Internacional

As forças progressistas deveriam condenar a política agressiva e autoritária de Putin, sem abrir mão de críticas à Otan, e a imposição de sanções econômicas e monetárias à Rússia

Este artigo foi escrito quando a guerra entrou em sua sexta semana, sem que houvesse em vista uma perspectiva de cessar-fogo que pudesse preparar o terreno para um acordo de paz. Após uma breve contextualização da guerra, pretendo defender que as forças progressistas deveriam condenar a política agressiva e autoritária de Vladimir Putin, sem abrir mão de análises críticas à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), inclusive questionando sua própria existência. Igualmente cabe uma condenação à imposição de sanções econômicas e monetárias à Rússia por parte do Ocidente e seus aliados. Sanções que sempre acabam atingindo as populações mais frágeis e acirram ainda mais o conflito e dificultando uma repactuação pós-guerra.

Contextualização

A concentração de tropas russas nas fronteiras deste país com a Bielorrússia e com a Ucrânia ocorreu no segundo semestre de 2021 e começou a chamar muito a atenção a partir do final de dezembro do mesmo ano.

Desde então até o fatídico dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia negou qualquer intenção de invadir o país, alegando se tratarem de exercícios militares. Não obstante, apresentou, em janeiro, suas reivindicações (que deveriam ser respaldadas por garantias formalizadas em documentos) direcionadas à Otan: que nenhuma outra ex-república soviética (além dos três países bálticos, que aderiram em 2004) viesse a ingressar na aliança militar, e a retirada das tropas dos países que se juntaram à organização após o fim da guerra fria. Ou seja: não só as ex-repúblicas soviéticas, mas também as nações da Europa oriental.

É uma pauta de reivindicações a princípio legítima, que colocava na mesa uma repactuação do sistema de segurança europeu e um forte questionamento sobre o futuro papel da Otan. É evidente, porém, que Putin sabia ser impossível para os EUA e mesmo para a Europa concordar com tudo, mas poderia se chegar a um meio termo se houvesse vontade política.

No caso específico da Ucrânia, além da exigência de formalizar a não adesão à Otan, havia a questão da região de Donbass, composta por duas províncias que se declararam, em 2014, repúblicas populares independentes (Donetsk e Luhansk), após a derrubada do governo de Vitor Yanukovych, que era, em tese, mais próximo a Moscou, e a anexação da Crimeia pela Rússia.

A partir daí, Donbass se tornou o palco de conflitos armados entre separatistas, apoiados pela Rússia, e forças ucranianas, com milhares de vítimas ao longo dos últimos oito anos. Foi inclusive nesse contexto que nacionalistas ucranianos da extrema-direita formaram a brigada paramilitar Azov, com base em Mariupol, para combater os separatistas em Dontesk. A brigada faz uso explícito de símbolos e ideologia nazistas e acabou sendo incorporada às forças armadas.

Para estabelecer um cessar-fogo, houve já em 2014 negociações envolvendo França, Alemanha, Ucrânia e Rússia, que resultaram, em setembro daquele ano, nos Acordos de Minsk, no âmbito da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), da qual Rússia e Ucrânia fazem parte. Os combates continuaram e uma nova rodada de negociações resultou, em fevereiro de 2015, no Acordo Minsk II, que deveria ser a base para futuras negociações. Esse acordo prevê autonomia com eleições regionais nas duas províncias, o que nunca ocorreu.

Em fevereiro de 2019, ainda no governo de Petro Poroshenko o parlamento em Kiev aprovou com ampla maioria uma emenda constitucional para incluir o compromisso do Estado com a adesão à União Europeia e à Otan. A última reunião para avançar na implementação do Minsk II foi em dezembro de 2019, em Paris, na véspera do início da pandemia da Covid.

