Política

É possível que daqui a 50 anos, historiadores possam afirmar que o PT foi a principal expressão do movimento operário brasileiro, que retomou um novo ciclo de lutas

É bem possível que daqui a 50 anos, afastados das turbulências deste período, os historiadores possam afirmar tranquilamente que o PT foi a principal expressão do movimento operário brasileiro, que retomou um novo ciclo de lutas na segunda metade dos anos 70 do século XX.

É bem possível que daqui a 50 anos, afastados das turbulências deste período, os historiadores possam afirmar tranquilamente que o PT foi a principal expressão do movimento operário brasileiro, que retomou um novo ciclo de lutas na segunda metade dos anos 70 do século XX. Certamente em condições mais favoráveis do que nós, eles poderão precisar melhor o significado histórico do surgimento do PT, ao amalgamar em suas fileiras as novas correntes operárias, populares e democráticas que brotaram na luta contra a ditadura militar dos anos 60 e 70 e fundi-las, não sem resistência e atritos, com diversas correntes revolucionárias do período anterior. E poderão descrever as políticas que tornaram o Partido dos Trabalhadores o principal instrumento das transformações sociais operadas no Brasil.

Nós, porém, ainda não podemos nos beneficiar desse distanciamento. Somos obrigados a extrair das experiências vividas nos poucos anos de existência do PT as perspectivas reais de sua construção e as políticas que o transformem naquele instrumento revolucionário. E isso só será possível se compreendermos o Partido dos Trabalhadores como produto de um processo histórico, como resultado de condições históricas bem concretas.

Continuidade e ruptura
OPT brota como expressão política do movimento operário e sindical que quebrou os anéis de ferro da repressão ditatorial, ocupando o espaço deixado vago pela falência das antigas organizações de esquerda que, no passado, mal ou bem, esforçaram-se para representar os interesses e aspirações históricas das classes trabalhadoras. Assim, como todo fenômeno histórico, o PT representa certa continuidade, mas representa fundamentalmente uma ruptura.

Ruptura com os limites impostos pela distensão do regime militar; ruptura com os tipos tradicionais de partidos existentes no Brasil. E, do ponto de vista das concepções sobre partidos operários, ruptura com os esquemas até então predominantes na esquerda revolucionária brasileira - para quem um partido só poderia consolidar-se de vanguarda e revolucionário caso se proclamasse marxista ou marxista-leninista, se fosse composto de quadros, tivesse clareza das perspectivas históricas e de seu projeto político e se mantivesse clandestino, para resguardar-se dos golpes repressivos da burguesia.

Rompendo com esses esquemas, que no Brasil já haviam demonstrado esterilidade, o PT surge como um partido de massas, democrático e socialista. E surge com tal suporte social que arrasta para suas fileiras diversos grupos e organizações revolucionárias comprometidos com a luta popular, obrigando-os a rever diversos aspectos das concepções de partido até então vigentes. Alguns abandonam o esquema da clandestinidade; outros admitem no PT um caráter estratégico, embora se considerem o núcleo de vanguarda capaz de garantir tal caráter. Mesmo os que não arredam pé de suas concepções se vêem na necessidade de justificar seu ingresso no PT por considerá-lo uma frente e um instrumento tático por meio do qual podem desenvolver seu próprio projeto político.

O PT convive assim, desde sua origem, com uma condição inerente a suas próprias características de partido de massas, democrático e socialista. Sem haver acertado as contas com os erros históricos da esquerda, várias das tendências do PT, organizadas como partidos dentro do partido, resistem em aceitar a idéia de que um partido com as características do partido dos Trabalhadores possa dirigir o processo de transformação socialista no Brasil. Lembram e relembram que todo partido socialista que adotou o lema democrático e institucionalizou-se como partido de massas resvalou para a social-democracia ou para o socialismo legalista.

É possível que isso tenha ocorrido em alguns casos. Do mesmo modo, aliás, que vários partidos considerados revolucionários etc. tornaram-se caudatários de partidos e governos burgueses, como há exemplos vivos no Brasil. O perigo existe, portanto. Mas existe para todos os partidos socialistas, sejam de massas ou de quadros, sejam democráticos ou centralistas.

 Resgate do socialismo
Ao reafirmar o socialismo como uma de suas características básicas, o PT resgatou uma das principais vertentes do movimento social brasileiro. As idéias socialistas aparecem no Brasil na segunda metade do século XIX, ligadas aos setores progressistas e radicais da sociedade. Constituem, durante muito tempo, uma marca distinta em relação aos projetos reformadores e liberais. E representam, sempre, o alvo predileto da luta dos latifundiários e da burguesia contra os trabalhadores.

