Na cena literária ainda paira sobre a literatura escrita por mulheres uma sombra de imperfeição, futilidade e irrelevância
Na cena literária ainda paira sobre a literatura escrita por mulheres uma sombra de imperfeição, futilidade e irrelevância
As mulheres ainda são frequentemente compreendidas como autores de segunda categoria. Prêmios de grande visibilidade, em geral, têm baixíssima taxa de autoras. A forma mais eficaz de contribuirmos para evitar essa distorção é lermos os textos produzidos por mulheres a partir de suas singularidades temáticas e estéticas, buscando nessa literatura o diálogo entre linguagem, cânone, inovação e experiência histórica que caracteriza toda obra de qualidade
Antes de entrar propriamente no assunto deste artigo, sinto-me impelida a fazer uma confissão: por muito tempo, resisti ao pensamento crítico pautado por categorias que apontam para as divisões culturais. Como brasileira, cresci em um ambiente que, via de regra, vê com maus olhos tratar a diferença às claras. Mais do que isso, o pensamento moderno de nosso país majoritariamente sustentou uma postura oficial de negação das divisões raciais e sexuais, propondo com maior ênfase as correspondências e as reivindicações comuns.
Nas artes, por exemplo, o projeto antropofágico de Oswald de Andrade celebrou a deglutição da alteridade com o objetivo de eliminar a ideia de diferença. Também a prosa ensaística de Gilberto Freyre privilegiou um olhar harmonizador sobre a questão das misturas étnicas, enquanto o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda repercutiu na confirmação de que seríamos uma nação “cordial”, avessa à racionalização dos problemas sociais e afim ao tratamento afetivo e pessoal das questões que regem nosso cotidiano.
Ainda que haja críticas a essa forma de atenuar os conflitos, característica de uma parcela importante das construções teóricas acerca da identidade nacional, ela se manteve viva por todo o século 20 e avançou pelo início do 21. Mesmo que não concordemos com essa abordagem, ela está profundamente arraigada em nossas instituições e revela-se frequentemente nas situações que enfrentamos no dia a dia. Essa tradição cultural, portanto, causou dificuldades ao fortalecimento do pensamento feminista no Brasil, já que a dissolução de limites claros e o mito da igualdade parecem falar mais alto quando o assunto é o preconceito em solo brasileiro. Como questionar relações de privilégio e de poder que, a rigor, não foram identificadas ou elaboradas a partir de suas especificidades?
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Heloísa Buarque de Hollanda¹ (2003), ao examinar a atuação do feminismo em território nacional, observa que originariamente suas principais formas de atuação ocorreram a partir dos anos 1970, no seio dos setores progressistas da Igreja Católica, ou ainda nos partidos e associações de esquerda. Várias das importantes conquistas das militantes brasileiras teriam ocorrido, portanto, vinculadas à religião ou ao papel familiar da mulher (neste último exemplo, a autora cita a politização da figura materna no Movimento pela Anistia), privilegiando as questões de justiça e bem-estar social, mais do que as reivindicações femininas específicas.
Nascida durante a ditadura, a organização dos movimentos de mulheres mostra seus efeitos no processo de redemocratização do país, particularmente pela restauração do voto democrático em 1985, quando muitos partidos começaram a receber propostas e reivindicações de grupos feministas. Especificamente no que diz respeito à crítica literária, Hollanda afirma que os estudos investigando as intersecções entre gênero e literatura se institucionalizaram rapidamente após o fim da ditadura militar, ainda que tenham encontrado resistência em alguns dos mais renomados centros acadêmicos do país: Universidade de São Paulo, Universidade de Campinas e Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesmo assim, desde meados dos anos 1980 é crescente o número de investigações na área, e a pesquisadora chama atenção para uma linha de trabalho que recupera agentes e dados históricos normalmente silenciados pelo registro canônico.
A partir desse viés especificamente literário, a pesquisadora irá destacar a importância de uma questão de fundo aos estudos feministas: o exame da inter-relação entre os discursos englobando as histórias literárias nacionais e os discursos sociais patrilineares, que valorizam as ideias de influência e de paternidade cultural. Mesmo que a figura da mulher tenha sido enfatizada como fundamental para a ideologia “civilizadora” republicana, a autora afirma que, na produção literária feminina, fica patente um sentimento de exclusão e até de perda identitária no curso da modernização do país, manifestando-se por meio de um desconforto em relação aos sentimentos nacionalistas que arremataram as desigualdades para fortalecer uma ideia de unidade patriótica.
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As questões levantadas aqui, porém, não implicam negar o quanto a produção textual de mulheres vem ganhando destaque por aqui progressivamente desde o início do século 20, quando no Brasil surgiram nomes como Pagu, Gilka Machado, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Orides Fontela, Carolina Maria de Jesus e Adélia Prado, entre várias outras. No entanto, nem sempre a produção de qualidade acarreta em igualdade na hora de ocupar os postos de prestígio na cena literária.
Sabemos que, por muito tempo, o impacto de pressões socioculturais para as mulheres se dedicarem apenas à família e à casa fez com que sua produção literária fosse numericamente inferior à dos homens. No entanto, isso pode ter contribuído para gerar um ambiente que naturaliza o privilégio de um padrão de qualidade relacionado com a produção textual masculina.