Angela Merkel e Putin eram os veteranos que tinham participado desde o início do processo. Emmanuel Macron assumiu a Presidência em 2017, e Volodymyr  Zelensky, em maio de 2019. A reunião foi um desastre. O ucraniano entrou no ringue após ser eleito como um verdadeiro “outsider” e 70% dos votos. Provavelmente, queria mostrar para seu eleitorado que não obedeceria ordens da Rússia e se imaginava respaldado pelo Ocidente.

Já nas primeiras semanas deste ano, houve uma intensa movimentação diplomática. A concentração de tropas encontrou reações diferentes nos diversos países europeus e nos EUA. Uma reunião, em janeiro, entre a Rússia e a Otan foi o esforço negocial que menos resultados efetivos gerou. Por parte dos governos da Alemanha e, sobretudo, da França, havia uma abertura para retomar os Acordos de Minsk. Mas, em 21 de fevereiro, o governo russo reconheceu a independência das duas repúblicas separatistas da Ucrânia, em uma movimentação que lembrou os episódios ocorridos em 2008, quando a Rússia reconheceu na Georgia a independência das províncias separatistas de Ossétia do Sul e Abecásia, antes de invadir o país.

Assim, o caminho para a guerra estava trilhado, mas ainda era inimaginável para a opinião pública europeia, inclusive na Ucrânia, que houvesse uma invasão completa não limitada a Donbass. É verdade que Joe Biden havia anunciado uma invasão completa, incluindo bombardeios na capital, Kiev, mas imaginava-se que isso fosse parte da propaganda estadunidense. O próprio Zelensky, por sua vez, tinha feito apelos para que se parasse de anunciar a tal da invasão russa. E, se a inteligência estadunidense nem tinha conseguido prever o que ia acontecer em Kabul, alguns meses antes, por que ia acertar agora?

Mas foi isso que aconteceu. Em 24 de fevereiro, as forças armadas russas abriram três frentes de uma vez: no Norte, pela Bielorrússia, chegando rapidamente aos arredores da capital, pelo Sul e pelo Leste. A Marinha e a Aeronáutica tomaram o controle do espaço marítimo e aéreo. É difícil crer que toda essa operação tenha sido um plano B diante de uma suposta rejeição de levar as negociações a sério. Uma ação dessa vergadura exige longo preparo.

Há de se concluir, portanto, que somente os Jogos Olímpicos de Inverno em Beijing (de 4 a 20 de fevereiro) atrasaram a ação militar. Ao final, o espírito olímpico é exatamente a promoção da paz e, durante os jogos, os países participantes devem declinar da guerra.

E foi também na ocasião desses jogos que Putin viajou para Beijing para ter seu primeiro encontro presencial com Xi Jinping desde o início da pandemia. Publicaram uma declaração conjunta que foi imediatamente considerada um documento histórico, expressando o estado avançado de aproximação entre a segunda potência econômica do mundo e a segunda potência nuclear. O documento lembra o discurso de Putin, em 2007, em Munique (Alemanha), na Conferência sobre a Segurança na Europa. Foi lá que ele apresentou sua doutrina criticando o unilateralismo e a arrogância dos EUA e da Otan e reivindicou o direito da Rússia de ser respeitada. Putin questionou a serventia da aliança militar ocidental depois do fim da guerra fria. O Ocidente nunca conseguiu dar resposta e sempre considerou que não deve satisfação à Rússia.

O documento conjunto é extenso e prolixo, fala de tudo sem mencionar em qualquer momento diretamente a Ucrânia ou as tensões na fronteira. Mas declara apoio e compromisso com a ONU. Aparece com muita força a ideia de um mundo que está caminhando na direção de redistribuição de poder e na formação de um policentrismo, algo que vai além da ideia de um mundo multipolar. As críticas aos EUA, embora na maioria das vezes citado quase em tom irônico, como “certos Estados”, repetem em essência o que Putin já tinha denunciado no seu discurso mencionado acima, em 2007: alguns países seguem tentando impor sua vontade e sua visão de mundo e da democracia a todo o planeta, desrespeitando assim o direito dos povos de determinar seu próprio caminho para o desenvolvimento. Perfeito, assino embaixo, mas isso em nada justifica iniciar uma guerra.

