O Supremo Tribunal Federal confirmou a certeza do julgamento do Habeas Corpus nº 193.726 de sua Segunda Turma. Foi concluído o mais significativo julgamento dos últimos cinco anos no Brasil, no qual restou comprovada a suspeição do juiz Sérgio Moro em todos os processos judiciais contra o ex-presidente Lula.
Há uma primeira constatação que me parece inevitável: a importância da legalidade democrática e civilizatória, devidamente articulada com o conjunto concreto de fatos. Se a justiça tarda é porque também falha. Por quais razões a última instância de nosso Poder Judiciário não corrigiu, desde 2015, os abusos que se anunciavam de forma inequívoca? Já no início de todo o processo que conduziu ao golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e a abertura do principal processo contra o ex-presidente Lula em 2016, juristas brasileiros de respeitada produção intelectual advertiram que a Operação Lava Jato agia à margem da Constituição e das leis. A decisão do mesmo Supremo Tribunal Federal de reconhecer a incompetência, além da posterior suspeição do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, só veio em março de 2021.
Por outro lado, uma segunda constatação é igualmente obrigatória: sem um sistema de instituições testadas nas adversidades da vida política, a mesma legalidade democrática não oferece resistência contra sua destruição. Não basta que uma ou outra esfera da burocracia judiciária – Poder Judiciário, Ministérios Públicos, Polícias Federal e Estaduais, órgãos de investigação – funcionem de acordo com a previsão normativa: é necessário que todo o conjunto tenha esta firme disposição. Ou pelo menos, a parte mais importante do referido conjunto.
O que se pode cobrar desta burocracia judiciária brasileira de 2014 para cá é o fato de que já se tinha amplo conhecimento – histórico e intelectual – de como o fenômeno da utilização do Direito como arma política contra adversários pode se operar. Não faltam estudos sobre o assunto. E não há como afirmar que os integrantes desta burocracia desconhecessem o fenômeno. Talvez como poucos, eram todos sabedores deste acúmulo histórico. Como explicar o que aconteceu? Por que permitiram a perversão da Constituição e das leis, cuja integridade juraram garantir? As respostas são complexas e longas. Mas arriscarei algumas ligeiras proposições.
Dentre os números estudos recentes sobre o assunto, destaco a reflexão do professor irlandês Barry Cannon, em sua obra The Right in Latin America – Elite Power, Hegemony and Struggle for the State, de 2016. Cannon classificou os episódios que se deram em Honduras (2009), no Paraguai (2012) e no Brasil (2016) como smart coups, os quais tiveram por objetivo a remoção da centro-esquerda do poder nestes países governados pela “maré rosa”, ou pink tide. Cannon sustenta que não se trata somente de assegurar o poder político em favor dos setores da direita na América Latina, porém de assegurar o neoliberalismo econômico nas estruturas de poder destes Estados. Assim, a remoção de governos mais distantes da versão neoliberal constituiu-se em elemento central da agenda política de uma sociedade complexa orientada pela direita econômica e política. Grandes mobilizações populares, greves, desestabilização econômica e o apoio de algumas das instituições governamentais passam a compor o cenário favorável à remoção desses governos eleitos.
O destaque de Cannon fica com o registro do caso brasileiro, no qual se comprovou o papel dos principais meios de comunicação social, que passaram a desempenhar centralidade na promoção de manifestações de massas que visam, em última análise, retirar um governo de esquerda do poder, apesar da sua extraordinária moderação. Cannon avança em sua análise, e incorpora o contínuo controle, pela direita da América Latina, de algumas instituições do Estado, como o Poder Judiciário, mesmo após os sucessos eleitorais da pink tide. Esta poderosa presença no interior da burocracia judiciária do Estado, aliada à construção diária de uma cultura favorável ao neoliberalismo, à competitividade, à necessidade de alternância de poder e supostamente contrária a qualquer forma de corrupção mostraram-se como elementos essenciais a permitirem o ambiente de troca de governos; troca na qual a qualificação por golpe de Estado exigiria especiais esforços discursivos e intelectuais para a maior parte da população.
O caso brasileiro chamou ainda a atenção de mais intelectuais estrangeiros. Perry Anderson produziu dois conhecidos ensaios publicados na London Review of Books: “Lula’s Brazil”, publicado em março de 2011; e “Bolsonaro’s Brazil”, em fevereiro de 2019. No primeiro, a visão sobre o Brasil durante os dois governos do presidente Lula e sua tarefa desde o início de seus governos, qual seja, a redução da miséria.