Se a experiência de ser mulher na sociedade carrega toda a particularidade que esse fato produz, é de se esperar que textos vindos de tal universo possam trazer traços dessa especificidade. Isso não deve ser confundido com interesse menor ou fuga das “grandes questões”. Panelas, filhos, fraldas, vaidade, romantismo são temas que podem ser tão relevantes quanto a crise do sujeito contemporâneo, a descrença no próximo, o desejo de encontrar um sentido para a vida. Todos precisamos de alimento, proteção e cuidados para desenvolvermos nossa sensibilidade artística e filosófica. Talvez não haja uma incompatibilidade entre o elemento cíclico da vida (normalmente relacionado ao elemento feminino) e o desejo utópico de superá-lo (comumente atribuído à energia masculina).
Contudo, ainda paira sobre a literatura escrita por mulheres uma sombra de imperfeição, futilidade e irrelevância. Como exceção a esse panorama, podemos citar as autoras de best-sellers recentes, como E. L. James (de Cinquenta Tons de Cinza) e J. K. Rowling (de Harry Potter). O mercado está em busca de lucro e de livros que vendam, portanto pouco importa o gênero do escritor, contanto que ele seja eficaz em atingir esses objetivos. Mas quando a estrutura de prestígio é ancorada na tradição, as mulheres ainda são frequentemente compreendidas como autores de segunda categoria.
Um exemplo disso é que para fazer o balanço dos anos 1900, alguns dos mais conhecidos veículos de comunicação elaboraram listas apontando quais seriam os romances mais importantes do século 20 e da história da literatura moderna. Em grande parte dessas listas, o número de romances escritos por mulheres dificilmente chegava a dez ou quinze em um total de cem. Prêmios de grande visibilidade, em geral, têm uma taxa baixíssima de autoras. O Prêmio Nobel de Literatura, para citar um caso, contemplou até o presente cem homens e apenas treze mulheres. Já o Prix Goncourt, prêmio mais cobiçado da França, entre 1903 e 2016 premiou nove autoras. Há, é claro, exemplos mais equilibrados no que concerne à premiação de autores de ambos os sexos, como bem exemplificam o Prêmio Jabuti (no Brasil) e o Prêmio Pulitzer (nos Estados Unidos).
É provável, também, que dentro de algumas décadas essas distorções sejam corrigidas por causa da tendência de crescimento, mesmo que lenta, da ocupação de cargos de prestígio por figuras do sexo feminino. Assim, se direção, júri, assessoria de imprensa tiverem no comando mulheres, é de se esperar que sua sensibilidade em relação aos textos produzidos por autoras seja maior do que no caso de instituições e eventos comandados majoritariamente por homens.
Um exemplo curioso dessa dificuldade de reconhecimento nas esferas de prestígio por parte das escritoras no âmbito brasileiro foi a homenagem feita pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) à poeta Ana Cristina Cesar, em 2016. Choveram críticas e polêmicas em torno da indicação de seu nome. Alguns dos argumentos que refutavam a relevância de sua obra mesclavam-se à ênfase a sua imagem – suicida, morta no auge de sua beleza, seus retratos seriam um excelente recurso de marketing para os organizadores da feira. Curioso é que a própria Ana C., nome enigmático com que assinou alguns de seus livros, explorava conscientemente formas que ela considerava estarem associadas historicamente às mulheres, como cartas, diários ou bilhetes. Poucas críticas, no entanto, se detinham nas especificidades do seu trabalho poético, cuja relevância para a literatura nacional vem sendo mais e mais ressaltada nas últimas décadas. Detratores da indicação da poeta carioca chegaram a argumentar que outras autoras deveriam estar em seu lugar, elencando nomes de sua preferência para receberem tal homenagem.
Mesmo que no debate literário a questão do gosto e da argumentação estética salutarmente refutem unanimidades ou consensos, houve nessa polêmica um traço bastante peculiar. Nos textos publicados em jornais, nas conversas entre literatos e mesmo em redes sociais, foi constante o recurso de apontar Hilda Hilst, Orides Fontela ou Adélia Prado (só para citar alguns exemplos) como nomes para substituírem mais adequadamente Ana Cristina Cesar naquela homenagem.
No entanto, as autoras apontadas tinham características absolutamente diversas da poeta marginal, cuja obra dialoga com a pós-modernidade de forma bem marcada, utilizando-se da mescla de gêneros, da tensão entre subjetividade-objetividade e do pastiche como estratégia de composição textual. Portanto, quando ouvimos “troque Ana C. por essa ou por aquela poeta”, podemos correr o risco de que uma mulher escritora seja tratada como moeda de troca para outra. A forma mais eficaz de contribuirmos para evitar essa distorção é lermos os textos produzidos por mulheres a partir de suas singularidades temáticas e estéticas, buscando nessa literatura o diálogo entre linguagem, cânone, inovação e experiência histórica que caracteriza toda obra de qualidade.
Andréa Catrópa é escritora e doutora em Teoria Literária (FFLCH-USP). A partir de 14/3, ministrará o curso “A Palavra é Delas – Mulheres na Literatura”, em São Paulo. Informações no site www.andreacatropa.com/mulheres-na-literatura -- Inscrições pelo telefone (11) 3579-9150 ou via e-mail: [email protected]