Guerra

Uma vez iniciada a guerra, as máquinas de propaganda das partes envolvidas entram também em campo, ao lado dos canhões. Aqui, vou entrar nas justificativas apresentadas pela Rússia e que encontraram certa simpatia entre alguns setores da esquerda brasileira.

A primeira é que esta guerra poderia ser interpretada como autodefesa. O Artigo 51 (Capítulo 7) da Carta da ONU (documento que data de 1945 e está na fundação das Nações Unidas) confirma o “direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado”. Mas não houve ataque armado algum.

Ainda há uma tentativa de sugerir que haveria uma ameaça iminente. Neste caso, se estaria defendendo a tese do então presidente estadunidense George W. Bush quando invadiu o Iraque em 2003, baseando-se na doutrina de ataque preventivo (“preemptive strike”), algo não previsto na Carta da ONU.

Naquela oportunidade, as forças progressistas do mundo inteiro se mobilizaram contra a agressão ao Iraque, sem qualquer necessidade de haver afinidade com o governo de Sadam Hussein. Por aqui, tanto o Fórum Social Mundial em Porto Alegre como o governo Lula se engajaram na condenação da invasão, e o Brasil, junto com Chile e a França lançaram uma campanha internacional por uma guerra contra a fome e a pobreza. E, da mesma forma que não existiam as tais armas de destruição em massa no Iraque, não havia qualquer ameaça iminente de um ataque ao território russo.

E a Otan? Não estava se expandindo para o Leste para poder estacionar mísseis na fronteira com a Rússia? Putin está exigindo que se interrompa este processo desde o citado discurso de 2007, e exigiu garantias por escrito no início deste ano. A Otan não quis negociar, logo, “à Rússia não havia outra escolha”. Também falso, embora a crítica à Otan esteja indubitavelmente correta. É fato que os EUA optaram na década de 1990, após a derrubada da União Soviética, por tratar o país como vencido e submetê-lo a uma década de humilhação em parceria com o presidente Boris Yeltsin, o FMI e os novos capitalistas que se enriquecerem com as privatizações selvagens e ganharam o nome de “oligarcas”. Foi nesse contexto que a Otan tomou proveito da fraqueza momentânea da Rússia para uma expansão rumo o Leste em, basicamente, duas rodadas, sendo a primeira em 1999, com a adesão de Polônia, Hungria e República Tcheca, e a seguinte, em 2004, com o ingresso de Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia.

Aqui cabe explicar o sentido da Otan. Na essência, é uma aliança comandada pelos EUA como parte da organização da sua hegemonia global. Eles não precisam da Otan para mostrar sua força militar. Os bombardeios na Indochina ou a invasão no Iraque, entre vários outros exemplos, não foram perpetrados pela Otan.

Assim, a aliança foi, desde o início, uma forma de alinhar os países europeus. Por isso, para Washington, estava claro que mesmo com a queda da União Soviética, a Otan deveria continuar existindo, para evitar o surgimento de forças centrífugas na Europa. A incorporação dos novos países fazia parte desse processo, ainda mais porque essas nações tinham se integrado à União Europeia. Além disso, no mundo pós-guerra fria, era importante evitar o ressurgimento de forças anti-hegemônicas. E a expansão da Otan para o Leste era parte dessa política. Evidentemente, os próprios países da Europa Oriental que aderiram tinham motivos históricos para desconfiar da Rússia, mas essa preocupação poderia ser resolvida de outra forma, por exemplo, no âmbito da OSCE.