No seu segundo texto, Anderson detectou o papel do Supremo Tribunal Federal diante das ações que se desenrolaram desde a Operação Lava Jato, quando a Justiça Federal de Curitiba começou recorrer à divulgação maciça na imprensa de corrupção na Petrobras, maior empresa brasileira. Dessa forma, a burocracia judiciária de Curitiba utilizou os vazamentos de informação e plantou histórias na imprensa para provocar um curto-circuito no devido processo legal, condenando alvos antes do julgamento nas opiniões públicas. Tais vazamentos, por óbvio, violaram a legalidade, porém, “empregados gratuita e sistematicamente” pelo juiz de Curitiba, Sérgio Moro, conduziram o Supremo Tribunal Federal a permitir a subversão da ordem constitucional, a qual prevê a possibilidade de revisão de decisões judiciais pela última instância da organização do Poder Judiciário, como é igualmente óbvio mundo afora. Para Anderson, o juiz Sérgio Moro poderia assim fazer, porque os meios de comunicação social que utilizou como seu megafone intimidaram os ministros do STF. Esta visão de Anderson se confirma por vozes no próprio STF a recomendarem que o tribunal deveria ouvir o “clamor das ruas”; clamor que Ernst Fraenkel, em 1942, qualificou como “terror das ruas”. Já em 1966, no décimo encontro das Associações Alemã e Francesa de Juristas, em Berlin, o tema da relação entre independência do juiz e opinião pública foi discutido como elemento comprometedor da mesma independência do juiz. O registro de Erhard Denninger sobre o quanto pode a opinião pública, nas sociedades de comunicação de massa, é que esta opinião é ameaçadora para juízes, o que os levaria a tomar posições em função desta recepção, abandonando constituições e leis.
A sobrevivência da Constituição de 1988 mais se deveu à tolerância de seus inimigos do que à força de atores políticos internos que a apoiaram. Este pensamento de Franz Neumann para a experiência Weimar pode alcançar também o Brasil da Constituição Federal de 1988. Quando a expansão de direitos aos mais pobres começou a sair do papel; quando a soberania econômica e política nacional transformaram-se em pautas reais e de ação concreta de governos; quando direitos previdenciários e trabalhistas se mostraram consolidados, parece ter chegado o fim da tolerância dos inimigos da Constituição.
Este final de tolerância encontrou apoio no Poder Judiciário e no Supremo Tribunal Federal. Trágica coincidência histórica: a Constituição que mais concedeu garantias, liberdade de ação e de organização ao Poder Judiciário não encontrou neste mesmo poder a força democrática que o emprestou: sucumbiu a Constituição em meio à retórica vazia de refundação da República, iluminismo, posição contra majoritária; elementos meramente argumentativos que se mostraram completamente vazios ante a força da sociedade complexa orientada pela direita econômica e política.
Mas por quais razões se deu a mudança de rumo da mais elevada instância judicial? Reconhecer a suspeição de juiz é caso raro na jurisprudência nacional. Ainda mais quando se junta a incompetência à suspeição. Caso único. Porém, desencadeado por manobras interpretativas presentes no próprio Supremo Tribunal. A cronologia do caso não autoriza outra conclusão. É aqui que ingressa a necessidade da história e da teoria política para a compreensão do todo. A disposição dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski em liderar a retomada da validade da Constituição e das leis somente teve efeito noutros membros do tribunal quando a opinião pública tomou conhecimento do que já se sabia: a parcialidade do juiz Sergio Moro e da Força Tarefa da Operação Lava Jato foi resultante de conluio da burocracia judiciária com atores políticos internos e externos contra a política democrática brasileira e o interesse nacional. Foi a força das revelações desse conluio que dissipou qualquer dúvida de que especialmente o ex-presidente Lula havia sido vítima do que conhece como lawfare.
Com o caminhar do governo Bolsonaro, foram dissipadas também quaisquer dúvidas sobre o que já se afirmava antes de sua eleição. Bolsonaro e seus apoios não possuem o menor compromisso com democracia, estado de Direito, devido processo legal. As ameaças ao Supremo Tribunal Federal e a seus membros chamaram a atenção do preço que se pagaria acaso continuasse o tribunal inerte diante das claras e seguidas manifestações contra a institucionalidade. O tribunal, que foi o mesmo ao silenciar quando um general da reserva o ameaçou, às vésperas do julgamento de um pedido de habeas corpus em favor do ex-presidente, decidiu por retomar a legalidade democrática de que tanto se reclamava.
Sem dúvida que o julgamento da suspeição do juiz Sérgio Moro é alvissareiro. Mas a realidade deve ser percebida como instituições que representam as garantias da democracia de todos, e não deve repousar sobre as características pessoais de seus integrantes. Por isso que a análise deve manter o olhar nas instituições que o pacto democrático procurou estruturar. No interregno temporal de 2014 até os dias de hoje, a burocracia judiciária insistiu em se distanciar das advertências da história do constitucionalismo moderno. Foi quando permitiu um golpe parlamentar; chancelou violação de cláusulas pétreas da Constituição, deixou falar mais alto o subjetivismo individual de investigadores e julgadores diante de letra da lei. Ao perceber o rumo danoso da prosa, resolveu reagir.
A lição que mais uma vez se deixa confirmar é aquela de que não se deve desprezar o que a história nos traz. É este elemento que pode iluminar nossas mentes para assimilar com a frieza da razão o cenário que se tem pela frente. O Supremo Tribunal Federal assistiu à Constituição ser violada por seis longos anos. Ao ver que a vítima poderia ser não somente a democracia brasileira, resolveu agir. Que o aprendizado permaneça daqui em diante.
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é doutor e pós-doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt, professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza