Sempre é uma grande conquista chegar à idade de 80 anos. Esse é o caso de Benedita da Silva, nascida em 26 de abril de 1942 na antiga Favela do Pinto, mas criada na favela do Chapéu Mangueira, onde viveu 57 anos.
Benedita da Silva já nasceu portando as marcas do triplo preconceito: racial, de gênero e de origem social. Seria mais uma entre as milhões de mulheres negras oprimidas na base da pirâmide social se não se tornasse, por esforço próprio, em uma das maiores lideranças populares do país, orgulho do Partido dos Trabalhadores e símbolo da luta do povo negro contra o racismo, contra o genocídio da juventude negra e contra o machismo.
Filha de um operário da construção civil e de uma lavadeira, Benedita e seus 13 irmãos e irmãs tiveram de trabalhar desde criança para ajudar no sustento da família. Ela vendia limão e amendoim, entregava as roupas que sua mãe lavava e passava, e trabalhava como empregada doméstica.
Passou fome com seus filhos e sofreu as piores dores que a condição de mulher pobre e negra passa em nosso país racista, machista, desigual e opressor.
Embora vivendo sob as mesmas condições de pobreza extrema e de discriminação vivida pelo povo negro, desde criança Benedita da Silva se diferenciava por sua inteligência e forte personalidade, que não permitiam que se conformasse com a situação em que viva com a sua família.
Benedita tinha fome de saber. Como servente de uma escola, ouvia atentamente as aulas ministradas. Na juventude alfabetizava os adultos da favela pelo método Paulo Freire. Trabalhou como auxiliar de enfermagem e, mesmo enfrentando enormes dificuldades familiares, ela nunca deixou de estudar e aos 40 anos concluiu os cursos de Serviço Social e o de Estudos Sociais.
As observações de Benedita sobre a vida que levava foram lhe mostrando que o acesso à educação é um dos principais caminhos para o povo tomar consciência e lutar contra a gritante desigualdade social e racial.
Benedita nunca aceitou quando diziam que “sempre foi assim”. Sua determinação pessoal era tão forte que parecia que ela estava destinada desde cedo a tomar o caminho da luta. Na realidade, foi a dura realidade social e as doloridas marcas das discriminações que a empurraram para a política.
Vivenciando na própria pele a miséria e os preconceitos, sendo tratada, como os demais negros e negras, como subcidadãos ou até mesmo sub-humanos, Benedita pôde entender o significado concreto dos direitos humanos. Só quem vive excluído de todos os direitos sabe reconhecer o poder libertador dos direitos humanos.
A força interior de Benedita da Silva se alimenta de sua fé cristã, uma fé praticada sem contradição com a sua luta por justiça social e contra o racismo e a opressão das mulheres.
A fé cristã de Benedita se torna ainda mais coerente quando ela defende a liberdade religiosa garantida pelo Estado laico. Ela entende que o respeito a todas as crenças é condição para o exercício de sua própria fé.
Na resistência contra a remoção de favelas, a principal luta comunitária da época da ditadura militar, Benedita criou o departamento feminino da Associação do Chapéu Mangueira, pois já via no engajamento consciente das mulheres nas lutas gerais e na defesa de seus próprios direitos, de sua dignidade como pessoa humana, o caminho da emancipação feminina da opressão machista.
Estimulada por seu segundo marido Agnaldo Bezerra dos Santos, o “Bola” (já falecido), que era ligado ao PCB, Benedita não encontrava respaldo político externo para as lutas, pois a política da época era controlada pela máquina clientelista do então governador Chagas Freitas, que esmagava qualquer movimento independente.
Desse modo, o encontro de Benedita com o PT nascia como um rio desaguando num mar. O encontro de uma liderança popular que lutava para ter voz com um partido do povo que garantia voz para os oprimidos.
Desde o início, Benedita compreendeu profundamente a natureza social e o papel libertador desse novo partido de massas que surgia. Para ela, o PT unia o “chão de fábrica” representado por Lula, com o “chão da favela”, ou mais especificamente o povo negro discriminado, que nas favelas do Rio de Janeiro era representado por ela própria.
Benedita passou a ter admiração profunda por Lula, que se traduzia na confiança de como conduzia o partido e tomava as decisões políticas. Entre essas duas destacadas lideranças operária e comunitária, a admiração se tornou mútua e fez crescer uma forte e inabalável amizade.
Benedita percebia no PT a possibilidade de realizar a aliança social histórica que faltava na esquerda brasileira, a união ou pacto político do intelectual progressista e do trabalhador com carteira assinada com o trabalhador subempregado, aquele que formava a grande massa do trabalho informal da sociedade.
Nessa massa trabalhadora superexplorada estava a maior categoria profissional do país, a da empregada doméstica, cuja relação de trabalho se baseava na herança da escravidão, abolida por fora mais mantida por dentro nas favelas, periferias e latifúndios desse imenso país.