Mas, agora, não havia qualquer movimento concreto por parte da Otan em abrir as portas para Ucrânia. Pelo contrário, Merkel acabou cedendo à inclusão da Ucrânia e da Georgia na Declaração Final da Cúpula da Otan de Bucareste, em 2008, mas declarou publicamente que qualquer ação de avançar com a adesão contaria com um veto da Alemanha. Ela repetiu isso publicamente em 2014. E, de fato, não houve absolutamente qualquer ação concreta nesse sentido. Inclusive na recente coletiva de imprensa conjunta em Moscou com o sucessor de Merkel, Olaf Schulz, este questionou o argumento da filiação ucraniana à Otan, porque isso simplesmente não estava na agenda. Putin respondeu que queria isso formalizado “antes que fosse tarde demais”.

Questionar a existência da Otan pós-guerra fria e sua política expansionista, como Putin questiona, faz todo sentido. Mas não é um motivo para invadir Ucrânia! Inclusive porque essa ação provocou exatamente o contrário: mais Otan, mais gastos militares com apoio popular. Pela primeira vez na história da Otan, por exemplo, uma maioria expressiva do povo finlandês apoia uma adesão. Ou seja, Putin queira a finlandização da Ucrânia, e agora corre o risco de ter um novo membro da Otan na sua fronteira no Norte.

Uma variante desse argumento é a ideia de que a Rússia teria um tipo de direito natural de projetar seu poder na Ucrânia porque no mundo real existe a política de esfera de influência. E, para tanto, para minha surpresa, uma parte dos analistas de esquerda passou a abraçar alguns autores estadunidenses do chamado campo “neorrealista”, que desde sempre se posicionaram contra a expansão da Otan e a tentativa dos EUA de usar a Ucrânia como uma linha de frente contra qualquer tentativa de ressurgimento da Rússia como potência anti-hegemônica.

Em particular, entrou na moda as referências ao cientista político estadunidense John Mearsheimer. Há dois problemas aqui. Primeiro, estes autores deixam claro que, pela mesma lógica, a América Latina é o quintal dos EUA. A mensagem para o público estadunidense com o qual dialogam é: nós temos a Doutrina Monroe, logo, a Rússia também tem direito à sua área de influência. Parece-me um pouco estranho usar esses autores para criticar a atuação da Otan e justificar a movimentação da Rússia.

Há ainda outra mensagem: além de esfera de influência, esses autores trabalham com a noção de balanço de poder. Da mesma forma como, há 50 anos, houve uma aproximação com a China para isolar a União Soviética, agora o objetivo dos EUA deveria ser se entender com a Rússia para isolar a China, considerada o verdadeiro contendor da hegemonia estadunidense. E, nessa lógica, a Otan deveria se transformar em uma aliança global com atuação no Indo-Pacífico. Não vejo nenhum motivo para a esquerda se identificar com esse pensamento.

Aí, entramos no terceiro bloco de justificativas: o povo ucrânio de etnia (nacionalidade) russa estaria sendo massacrado em Donbass, inclusive por forças neonazistas, tendo até seu direito de usar a língua russa como oficial negado. Tudo verdade. Motivo para invadir o país inteiro? Não! Aqui estaríamos então aceitando a doutrina de Bill Clinton sobre as famosas intervenções humanitárias. Uma tentativa do Ocidente de flexibilizar o artigo 2 da Carta da ONU (que estabelece o respeito à integridade territorial) e ampliar os argumentos para legitimar o uso da força (Capítulo 7 da Carta da ONU).

As forças progressistas no mundo inteiro condenaram o bombardeia da Otan, sem aval da ONU, em Belgrado, em 1999. Argumento do então governo Clinton: havia um massacre contra o povo de etnia albanesa por parte de milícias apoiadas pela Sérvia em Kosovo. E havia mesmo. Mas o bombardeio de Belgrado era muito mais para intimidar os europeus e mostrar para o mundo quem manda, com direito a atingir a embaixada chinesa, com um suposto “erro de precisão”.

