Economia

O salário mínimo no Brasil está pelo menos seis vezes inferior a um valor que garantisse a sobrevivência de uma família de quatro pessoas. Por aqui não existe um "piso" de salários, mas uma espécie de "subsolo" - um valor que coloca o homem abaixo da mais elementar condição de dignidade. Elevar o salário mínimo, no entanto, traz para a economia brasileira problemas de toda ordem. Como superá-los? O que fazer para se implantar, a partir de agora, uma política que aumente em valores reais a remuneração da grande maioria dos trabalhadores brasileiros?

Os conservadores julgam desnecessárias quaisquer mudanças na política do salário mínimo. Outros setores menosprezam ou receiam as transformações que resultariam de aumentos reais em seu valor. O próprio movimento sindical, embora reconheça a sua importância, não tem direcionado sua atividade principal para esta questão, porque grande parte de seus associados conquistaram ao longo dos anos pisos superiores ao desvalorizado salário mínimo, hoje piso nacional de salários (PNS). No entanto, mais de 1/3 dos ocupados têm rendimentos iguais ou inferiores ao PNS, que já foi - vejam só! - quatro vezes maior. Como deveria ser então uma política democrática e popular para o salário mínimo?1

1. Por que deve ser alterada a política do salário mínimo?

Há pouco mais de meio século o movimento sindical brasileiro conquistava a fixação legal de uma remuneração mínima do trabalho. Em 1936 criavam-se as Comissões do Salário Mínimo, nas quais participariam paritariamente patrões e empregados. Em 1938 essas comissões estabeleceriam a ração essencial mínima e, em 1940, terminariam por definir o valor do próprio salário mínimo.

Apesar de desde cedo dispor de uma legislação referente à remuneração mínima do trabalho, no Brasil o poder aquisitivo do salário mínimo apresentou significativas perdas em dois longos períodos. O primeiro durante o governo conservador de Dutra, no qual o valor do salário mínimo foi mantido congelado por cerca de oito anos: de 1943 a dezembro de 1951. O segundo período inicia-se após o golpe de 1964 e dura até nossos dias.

Desde o golpe de 1964, as políticas salarial e de salário mínimo foram tratadas como subordinadas às políticas antiinflacionárias, de ajuste econômico ou de controle da demanda agregada. Abandonou-se a sua própria razão de ser, ou seja, a de garantir uma remuneração mínima digna e condizente com as condições históricas e econômicas do país. Não sem razão, há cerca de 25 anos o salário mínimo apresenta uma redução quase sistemática de seu poder aquisitivo: em 1987 seu valor médio anual alcançou o nível mais baixo desde sua implantação, em 1940, e representou apenas 39% sobre o valor de 19642.

O objetivo dessa política foi penalizar os assalariados privilegiando os outros participantes da disputa pela distribuição da renda nacional. Seu resultado foi a contenção dos salários de base da economia, elevação das disparidades salariais (diferença entre os mais baixos e os mais altos salários, o chamado leque salarial) e ampliação da concentração da renda. Em contrapartida, estes elementos foram indispensáveis à consolidação dos padrões de acumulação e de consumo, ao tipo de desenvolvimento econômico brasileiro que mantém contingentes crescentes da população trabalhadora em níveis de pobreza absoluta, em um verdadeiro apartheid econômico, sempre à espera do crescimento do bolo.

Uma política democrática e popular para o salário mínimo deveria ter como eixo a busca de justiça social e o combate à pobreza absoluta. Estes são, sem dúvida, elementos éticos da maior relevância. Não podem, no entanto, ser determinantes exclusivos de uma política alternativa. Na realidade, uma política de valorização do salário mínimo extrapola hoje a questão puramente corporativa e de justiça para com aqueles diretamente atingidos; ela afeta efetivamente, nos planos político e econômico, o conjunto da sociedade.

Para todos aqueles que desejam a transformação da sociedade brasileira, a reorientação da política do salário mínimo deve estar balizada, por um lado, pela necessidade histórica de se alterar a própria natureza do desenvolvimento econômico brasileiro, profundamente excludente e concentrador; por outro lado, pela recuperação de sua própria razão de ser, que é a garantia de uma digna remuneração mínima do trabalho, abandonada voluntariamente pelos governos que se sucederam após 1964.

