Especial

Diante da heterogeneidade política e ideológica da América do Sul, a melhor política para o Brasil é reconhecer as diferenças e trabalhar para a unidade da região, a partir de necessidades comuns

Os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, Néstor Kirchner, da Argentina, e MAG. Arquivo de Família

Marco Aurélio Garcia sempre pensou a política como agência humana que opera sob condições históricas dadas. Assim sendo, “todas as iniciativas do país na América do Sul deveriam estar orientadas pela necessidade de articular realidades distintas muitas vezes contraditórias”. Como decorrência, a integração regional só poderia ser bem sucedida se baseada no respeito, às diferenças e completava, “porque não há mais espaço para a homogeneidade da submissão”1. Estas duas premissas, respeito às diferenças, apostando na pluralidade, e rechaço à submissão de eventuais interferências externas, guiaram a sua prática política à frente da Assessoria Internacional dos presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Sua falta, neste momento em que o Brasil está fazendo o oposto da recomendação de MAG, como era carinhosamente chamado por aqueles que compartilhavam de suas ideias, é ainda mais sentida. Ao contrário da interpretação capciosa da oposição à política externa dos governos do PT, que acusava aquela de ideológica e partidária, tendo como alvo, na maioria das vezes, o próprio Marco Aurélio. Diante da heterogeneidade política e ideológica da América do Sul, a melhor política para o Brasil é reconhecer as diferenças e trabalhar para a unidade da região, a partir da identificação de necessidades comuns, independentemente da natureza do regime ou da coloração ideológica. Foi sua negativa à hegemonia da implantação de um regime neoliberal na região e às pretensões hegemônicas dos Estados Unidos, que galvanizaram as críticas da oposição conservadora ao governo PT no que elas iam de encontro à ideologia de grande parte das elites brasileiras.

Para Marco Aurélio, como acontece com todos os intelectuais progressistas latino-americanos, a principal ameaça à soberania e à independência econômica de nossos países provem da eventualidade da internacionalização – leia-se, da possibilidade da intervenção norte-americana – dos conflitos inter ou intra-estatais na região. Neste quadro, reflexo de nossa situação geopolítica, inserida na área de influência histórica dos EUA, a unidade regional constitui imperativo estratégico. Como no passado, o principal objetivo daquele país no Hemisfério Ocidental é impedir mudanças na correlação de forças que possa vir a ameaçar seus interesses. Se não é possível alcançar total homogeneidade ideológica, situação que com a exceção de Cuba, ocorreu na Guerra Fria, prevalece a máxima na doutrina hemisférica, do dividir para imperar, mesmo nos tempos atuais. Com o fim da disputa bipolar, o retorno à democracia nos anos 90 e a emergência do ciclo progressista na década seguinte, a região se tornou bem mais heterogênea que no passado. Nestas condições, a tarefa da política externa altiva e ativa é impedir que a heterogeneidade se transforme em divisão e polarização, condições que nos colocaria em extrema fragilidade diante da ameaça de intervenção externa.

Um dos principais legados de MAG, que expressa esta orientação, foi a concepção do papel da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) incorporando a cooperação na diversidade e a articulação de necessidades comuns em realidades heterogêneas. Infelizmente sua morte prematura nos privou de seu livro de memórias, onde este e vários outros episódios da política sul-americana do Brasil teriam lugar de destaque.

Marco Aurélio era um entusiasta da opção sul-americana. Para ele, a América do Sul dispunha de ativos importantes, como a extensão e a fertilidade de suas terras, o potencial energético, as maiores reservas de água doce do mundo; a rica biodiversidade; seu parque industrial e sua reserva científica e tecnológica. Acima de tudo, ressaltava a condição de uma zona de paz o que a diferenciava sobremaneira de outras regiões do Sul geopolítico, bem como a superação da “era das ditaduras”. Dois desafios, contudo, persistiam dificultando uma projeção global da região: a pobreza e a desigualdade social, e a ausência de uma “efetiva interconexão dos países da região”2.

Escrevendo em 2005, divergia das raquíticas análises correntes que identificavam uma esquerda populista, do mal, e uma socialdemocrata, do bem. Com esmero analítico e profundidade teórica explicava as distintas trajetórias dos países sul-americanos em função das diferentes relações entre partidos, sindicatos, movimentos sociais e identitários e o Estado no momento do ingresso das massas na vida política latino-americana, produzindo diferentes matizes democráticos. A alegada instabilidade da Venezuela era encarada como parte deste processo de ajustamento da expansão dos direitos e da inclusão social em um contexto de fragilidades dos partidos e instabilidade política após o fim do regime oligárquico bipartidário em fins dos anos 1950. Por isso, era um defensor do ingresso da Venezuela no Mercosul. Tal como San Tiago Dantas, no início dos sessenta lidando com a ameaça da expulsão de Cuba do sistema interamericano, afirmava que dever-se-ia “a todo custo evitar o isolamento de Caracas do contexto sul-americano”3.

Hoje estamos voltando ao tempo da “homogeneidade da submissão” e o atual governo desfaz com maligna precisão todos os pontos e iniciativas que marcaram a política ativa e altiva dos governos do PT. MAG já não está mais aqui para ver a desconstrução de sua obra, tecida em alinhamento com os dois outros vértices do triângulo da política externa do PT, em particular no governo Lula: Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães.

Maria Regina Soares de Lima é professora no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