Especial

O sorriso largo, a escuta generosa e o comentário agudo, sem concessões, tornava a nossa convivência com Alipio prazerosa e criativa

Santo André era uma das primeiras administrações petistas e se por um lado ríamos e nos divertíamos muito, por outro encarávamos nossa missão com muita seriedade e determinação. Foto: Daniel Garcia/TD

Tenho certeza que todos que o conheceram concordam que seria muito melhor estar falando com ele do que falar sobre ele. É sempre bom tê-lo em nossa lembrança, já que estará sempre em nosso coração. A Rose Spina sugeriu que eu escrevesse sobre minha relação com Alipio Freire centrando na época que trabalhamos juntos em Santo André (SP). É muito difícil realizar o luto desse guerreiro que me ensinou a enfrentar adversidades com firmeza, amor e humor.

Fomos apresentados em situação bem desagradável num cativeiro da Operação Bandeirante (Oban) em 1969. Tinha apenas 17 anos, Alípio 24. Não fui fisicamente torturado, minha tortura era ver os companheiros torturados. Já ali sua atitude serena e seu senso de humor ao levantar o moral da cela, ensinou-me a enfrentar aquela situação. Logo fui liberado, mas ele permaneceu preso por longos anos.

Em 1982, fiz campanha para a Ponte para Utopia, a sua plataforma como candidato a deputado, tendo como sempre a alegria como a prova dos nove. Na verdade convivi com o Alípio muito menos do que gostaria.

Em Santo André nos víamos todos os dias. Dividíamos um golzinho da prefeitura, Alipio, Altair e eu. Todas as manhãs nos encontrávamos por volta das 7 horas na Rua Galeno de Almeida, onde morava, e rumávamos para Santo André. Alipio sentava no banco da frente ao lado do Mixirica, o motorista da prefeitura. Eu e Altair com as pernas encolhidas no banco traseiro. Para desespero do Altair, eu e Alípio fumávamos e nos dias mais frios ele era obrigado a respirar a fumaça dos Marlboros, às vezes, durante mais de uma hora de viagem. Na época não nos sentíamos nem mesmo culpados e Altair, apesar de reclamar, lidava bem com aquilo que hoje seria impensável.

Era um bom momento do dia em que as conversas corriam soltas e se dependesse de nós os problemas do planeta estariam resolvidos. Não chegamos a tanto, mas alguns, bem específicos da cidade de Santo André, essas conversas com Alípio concorreram, sem dúvidas, para resolvê-los. Na verdade essas conversas mais apontavam problemas que solucionavam. Era assim que se trabalhava e que se fazia política. Era uma das primeiras administrações petistas e se por um lado ríamos e nos divertíamos muito (afinal a alegria era a prova dos nove), por outro encarávamos nossa missão com muita seriedade e determinação. Com muita alegria, mas sem brincadeiras.

Celso Daniel colocava a cultura como um dos pilares para cidadania. Tivemos vários projetos da cultura com as outras áreas de governo e Alípio fazia a coordenação matricial desses programas. Projetos importantes como a recuperação do Cine Teatro Carlos Gomes e muitos outros. Poderia ter me dedicado a esses projetos nesse pequeno texto, mas preferi me concentrar no que para mim Alipio tinha de mais especial, que se traduzia numa atitude revolucionária e amorosa, em que o sorriso largo, a escuta generosa e o comentário agudo, sem concessões, tornava a nossa convivência prazerosa e criativa. Que sua atitude permaneça em nós. Afinal, o mundo precisa mais do que nunca ser melhorado.

Celso Frateschi é ator e diretor, foi secretário de Cultura da Prefeitura de Santo André