2. Como elevar o valor real do salário mínimo

Há que se ressaltar, por um lado, que a elevação do salário mínimo (PNS) não é uma panacéia para se resgatar a totalidade da extraordinária dívida social legada pela ditadura e quase sempre ampliada pelas políticas conservadoras da Nova República. Outras medidas complementares serão sem dúvida necessárias: um sistema tributário mais justo e menos regressivo, com imposição sobre os ganhos do capital e herança; uma política de rendas; uma política social (transporte, habitação, saúde, educação, salário-família, seguro-desemprego) etc. Por outro lado, além da orientação dada pela política salarial, outros fatores poderão ter efeitos sobre os salários: dinâmica e crescimento econômico (ou não) e seus efeitos sobre o mercado de trabalho, os níveis inflacionários, as relações de força entre as classes sociais e a maior ou menor efetividade das lutas sindicais etc.

No entanto, sem a elevação dos valores reais do salário mínimo torna-se difícil, senão impossível, vislumbrar a possibilidade de se iniciar o processo de elevação dos salários de base e de redução das disparidades salariais. Sem o início deste processo, por sua vez, não haverá perspectiva de constituição de uma nova revisão salarial no contexto de novos padrões de consumo e acumulação.

O DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos) vem calculando há vários anos o salário mínimo necessário ao cumprimento das determinações legais (a Constituição de 1946, ainda em vigor, e o Decreto da Ração Essencial) e ao sustento de uma família composta de dois adultos e duas crianças. Esse salário mínimo necessário alcançou, em junho de 1988 Cz$ 62.358,06 - ou seja, cerca de seis vezes o valor do salário mínimo (PNS) vigente no mesmo mês. Ele é um marco, uma referência legal e de justiça social para o movimento sindical. Ao mesmo tempo, as séries históricas da relação custo/tempo de trabalho para a aquisição da ração essencial (desde 1959) e do salário mínimo real (desde 1940) permitem certificar a sua trajetória efetiva3.

No entanto, seria equivocado ou até mesmo ingênuo supor que os níveis reais do salário mínimo pudessem ser elevados instantaneamente aos patamares desejáveis de justiça social sem que os efeitos da desarticulação das esferas de produção e consumo acabassem por inviabilizar qualquer projeto democrático e popular de transformação. Não menos equivocado seria menosprezar os efeitos positivos que uma significativa elevação dos valores reais do salário mínimo poderão ter no processo de integração ao consumo de um vasto contingente de trabalhadores, com a conseqüente expansão da demanda de determinados produtos.

Para evitar ambos equívocos seria necessária uma política transparente e capaz de prever a expansão do poder de compra do salário mínimo ao longo de um determinado período. Antecipadamente e durante esse período deveriam efetuar-se os necessários ajustes das políticas industrial, agrícola, de abastecimento, de comércio exterior, social, previdenciária etc. às transformações no perfil da demanda que necessariamente resultariam da elevação do poder aquisitivo do salário mínimo (PNS).

Uma determinada porcentagem de elevação imediata dos valores atuais do PNS e a abertura do processo de recuperação gradual de seu poder aquisitivo em termos reais evidenciariam aos trabalhadores e aos outros agentes econômicos a decisão política de se constituir um novo perfil da demanda, no qual a política salarial deverá ter papel orientador decisivo. Neste sentido, um objetivo inicial possível - principalmente depois que desvinculou-se o PNS de quaisquer outros valores - seria, por exemplo, o de se buscar alcançar o valor de 1964 (aliás, muito próximo de seu valor inicial de 1940) em cerca de dois anos. Em outras palavras, depois de um reajuste inicial mais elevado, de cerca de 30%, o salário mínimo (PNS) poderia ter, por exemplo, reajustes mensais de 1,03 vezes o Índice de Custo de Vida (ICV) medido pelo Dieese4. Assim sendo, ao cabo do primeiro ano o valor real do salário mínimo teria sido acrescido em 85% e no final de dois anos teria se ampliado em 164%, quando então atingiria o patamar de 1964.

Uma proposta desta ordem, mantida a desvinculação do piso nacional de salários de quaisquer outros valores, além de permitir os ajustes das demais políticas macroeconômicas e sinalizar decisivamente para todos agentes econômicos, deixariam de ter efeitos inflacionários significativos.

Levantamentos preliminares5 indicam que dobrando o salário mínimo (PNS) elevar-se-ia a massa salarial em aproximadamente 9%, enquanto a sua triplicação significaria uma elevação total dessa massa de cerca de 29%.

Não há dúvida que quase todos os setores poderiam ser atingidos, sendo alguns ramos mais do que outros. Os ramos mais atingidos seriam, muito provavelmente, aqueles que produzem bens de consumo não-duráveis, dirigidos ao mercado interno e que mais empregam mão-de-obra. No entanto, seriam justamente estes ramos os que mais se beneficiariam com a ampliação da produção e das vendas resultantes da elevação da demanda dos trabalhadores das faixas de rendimentos mais baixas.