Foi em 2011 que a Otan conseguiu autorização do Conselho de Segurança da ONU diante das abstenções da China e da Rússia, para uma intervenção humanitária na Líbia. Sabemos que a operação foi tudo menos defesa da população civil. Tinha a mudança de regime como objetivo e acabou desestruturando o país inteiro. Foi durante a presidência de Dmitry Medvedev, e há relatos de que Putin não teria gostado nem um pouco da abstenção da Rússia.

Pressionar com mobilização de tropas nas fronteiras a reabertura dos Acordos de Minsk para defender a autonomia das províncias em Donbass é uma coisa. Invadir o país inteiro sob argumento de defesa humanitária é uma coisa completamente diferente. Observe inclusive que tanto o bombardeio a Belgrado na época como o de Kiev agora começaram com um ataque a torres de rádio.

Curiosamente, há poucas análises críticas sobre fatores internos que explicam a ação militar. Sou autor de um estudo publicado pelo Ipea em 2010 sobre a política de Putin na década de 2000 para reerguer a Rússia. Foi nesse período que protagonizou junto com o Brasil o surgimento do Brics. O mencionado discurso de 2007 em Munique assustou, mas foi recebido com respeito, sobretudo na Europa continental, em particular na Alemanha. Mas, na última década, assistimos a outro fenômeno. O pensador árabe Ibn Kaldun já falava no século 14 da ideia de ciclos de poder, a fase de ascensão com realizações e apoio popular seguida por decadência. Depois de 22 anos no poder, Putin ratificou uma lei que o permite se recandidatar mais duas vezes e, se eleito, ficar na Presidência até 2036. Embora a Rússia seja uma força militar, potência energética e rica em vários recursos naturais, sua economia é menor que a da Itália, com uma população mais de duas vezes maior. O país não participa da corrida pela 4ª revolução industrial-tecnológica. O crescimento econômico na última década foi pífio. Para dar sobrevida a sua popularidade, ele se aliou cada vez mais à Igreja Ortodoxa, e isso explica sua defesa dos valores conservadores considerados tradicionais.

Recentemente, circulou no Brasil um texto explicando a nova política externa da Rússia, do professor Sergey Karaganov, presidente do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia. Ele fala em “movimentos LGBT agressivos e ultrafeministas” e sugere se tratar de “uma epidemia” que coloca em questão valores da história, da pátria, gênero e crenças. Não é difícil comentários do próprio Putin que vão nesse sentido. Isso não é um detalhe, mas parte de uma ideologia que se fortaleceu e que combina com um nacionalismo exorbitante, excludente e intolerante. Não surpreende, portanto, que Putin tenha se aproximado de figuras como Donald Trump, Vitor Orban, ou os demais representantes da extrema-direita conservadora, como Eric Zemmour e Marine le Pen na França, Thierry Boudet na Holanda ou Matteo Salvini na Itália, entre outros. Olhando dessa perspectiva, concordo com a caracterização apresentada pelo professor Mathias Alencastro, de que o argumento da “desnazificação” da Ucrânia expressa um posicionamento “anti-extrema direita à la carte”.

A memória de como Putin reergueu a Rússia, libertou o país da tutela do FMI e dos EUA e subordinou os mega-capitalistas (“oligarcas”) a uma política de desenvolvimento e proteção social ainda é forte, inclusive na própria Rússia. Mas essa visão talvez não represente mais o Estado russo atual e as ambições do próprio mandatário, que opera de forma cada vez mais autoritária. A defesa do Estado forte em si não me parece progressista. O Estado é um meio para desenvolver e libertar. Se deixa de ter isso como norte orientador da sua ação e se torna um Estado forte autoritário para defender valores conservadores e interesses particulares, não deveria contar com nossa simpatia.