Apesar dos pesados ataques da propaganda burguesa contra o socialismo, aproveitando-se dos problemas enfrentados pelos diversos partidos que empreenderam a construção da nova sociedade, o ideal socialista permaneceu vivo e forte entre consideráveis camadas dos trabalhadores e da intelectualidade brasileira. Nesse sentido, o esforço do PT em definir o caminho do socialismo no Brasil a partir das condições históricas geradas pela própria sociedade brasileira, contrapondo-se a cópias das experiências externas, representa uma contribuição positiva para firmar o perfil socialista do partido e ajudar os trabalhadores a se libertarem das manifestações da propaganda burguesa contra o socialismo.

Ao mesmo tempo, para ser conseqüente nesse processo de resgate histórico, o PT precisa levar em conta os aspectos negativos da luta pelo socialismo no Brasil. Não pode ignorar que somente em raros momentos as correntes que o defendem conseguiram alcançar certa base de massas. O socialismo não conseguiu transbordar os círculos mais avançados dos trabalhadores e da intelectualidade, nem transformar-se numa aspiração de grandes parcelas da população em virtude da contra-propaganda ideológica e política da burguesia, ou em decorrência dos longos períodos de repressão política ou, ainda, pela estreiteza e sectarismo com que as correntes socialistas se apresentam.

O socialismo jamais conseguiu transformar-se, no Brasil, numa força política suficientemente forte para colocar em xeque o sistema burguês. Embora tenha sido positiva sua persistência como ideal, ele não conseguiu até hoje fazer parte do universo, das aspirações e dos objetivos das grandes massas de trabalhadores.

O PT é a primeira corrente socialista brasileira que apresenta potencialidade real de dar caráter massivo ao ideal socialista. Primeiro porque o Partido dos Trabalhadores surge e se desenvolve como um partido que sintetiza as aspirações e reivindicações das camadas mais amplas da população trabalhadora; porque surge, portanto, como expressão direta e imediata de grandes massas, que o identificam como seu partido. Segundo porque o PT procura construir a idéia e a prática socialista a partir daquelas aspirações e reivindicações, em lugar de querer moldar tais aspirações e reivindicações num modelo preconcebido de socialismo.

Talvez por isso o PT estreite sua base social toda vez que seus quadros e militantes conclamam as massas para a luta por um socialismo que não entendem. Nossa própria experiência tem nos indicado que a ampliação da base social do PT só ocorre quando ele consegue exprimir fielmente as reivindicações imediatas das grandes parcelas trabalhadoras. A experiência mostra também que essa ampliação é uma das principais condições para desenvolver as idéias socialistas como desdobramento daquelas reivindicações na luta contra a burguesia. O estreitamento da base de massas do partido restringe a base social do socialismo e nos coloca mais longe de alcançá-lo.

Socialismo de massas

Por tudo isso, embora seja válida a preocupação em definir os objetivos socialistas do PT, é fundamental considerar que tal definição não pode atrapalhar ou impedir a consolidação do caráter de massas do partido. Só teremos condições de aprofundar a luta pelo socialismo no Brasil se a transformarmos num objetivo e num movimento de milhões de trabalhadores. Nessas condições, o discurso político do PT deve privilegiar a grande maioria da população, aquelas camadas que, postas em movimento, serão realmente capazes de colocar em risco o domínio do capital. E no terreno das medidas organizativas, deve criar canais, espaços e mecanismos que permitam a participação na vida do partido não só dos quadros e militantes, mas também do conjunto de filiados, simpatizantes e apoiadores.

Desse modo, o caráter de massas do Partido dos Trabalhadores não é somente uma condição para ampliar a base para a conquista do socialismo, mas também uma condição para ampliar a participação democrática dos trabalhadores na vida política do país. Nas condições do Brasil, um partido operário e socialista, verdadeiramente enraizado em enormes parcelas da população, que se torne uma instituição nacional contra a qual a burguesia não possa adotar, sem consequências, medidas antidemocráticas e repressivas, é ainda um freio às constantes tentativas de recaídas reacionárias e autoritárias da burguesia.

O caráter democrático do PT impregna suas lutas atuais pela ampliação dos espaços de participação popular e pelo socialismo, resgatando a idéia de que o socialismo não pode nem deve restringir-se à socialização da propriedade dos meios de produção e da riqueza. Também a política deve ser socializada: as grandes maiorias devem ter o direito real de participação no poder. E isso admitindo que essa participação se dê por meio de diferentes expressões políticas ou partidos. Em qualquer sociedade socialista onde subsistam segmentos sociais diferenciados, é necessário que tais segmentos possuam representações políticas próprias e que tais representações tenham espaço de participação no poder, sem o que a democracia não passará de palavra vazia.

Mas o democratismo petista não é somente uma atitude para efeito externo, embora seja da maior importância sua clareza de propósito ante a democracia agora e no socialismo. O espírito democrático do PT rebate sobre sua própria vida interna, valorizando a participação e a crítica das bases partidárias e das massas, como forma não só de demonstrar a coerência de suas propostas democráticas para a sociedade, mas também de criar condições para tornar o PT verdadeiramente um partido de massas.

A definição do Partido dos Trabalhadores como partido de massas, democrático e socialista não é, pois, uma questão formal ou de efeito propagandístico. E a necessidade de tratar corretamente cada um desses aspectos, isoladamente ou de modo combinado, no processo da luta de classes e de construção do partido, também não é um problema de segunda ordem. São elementos estratégicos que devem ser tratados como tais. A ênfase exagerada no caráter de massas pode desfibrar o partido, tornando-o um aglomerado de pessoas com pouca ou nenhuma unidade de ação. O acento exclusivo no caráter democrático, sem incorporar a esse princípio a subordinação da minoria às decisões da maioria, pode transformar o PT numa organização frouxa e inativa. E a ânsia em definir desde já o caminho do socialismo, desligando essas definições do desenvolvimento da luta de classes concreta enfrentada pelas grandes massas trabalhadoras, pode nos conduzir a uma irremediável separação entre as direções e as bases e entre o partido e as massas.

O Partido dos Trabalhadores só se tornará o instrumento fundamental das classes trabalhadoras para a realização das transformações socialistas no Brasil se suas direções e bases souberem combinar, em cada momento, o desenvolvimento e a consolidação de cada uma daquelas características básicas. Agora, concretamente, após as definições estratégicas e programáticas do 5º Encontro, que avançaram na perspectiva da conquista do poder e do início da construção socialista no Brasil pela via democrático-popular, é de suma importância retomar o esforço para ampliar a base massiva do PT.

Massas e quadros também

A adoção de políticas que permitam ao partido capitalizar o sentimento de descontentamento e protesto da grande maioria da população brasileira, seja para superar sua apatia e mobilizá-la para a luta econômica, social e política, seja para impor à Nova República, ao PMDB, ao PFL e ao PDS uma esmagadora derrota eleitoral nas eleições municipais de novembro de 1988, tornou-se um dos problemas-chave para o PT enfrentar com êxito a transição conservadora e mudar a atual correlação de forças. Descobrir as reivindicações mais sentidas das grandes parcelas trabalhadoras, apoiar decididamente tais reivindicações e engajar-se na luta pela sua conquista transformou-se hoje, mais do que antes, numa tarefa crucial para nosso partido. Ao mesmo tempo, unificar as lutas econômicas e eleitorais locais por meio da candidatura Lula e do programa alternativo de governo do PT deve representar um teste de capacidade política inigualável para os petistas que se propõem a assumir o poder e construir uma nova sociedade.

Esse desafio faz com que nos deparemos com contradições de diferentes tipos. Para ampliar o caráter de massas do PT não basta que saibamos adotar políticas mobilizadoras; é preciso, além disso, que saibamos criar canais mais largos de participação massiva nas instâncias partidárias e que formemos rapidamente um conjunto de quadros capazes de relacionar-se com as bases e as massas, captar seus sentimentos, transformar tais sentimentos em propostas mobilizadoras e contribuir para elevar seu grau de organização. E ao formar quadros, corremos o risco de formar uma parcela de militantes que se considere acima das bases e capaz de substituí-las. Neste caso, cavamos um fosso entre direções e bases e entre partido e massas.

Por isso, entre outras coisas, é essencial discutir e repisar uma e mil vezes o significado do caráter de massas do PT, sem o qual ele corre o perigo de não ser democrático nem socialista, não tanto por falta de vontade, mas por inviabilizar-se como força política real.

Evidentemente, o partido tende a firmar outras características. Mesmo tendo por base seu caráter de massas, democrático e socialista, o Partido dos Trabalhadores será, também, um partido de quadros, com um perfil ideológico mais definido, preparado para enfrentar os diversos tipos de luta que a burguesia e seu Estado lhe impuserem e com um elevado grau de unidade política e de ação.

Entretanto, a afirmação desses elementos vai demandar um processo relativamente longo e dependerá, em grande medida, do nível de enraizamento do PT nas grandes massas trabalhadoras urbanas e rurais e do grau de participação crescente dessas camadas no próprio partido. Em vista disso, não são somente prematuras e irreais as discussões sobre a necessidade de o Partido dos Trabalhadores definir-se como marxista, marxista-leninista, proletário ou revolucionário.

Elas são irresponsáveis. Tais problemas não estão no horizonte da compreensão e das necessidades vividas pela base partidária e pelos setores de trabalhadores e populares que potencialmente podem incorporar-se ao partido. E a vida já demonstrou que tais definições de nada valem se a esmagadora maioria dos trabalhadores não se mobilizar para a luta por propostas que entenda.

Mais uma vez vale relembrar que não é a autoproclamação que torna alguém proletário, revolucionário, marxista-leninista ou marxista. Os homens e os partidos, dizia um grande pensador, valem por seus atos e não pelo que proclamam. E os atos, para os petistas, só têm conseqüência se forem atos com respaldo de massa.

Wladimir Pomar é secretário Nacional de Formação Política, membro da executiva Nacional do PT e membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate.