vermelha, como era conhecida. Socialista e pacifista, fundaria, ao lado de Karl Liebknecht e outros companheiros, a Liga Spartakus, embrião do futuro Partido Comunista Alemão. Tentou de todos os modos impedir o deflagrar da Primeira Guerra Mundial. Morreria assassinada, em Berlim. TELECINEPLAY, YOUTUBE
Frida – Naturaleza Viva (1983) – dir.: Paul Leduc. Ficção mexicana sobre a vida de Frida Kahlo, a grande pintora mexicana que, com originalidade única, foi realizando ao longo da vida uma espécie de autobiografia pictorial, pondo na tela seu corpo sofredor, oferecendo a quem a contempla mutilação, vísceras, veias abertas, sangue. Uma vida fora de série, uma arte fora de série. O mérito de Paul Leduc, diretor também mexicano, foi dedicar-se a reproduzir na tela do cinema a textura e as cores das telas com as tintas de Frida. YOUTUBE
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate