O mundo do trabalho está no centro de um projeto de desenvolvimento brasileiro. Muito se tem falado sobre o futuro do trabalho, mas é preciso ter clareza qual o lugar das pessoas trabalhadoras no presente e futuro do Brasil. Vivemos em um processo intenso de plataformização do trabalho – a crescente dependência de plataformas digitais para atividades de trabalho – e esse cenário tende à generalização. Ou seja, entregadores e motoristas podem ser uma ponta mais visível, mas estão muito longe de serem os únicos. Em um país historicamente atravessado pela informalidade, as plataformas – que são, ao mesmo tempo, empresas, infraestruturas e softwares – apropriam-se, controlam e subordinam as pessoas trabalhadoras.
Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, divulgada em 2021, 20% da população emprega alguma plataforma ou aplicativo para trabalhar. O número é equivalente a 32,4 milhões de brasileiros. Em fevereiro de 2020, o índice medido pelo instituto era de 13%. O estudo considerou o uso de plataformas não somente de mediação de trabalho (como de transporte privado ou de entregas), mas também o uso desses agentes como instrumento de comunicação e de realização de negócios. Segundo o relatório “Digital 2021”, da consultoria We Are Social, nesse ano 54,1% dos usuários no Brasil utilizavam plataformas de transporte privado, indicando o crescimento e a prevalência dessas plataformas de trabalho no país. Além disso, pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) sobre o uso de internet no Brasil durante a pandemia apontou que 76% das pessoas com acesso à internet que trabalhou neste período venderam algum produto ou serviço por meio de plataformas.
Mas várias pesquisas no país têm mostrado que as condições desses trabalhadores estão longe de ser consideradas dignas. No projeto Fairwork – que avalia as principais plataformas de trabalho em 30 países de acordo com princípios de trabalho decente –, o Brasil só está acima de Bangladesh. Em uma escala de 0 a 10, a maior pontuação das plataformas no país é 2. E, das seis plataformas analisadas no primeiro relatório, três ficaram com zero. Ou seja, há muito a fazer em termos de trabalho decente no país.
Os cidadãos concordam com essa percepção. Pesquisa do Instituto Locomotiva encomendada pelo Fairwork indica que 93% moradores da cidade de São Paulo acreditam que as plataformas deveriam oferecer condições mais justas aos trabalhadores. Sete em cada dez paulistanos deixariam de usar plataformas que não oferecem condições de trabalho decentes aos trabalhadores. Ainda 87% acreditam que as plataformas devem ser obrigadas a escutar e negociar com grupos que representem os trabalhadores por plataformas. Ou seja, há um clamor para a busca por trabalho decente no trabalho por plataformas.
Por isso, é preciso formular políticas públicas para a garantia do trabalho decente, especialmente de quem atua por plataformas digitais. O tema vem ganhando muita visibilidade em todo o mundo. Em 2021, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou relatório sobre o tema com um conjunto de recomendações que envolvem temas como liberdade de associação e negociação coletiva, combate à discriminação, segurança e saúde, seguridade social, sistemas justos de pagamento, proteção de dados.
Na Europa, uma diretiva para garantir condições adequadas a esses trabalhadores foi proposta em 2021 e está em debate. Um primeiro aspecto é a identificação do que são relações de emprego e quais são situações de autônomos ou prestadores de serviço. Pela proposta, trabalhadores precisam ter garantias como salário mínimo, descanso e feriados, proteções de saúde e segurança, planos e benefícios de saúde, seguro-desemprego, licença-maternidade, aposentadoria e auxílios relacionados a doenças e acidentes de trabalho.
A candidatura Lula à Presidência percebeu a importância e a urgência dessa agenda. Segundo noticiado por órgãos de imprensa no início de junho, uma proposta de diretrizes para o programa de governo do ex-presidente afirmou o trabalho no centro de um novo modelo de desenvolvimento e reconheceu a necessidade de assegurar direitos aos trabalhadores de plataformas.
Essa agenda deve cobrir um conjunto importante de aspectos do trabalho em plataforma. O primeiro é fiscalizar e reconhecer os vínculos onde eles estão disfarçados ou fraudados, com a consequente aplicação da legislação trabalhista a esses trabalhadores. Isso passa pela criação de um programa específico no âmbito do Ministério do Trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho para fiscalizar violações e abusos nas relações de trabalhadores em plataforma.
