É preciso compreender alcances e limites das lutas daqueles anos que deixou ao menos um legado: o inconformismo
É preciso compreender alcances e limites das lutas daqueles anos que deixou ao menos um legado: o inconformismo
Uma corrente de idéias começou a ganhar força ainda em 2007, quando Nicolas Sarkozy, então candidato à Presidência da República na França, propôs-se a acabar com o que resta de 1968. Antecipando-se à comemoração do 40° aniversário daquele ano mítico, o jornalista Elio Gaspari prenunciava em sua coluna dominical o tom (auto)crítico que tem tomado as discussões sobre 1968, ao dizer que o melhor seria que aquele ano não tivesse existido, ao contrário de 1989, este sim o ano significativo, devido à queda do império soviético. Ele criticava a sacralização de 1968, que omitia o culto dos jovens rebeldes à violência das massas (Folha de S. Paulo, 26/12/2007, p. A9). Por sua vez, o ex-guerrilheiro e deputado Fernando Gabeira declarou que gostaria de “dizer adeus a tudo isso” (Revista Época, n. 503, 7/1/2008, p. 70).
Nada contra a necessidade apontada por Gaspari da crítica à mistificação daquele ano, sua sacralização e certa “sessão saudade de 1968”. Mas qual 1968? Os movimentos contestadores de então foram muito diversificados, do pacifismo daqueles que pregavam paz e amor contra a guerra no Vietnã ao revolucionarismo daqueles que achavam que flores não vencem canhões, como dizia a canção de Geraldo Vandré, Pra Não Dizer que Não Falei de Flores ou Caminhando, inspirada no exemplo da revolução cubana. O inconformismo ia da primavera de Praga contra o socialismo real às insurgências contra o capitalismo mundo afora; do surgimento do que se convencionou chamar de questão das minorias – como as lutas específicas de mulheres, negros e homossexuais – à contracultura e ao movimento ambientalista. Para tomar a rica agitação artística do período no Brasil, 1968 foi o ano do nacional-popular e também de seu antagonista declarado, o movimento tropicalista, ambos disputando para saber quem seria de fato revolucionário. Eles entravam nas casas pela televisão, especialmente nos festivais da canção, o que era indicativo de uma contradição: a contestação do período vinha junto com um novo patamar de amadurecimento da indústria cultural.
Um jovem que lê o artigo de Elio Gaspari pode imaginar que os rebeldes e revolucionários de 1968 estavam afinados com o poder soviético. Ora, 1968 foi justamente a expressão do inconformismo com a ordem da guerra fria, crítico do que o filósofo francês Guy Debord à época chamou de sociedade do espetáculo, tanto do “espetacular concentrado” do “capitalismo burocrático” dos países herdeiros do stalinismo, como do “espetacular difuso” da abundância do capitalismo contemporâneo, que acabou triunfando e hoje prevalece soberano (Debord, Guy. La Société du Spetacle. Paris, Buchet-Chastel, 1967).
Para aqueles que, passados quarenta anos, fazem um balanço de vida, acertar as contas com 1968 pode significar coisas diferentes: há aqueles que se penitenciam pela aposta de jovens rebeldes da época na violência popular, aqueles que atestam os exageros da liberdade sexual que redundaram na Aids, sem contar que a crença no potencial libertador do uso de drogas acabou tragicamente, como é sabido. Tampouco faltam os que usam a legitimidade conquistada em 1968 para justificar sua atuação política no presente, fazendo leituras enviesadas do passado. E ainda, claro, há aqueles que se recusam a qualquer tipo de crítica ao que se passou.