A partir dessa percepção Benedita aprofundou seus laços com os movimentos negro e de mulheres somando ao seu protagonismo no movimento comunitário, onde foi uma das fundadoras da Federação das Associações de Favela do Rio de Janeiro (Faferj).
É com esse compromisso de vida e de luta, traduzido legitimamente no slogan “Mulher, Negra e Favelada”, que Benedita é eleita em 1982 a única vereadora do PT no Rio do Janeiro e a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Câmara dos Vereadores. É um acontecimento significativo para o PT que crescia em todo o país.
Para ela foi a confirmação daquilo que buscava no PT, a garantia dos oprimidos terem voz. Via a sua ascensão pessoal como símbolo da ascensão política das populações negras e pobres, das quais nunca se afastou e sempre se considerou como sua legítima representante. Começa aí o seu pioneirismo de abrir caminho para novas “Beneditas” e de ser a primeira mulher negra senadora e governadora.
Mas a vereadora Benedita surpreendeu a todos quando disputou e venceu as eleições para deputada federal constituinte, em 1986. Ela sabia que era no plano federal que suas bandeiras sociais, feministas e antirracistas teriam condições de ser realizadas.
Na Constituinte, junto com o pequeno mais aguerrido grupo suprapartidário de parlamentares negros, Benedita ajudou a aprovar o racismo como crime inafiançável. Para melhor defender os direitos das mulheres ela atuou unida ao chamado “Lobby do Baton”, que reunia deputadas de vários partidos e assim foi possível grandes conquistas feministas na Constituição.
Nas eleições para a Prefeitura do Rio, em 1992, Benedita chegou liderando no segundo turno, mas perdeu por pequena diferença para o candidato da direita, César Maia.
Amplamente majoritária nas áreas de favelas e periferias, essa eleição alçou Benedita à condição de grande liderança popular não apenas da capital, mas de todo o estado.
Foi nesse período que Benedita conheceu e se casou com o ator Antônio Pitanga, eleito vereador do PT em 1992. Houve então um “casamento político”, pois os dois mandatos passaram a atuar juntos, o que contribuiu para Benedita incorporar a defesa da cultura como tema fundamental de sua atuação parlamentar.
Em 1994, com uma consagradora votação, Benedita foi eleita a primeira senadora negra do país. Quatro anos depois se tornou vice-governadora com a eleição de Antony Garotinho. Quando este se desincompatibilizou em 2002 para ser candidato à presidente da República, Benedita assumiu o poder Executivo estadual como a primeira negra governadora do estado do Rio de Janeiro.
No pouco tempo de seu governo, Benedita adotou uma política de segurança pública baseada no respeito aos direitos dos cidadãos das comunidades e no uso da inteligência policial, a invés das mortais operações policiais.
Coerente, nomeou 20% do governo com secretárias e secretários negros.
Para ajudar a campanha de Lula no estado, Benedita disputou a eleição para governadora, mas não alcançou êxito.
Com a histórica vitória de Lula presidente ela foi indicada para ser a ministra de Desenvolvimento Social, quando deu início ao programa Fome Zero, logo mudado para o Bolsa Família, e à implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Posteriormente assumiu a Secretaria de Assistência Social do Estado do Rio de Janeiro.
A partir de 2010 se elege deputada federal e faz a relatoria da histórica PEC das Domésticas, sancionada pela presidenta Dilma e que eliminou o entulho escravista das relações de trabalho dessa numerosa categoria profissional.
Benedita se reelegeu deputada federal em 2014 e 2018 e, em 2020, aceitou a convocação do partido para ser novamente candidata à prefeita do município do Rio de Janeiro, momento em que fez uma campanha de cunho popular, com ampla participação nas redes sociais e na reta final do primeiro turno conseguiu unificar boa parte das bases da esquerda.
Nesse mesmo ano, após consulta realizada pela deputada Benedita da Silva em nome de entidades do movimento negro, o TSE aprovou a divisão do fundo eleitoral e do tempo de TV proporcional ao total de candidaturas negras.
Para atender a maioria dos artistas e produtores culturais atingida pela paralisação de suas atividades por causa da Covid, Benedita da Silva foi autora do projeto de lei criou a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc.
Benedita nunca vacilou em atender as convocações do partido, em especial, aos pedidos do seu líder e grande amigo, Lula. Esteve no acampamento, em Curitiba, defendendo a inocência de Lula e se emocionando com o seu sofrimento em nome do povo brasileiro.
Esses são apenas alguns dos momentos marcantes da vida intensa e agitada dessa mulher negra que superou os obstáculos mais difíceis para se tornar, inclusive, uma personalidade internacional, uma cidadã do mundo progressista e evangélico.
Em poucas palavras podemos definir Benedita da Silva como uma mulher negra corajosa, coerente e determinada. Uma “preta teimosa”, como ela gosta de assinar.
Val Carvalho é amigo de Benedita e desde 1991 colabora com o seu trabalho político e partidário
Alberto Cantalice é diretor da Fundação Perseu Abramo