Especial

Recortando figuras e fazendo suas collages, manejando tintas, papeis e telas, por meio das quais muita muamba estratégica chegou às ruas e ao conhecimento dos defensores dos direitos humanos

Trabalhos realizados por Alipio Freire e Sergio Sister no Presídio Tiradentes. Foto: Daniel Garcia/Teoria e Debate

Perdoem-me a aparente grosseria por antecipação, mas Alípio também soltava puns, para eventual surpresa de alguns. E também era muito capaz de pequenas, tão quanto inocentes, malandragens, como declarar azedo o festejado bolo de ameixas de minha mãe, do qual tanto gostava, sobrante em pedaço quase médio, digamos, na prateleira de nosso coletivo da cela 3 e comê-lo por inteiro.

Também conseguia, rapidinho, fazer baixar o alto nível político que ele mesmo propusera para uma manifestação, como aquela organizada pelos coletivos do Tiradentes para a recepção aos desbundados que voltavam de sua cínica apoteose na TV declarando que tortura, em terras do Brasil, não havia, não, senhor. Era, igualmente, um mau inimigo conquanto fosse adversário leal, mas não os esqueceria até o fim da vida, a inimigos e a adversários.

Com isso quero dizer que Alípio era vários, como todos os seres humanos ditos normais, e que sua morte, em 22 de abril, demostrou que valia por si mesmo e pela obra que deixou, pela qualidade de amigos que colheu e pela falta de virtudes de inimigos e adversários que fez e odiou. E foi até levado a sério por gente que o apreciava mais a distância.

Mas ele tinha algo mais, algo que o distinguia na poeira da manada. Como ser político – e o foi a vida inteira –, Alipio Raymundinho Viana Freire era um esteta ao trabalhar com as mãos, recortando figuras e fazendo suas collages, manejando as novidades que eram as canetinhas japonesas, as tintas, papeis e telas, por meio das quais muita muamba estratégica chegou às ruas e ao conhecimento dos defensores dos direitos humanos mundo afora.

Conhecemo-nos lá no Cadeião, no Velho Tira, o Tiradentes que com sua ajuda prestimosa foi transformado em Um Presídio da Ditadura, nome oficial Recolhimento de Presos Tiradentes, relíquia colonial na sua forma original de mercado de escravos. Sei até a data, um chuvoso 25 de novembro, ano 1969. Uma segunda-feira. Vínhamos de Ribeirão Preto, onde nosso processo, o 98/1969, fora tornado oficial, alguns de nós com passagem anterior por Operação Bandeirante e Dops. Éramos 31 companheiros com prisão preventiva decretada e, portanto, com direito a uma vaga de habitação no cadeião da Avenida Tiradentes, localizado do outro lado do Museu de Arte Sacra e do Batalhão Tobias de Aguiar, da antiga Força Pública assenhorada pela novel Polícia Militar. E ali quase ao lado ficam a Pinacoteca e o Jardim da Luz.

Como grupo regional de combate à ditadura tínhamos uma característica: quase não conhecíamos ninguém ali à exceção de Gigi, Serginho Aparecido dos Santos, secundarista conhecido meu e de Sílvio Rego Rangel que havíamos visto no Dops um mês atrás.

Oito daqueles 31 novos fregueses foram destinados ao pavilhão 1, à cela 3, exatamente onde já estava o Alípio, e também outro amigo para o resto de nossas vidas inteiras, Ricardo de Azevedo.

Chegávamos preocupados com nossa situação, com o nosso futuro, e interessados em saber sobre a rotina e sobre a tranca e sobre a possibilidade de voltar à Oban e ao Dops. Só tínhamos perguntas e nossos hospedeiros nem sempre sistematizavam as respostas, mas nos trataram com honrosa respeitabilidade: advogados, Auditoria, enquadramento na nova ou na antiga Lei de Segurança Nacional, visitas, presença das famílias.

Alípio era dos que falavam a pequenos grupos, instruindo e tratando de nos fazer despreocupar, relatando a rotina. Já fui com a cara dele quando recordou o Barão de Itararé, Apparício Torelly, citado por Graciliano Ramos em sua Memórias do Cárcere, que alguns de nós lêramos. Nossa primeira noite de sono, ali, afinal, foi menos febril por causa de companheiros como o Alípio, que diziam que o tempo estava a nosso favor, que viver ali requeria um certo reaprendizado. Que, ali, os relógios funcionavam de maneira muito própria...

Eu tinha 20 anos e vivi no Cadeião por vinte meses – pelo menos quinze dos quais à sombra do Bio, o próprio Alípio.

Ele sabia que teria pena longa, e ajustou-se, então, desde o início, para não se deixar levar abaixo por uma perspectiva, assim, tão braba. Ele trabalhava com as mãos pois tinha habilidade nisso, e ensinou a quem quis aprender a mexer com miçangas, a cortar o couro, a estabelecer linha de produção de sacolas feitas com fios plásticos. Incentivava a leitura àqueles que não a praticavam, ouvia programas de rádio com os boleros do Mosca, do Flavião e do Marujo e exigia silêncio para que todos aproveitassem os concertos diários da rádio Eldorado, amados por Jacob Gorender, que chegaria à cela 3 no início de 1970, e por alguns outros.

Era, Raymundinho, daqueles companheiros escolhidos para ouvir os confiteor de aflições que se abatiam sobre alguns de nós, quase sempre pequenas tragédias pessoais que escangalhavam a vida de quem estava impedido, pelas grades do Cadeião e pelos estamentos da ditadura, de manter presença física junto à encrenca em si mesma, de restabelecer amores, de estabelecer novos padrões de vida e de tolerância. Era um processo que nos recordava Shakespeare in A Tempestade: “O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui”. Fiquei surpreso quando ele me relatou algumas dessas circunstâncias e me pediu para que dividisse com ele a assistência a uns e a outros.

Talvez tenha sido a vivência mais forte, mais retumbante, que tive no Cadeião: o tratar de dividir as preocupações de outros companheiros com o Bio. Ele, ali, de certa forma, me entregava um diploma de maturidade. Inesquecível.

Vicente Alessi, filho, foi preso político de 1969 a 1971. É jornalista profissional