Também os estudos acadêmicos espalham-se por todo o planeta, fazendo uma infinidade de interpretações, desde aquelas que vêem 1968 como insurgência contra o capitalismo até as que o consideram um exercício de modernização social, prefigurando o ressurgimento do individualismo dos anos 1970 e 1980; as que tomam 1968 como expressão de conflito de um novo tipo, mais cultural e político do que econômico, e até as que o analisam como conflito de classe tradicional; de interpretações centradas na crise da universidade e revolta da juventude às que enxergam a perda de uma oportunidade revolucionária. O tema revela-se apaixonante e inesgotável, o mais provável é que um encadeamento de circunstâncias explique a época de 1968, cujos limites e ilusões a experiência histórica viria revelar.
O que teria dado unidade a essa época, apesar das diferenças entre as várias propostas rebeldes e revolucionárias? O sentimento generalizado de que transformações sociais profundas estavam ao alcance das mãos, e de que a humanidade caminhava para elas. Parecia possível e urgente transformar, e não se conformar com a ordem estabelecida pela guerra fria. Há quem interprete os anos 1960 – e particularmente 1968 – como a era da teoria. De fato, não faltavam teorizações sobre o que se passava, e elas eram encarnadas apaixonadamente pelos militantes. Mas a ação importava muito mais do que as teorias. Mais do que interpretar o mundo, buscava-se transformá-lo, liberando o potencial criativo da humanidade para mudar a vida em todos os seus aspectos, construindo alternativas de existência que fugissem da polarização entre o capitalismo norte-americano o modelo soviético de socialismo, contra os quais os movimentos de 1968 se rebelavam.
São bem-vindos todos os debates, análises, críticas e autocríticas sobre a época de 1968, que deve ser desmistificada, como tudo. O que não se deve esconder é o fundo político que cerca o debate após quarenta anos: o contraste entre os sentimentos e as idéias, hoje predominantes, de que é preciso adequar-se ao mundo tal qual ele está constituído, com as aspirações que prevaleciam então em setores sociais expressivos, que atuavam coletivamente para transformar a ordem.
Quando Gaspari afirma ter sido “1989 que permitiu aos revolucionários de 1968 a acomodação de suas idéias e biografias ao século XXI”, ele expressa com clareza a reintegração da maioria dos intelectuais críticos e outros agentes sociais dos anos 1960 à ordem estabelecida, como se ela fosse inevitável. Ora, a esperança de 1968 não foi derrotada em 1989, ao contrário, fizera a profecia da falência daquele tipo de regime. Mas esperava-se que o fim do chamado socialismo real redundasse numa vida social em patamar superior ao que prevalecia na era da guerra fria, não no triunfo avassalador de um dos lados. Subjacente a afirmações como as de Gaspari, há o desejo latente de recusar alternativas à organização social, política, econômica e cultural em moldes capitalistas, a pressa em colocar no mesmo barco as utopias de 1848, 1917, 1968, como se todas elas tivessem sido derrotadas em 1989. Expressa-se o combate às forças herdeiras das lutas de 1968, que têm levantado de diversas perspectivas a palavra de ordem “um outro mundo é possível”.
No aspecto político, o que está em jogo hoje no debate sobre 1968 não é tanto a interpretação de suas causas e conseqüências, a crítica indispensável ao que se passou, mas a luta em novos termos entre os que se acomodaram à nova ordem mundial e aqueles que herdaram o espírito de 1968. Esses apostam que é possível e necessário construir uma nova ordem, em que os valores fundamentais não sejam os do lucro, mas os da convivência e realização plena dos seres humanos, em suas relações entre si e com a natureza, que se expressam em lutas pela preservação do meio ambiente, da igualdade entre os sexos, as culturas e as etnias, sem contar os embates renovados por um socialismo democrático. Ou seja, não se trata de encastelar-se no passado, recusando qualquer crítica a ele, mas de compreender alcances e limites das lutas de 1968, que entretanto deixaram ao menos um legado: o inconformismo, em contraste com um tempo como o nosso, em que prevalece o conformismo com a ordem mundial dos vencedores da guerra fria.
Marcelo Ridenti é professor titular de Sociologia na Universidade de Campinas (Unicamp) e pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), e autor de Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução (Record, 2000), entre outros livros.