E sim, claro, sempre há o argumento de que o inimigo de meu inimigo é meu amigo e que, apesar de tudo que argumentei, a ação russa ajuda a enfraquecer a Otan e a hegemonia dos EUA. Infelizmente, mesmo se esse argumento tivesse algum valor político, como já mencionado, a triste realidade é que Putin acabou dando sobrevida à Otan. E as ações das indústrias ligadas ao complexo industrial-militar-acadêmico estadunidense subiram bastante. E com o reforço da Otan, reforçou-se também a liderança dos EUA sobre a Europa, diminuindo assim as forças autonomistas que estavam ganhando espaço para defender políticas europeias mais independentes com a China e a própria Rússia, fora da tutela de Washington.

Não é à toa que Washington, e seu fiel escudeiro em Londres, trabalha quase que abertamente para prolongar a guerra, no caso de Biden inclusive visando as eleições para o Congresso em novembro, nas quais corre o risco de perder a maioria.

Agora, como explicar o timing? Ou seja, por que agora? Pode se especular quatro fatores que em seu conjunto criaram a sensação de haver um momento oportuno para forçar essa repactuação: a queda brutal da popularidade do governo Biden e a consolidação de fortes polarizações internas nos EUA; a queda brutal de popularidade do presidente Zelensky, que manteve, após sua eleição em 2019, uma alta popularidade por um tempo (em torno de 70%), mas que por motivos internos (contas não declaradas no exterior, brigas internas no seu agrupamento político e sua incapacidade de pacificar a situação em Donbass) caiu para menos de 30% no ano passado; uma incapacidade do governo Biden de rearticular a unidade no Atlântico Norte depois das fortes desconfianças entre os aliados durante o governo Trump, em particular com a Alemanha de Merkel. Biden tinha prometido revigorar a aliança, mas se atropelou com a caótica saída de Kabul, que pegou mal nos países europeus que estavam lá com tropas também (lembrando que a invasão no Afeganistão em 2001 foi, em um primeiro momento, uma ação da Otan sem aval da ONU, que veio só em seguida, justificada com o direito da legitima defesa, artigo 5 da OTAN); e, por último, as eleições na Alemanha com o fortalecimento de partidos com posicionamentos muito críticos à Rússia, em particular os Verdes, mas também os liberais (FDP), que iriam ocupar posições importantes no governo. Estava acabando a era Merkel, que era marcada pela busca de um entendimento e uma visão de mais longo prazo, buscando garantir a estabilidade, a paz e a prosperidade na região euroasiática.

Terceira via

Tentei dar uma visão crítica às justificativas e simpatias pela decisão do governo russo de entrar em campo de guerra. Espero que tenha ficado claro que isso em nada diminui as legítimas preocupações russas com sua defesa e a crítica à Otan como instrumento de exercício da hegemonia estadunidense. Anseios que devem, inclusive, ser levado em conta para construir a paz.

E, embora a guerra reforce a unidade no Ocidente e tenha tornado o Zelensky um herói, não só no próprio país, mas diante da opinião púbica europeia e estadunidense, há um outro fenômeno importante: a firmeza com a qual um conjunto importante de países em desenvolvimento se recusam a se deixar enquadrar pelos interesses ocidentais. Embora em número de países a resolução da Assembleia da ONU de condenação da Rússia tenha sido minoritária, em número de habitantes ela representa quase metade do mundo, incluindo China, Índia, Paquistão e África do Sul. Esses países não pactuam com a violação da integridade territorial pelas tropas russas, mas rejeitam a tentativa do Ocidente de usar a guerra para reforçar sua dominação. A rejeição às sanções, inclusive uma bandeira histórica do Brasil, é exemplo disso, inclusive porque acaba atingindo as populações mais vulneráveis. Além do mais, é importante que se pense em um processo de paz que não traga em seu bojo as sementes da próxima guerra.

Término citando uma declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferida logo nos primeiros dias após a invasão: “É lamentável que, na segunda década do século 21, a gente tenha países tentando resolver suas divergências territoriais, políticas ou comerciais através de bombas, tiros e ataques, quando deveria ter sido resolvido em uma mesa de negociação. Ninguém pode concordar com guerra, ninguém pode concordar com ataques militares de um país sobre outro.”

Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (Opeb)