Da mesma forma, é também previsível que a elevação do salário mínimo possa provocar o fechamento de algumas pequenas empresas. Entretanto, este impacto inicial sobre essas empresas – em geral em condições precárias de funcionamento, pagando mal, atrasando salários, sonegando impostos etc. – seria compensado no momento seguinte pela melhoria do poder aquisitivo de parcelas significativas dos trabalhadores, o que geraria mais consumo, maior demanda por bens e serviços e, conseqüentemente, maior produção, nascimento de novas empresas e expansão do emprego.

Além da redução da desigualdade da renda pelo aumento real dos salários de base, a elevação do PNS teria efeitos positivos indiretos sobre o setor informal e sobre o aumento da arrecadação fiscal.

Como visto anteriormente, na hipótese de desencadeamento imediato do processo de elevação gradual dos valores do salário mínimo haveria um prazo de aproximadamente dois anos para que fosse atingido seu objetivo. Durante esse período, poderia ser criada uma Comissão do Salário Mínimo, com participação do Dieese, IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), trabalhadores6, para uma ampla discussão que resultasse na redefinição democrática de novos parâmetros para o piso nacional de salários. Seria um equívoco a alteração apressada de algumas definições (como, por exemplo, o caráter pessoal ou familiar do salário mínimo) sem uma extensa discussão com os trabalhadores e a sociedade. Mais ainda levando-se em conta que recentemente, no primeiro turno dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, redefiniram-se questões importantes. Com a participação decisiva do PT e de outros partidos progressistas, caracterizou-se o salário mínimo (PNS) enquanto direito e estabeleceu-se a possibilidade de o trabalhador impetrar (por meio de seus sindicatos e centrais) mandado de injunção, caso não se estabeleçam suas normas regulamentadoras, à sua desvinculação de outros valores, a sua unificação nacional, a satisfação do necessidades familiares e a ampliação dos itens que compõem essas necessidades7.

3. Elevar o salário mínimo ou o salário-família?

O receio de efeitos negativos resultantes de uma política extremada de elevação do salário mínimo (PNS) acabou gerando uma outra proposição que, mesmo involuntariamente, tornou-se pólo oposto daquela. Nesta, na prática, a política de reorientação da atual remuneração mínima do trabalho (cujo cumprimento é de responsabilidade patronal) seria substituída por uma política alternativa, na qual esta responsabilidade seria assumida pelo Estado, por meio do pagamento do salário-família com valores acrescidos8. Alguns de seus supostos devem no entanto ser questionados.

Em primeiro lugar, essa proposta se baseia na crença de que a única forma de elevar o salário mínimo (PNS) seria recompor, de uma só vez, a totalidade das perdas de seu poder aquisitivo. Cremos já haver mostrado que existem outras formas de garantir sua elevação.

Em segundo lugar, supõe que se altere a própria legislação no sentido de permitir que o salário mínimo satisfaça apenas as necessidades individuais do trabalhador. Cremos também haver indicado que alterações desta ordem deveriam passar por um debate mais amplo com os trabalhadores e com o conjunto da sociedade, inclusive prevendo-se a eventualidade de se criar uma nova Comissão do Salário Mínimo.

Em terceiro lugar, aquela proposição privilegiado salário enquanto custo empresarial, considerando-o claramente um desestímulo aos investimentos e um ampliação dos riscos de desemprego. No nosso entender, os salários devem ser concebidos de forma mais ampla, considerando-os também como demanda, sendo que uma política salarial pode orientar uma alteração do seu perfil. Ao mesmo tempo reconhecemos que no Brasil o custo da mão-de-obra é baixo, relativamente a outros países9 e aos custos totais, enquanto a rentabilidade patronal é bastante elevada. Isto torna possível, ademais de desejável, a alteração positiva desta relação e da distribuição funcional da renda.

Finalmente, embora seja equivocado tornar o salário-família alternativo ao pagamento patronal de uma remuneração mínima condizente com as condições históricas e econômicas do país, o salário-família pode e deve ter uma função complementar, inclusive com a elevação de seus valores, hoje irrisórios. No entanto, para isso seria também necessário mudar o seu caráter de universalidade - que ademais de representar muito pouco no bolso daqueles que recebem salários mais elevados, é profundamente injusto - passando a pagá-lo apenas para os trabalhadores que, por exemplo, ganhassem até 5 salários mínimos de referência.

Jorge Eduardo Mattoso é técnico do Dieese e professor do IE/Unicamp.