Para além disso, é preciso discutir um novo marco normativo de proteção dos trabalhadores por plataformas que estabeleça claramente diferenciações entre emprego e trabalho autônomo e que neste último caso assegure, entre outros aspectos, 1) parâmetros de remuneração justa, com valores mínimos e percentuais máximos de taxação pelas plataformas; 2) regras públicas democráticas para plataformas de atividades pontuais (freelancers) que assegurem a justa distribuição do trabalho, e a não discriminação por qualquer marcador social (gênero, raça, sexualidade, origem etc.); 3) transparência nos contratos, regras internas, nos critérios e funcionamento dos algoritmos de gestão e da aplicação de sanções; 4) medidas obrigatórias de saúde e segurança dos trabalhadores e cobertura pelas plataformas de custos com licenças decorrentes de acidentes de trabalho e doenças; 5) garantias de livre associação dos trabalhadores em plataforma e reconhecimento de sindicatos e federações para negociações coletivas com esses agentes; e 6) garantia da proteção de dados dos trabalhadores e medidas para limitar fortemente a vigilância das plataformas sobre esses.
O tema da proteção de dados de trabalhadores passa também, então, pelos direitos dos trabalhadores aos dados. As negociações de sindicatos com plataformas devem considerar todo o ciclo de dados no trabalho, envolvendo coleta, análise e armazenamento. Por exemplo, saber quais tecnologias são usadas para coleta e a partir de quais fontes de dados, o direito para refutar ou bloquear a coleta de dados, além do acesso dos sindicatos a eles. Em relação à análise de dados, isso envolve os direitos de trabalhadores para acessar os dados e as inferências a partir deles, além do direito de poder contestar a análise. Além disso, há o direito de saber onde estão localizados os servidores, quem tem acesso a eles e sob qual jurisdição. Ainda, há a necessidade de saber o que acontece depois com os dados: são vendidos? Apagados? Os trabalhadores podem recusar ou bloquear a venda de dados? Isso significa, então, construir um forte marco de proteção de dados de trabalhadores, especialmente no contexto da economia de plataformas.
Outras recomendações da OIT em relação ao trabalho decente por plataformas referem-se especificamente aos trabalhadores que atuam remotamente, desde as suas casas. No mencionado relatório de 2021, a OIT sugere políticas públicas que enfoquem em questões como direito à desconexão, elaboração de soluções para combater os efeitos psicossociais derivados do trabalho de moderação de conteúdo, introdução de medidas que mitiguem os riscos derivados do isolamento social e adoção de uma política nacional do trabalho em domicílio, incluindo enquadramentos legais para a igualdade de gênero.
Porém, essas políticas precisam vir articuladas ao fomento de plataformas baseadas em ferramentas abertas, que sejam propriedade de trabalhadores que dela fazem parte (como de motoristas e motoboys, prestadores de serviços gerais, entre outras), por cooperativas ou, se for o caso, pelo poder público. Desta forma, é possível articular potencial tecnológico com outras formas de organização social, considerando valores como governança democrática, dados para o bem comum, trabalho associado, tecnologias livres e trabalho decente. Contudo, é preciso ter cuidado, pois não podemos pensar que essas plataformas, por si mesmas, serão solucionadoras de todos os problemas, mas, antes, é necessário fortalecer a organização coletiva de trabalhadores em torno da construção de tecnologias. Isto é, a construção e o fomento de plataformas cooperativas não têm como propósito a construção de aplicativos de forma desenfreada. Não adianta criar um aplicativo em que a propriedade de dados e infraestruturas continue com alguém ligado às Big Tech. Por isso, o combate à plataformização do trabalho dominante deve vir articulada a uma luta por soberania digital – envolvendo dados e infraestruturas.
Dessa forma, o fomento ao cooperativismo de plataforma no Brasil deve: incluir projetos locais, regionais e nacionais; articular diferentes setores (por exemplo, transporte, alimentação e tecnologias livres), incentivando a intercooperação – que é um fator-chave para o cooperativismo de plataforma; incluir editais de fomento a pesquisadores e cooperativas, a exemplo de editais de fomento para empresas em parcerias com universidades. Isso tudo deve levar em conta o aproveitamento de redes preexistentes, de quem será a propriedade da plataforma, como será a gestão de dados e a intensificação da cooperação entre cooperativas. Ou seja, trata-se menos de cada prefeitura ou estado construir seu próprio aplicativo do que fomentar estrategicamente esse tipo de plataformas como política nacional. Isso significa também uma maior articulação entre trabalhadores plataformizados e movimentos de tecnologias livres – históricas no Brasil desde o período de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Isso porque não basta copiar ou “tropicalizar” modelos de plataformas cooperativas do Norte Global, mas o que pode funcionar a partir das realidades locais e das redes preexistentes, de baixo para cima.
Portanto, a agenda de políticas públicas para o trabalho decente por plataformas no Brasil não envolve uma saída única ou fácil. Temos, por um lado, um desafio muito grande na formulação de políticas públicas que recoloquem as trabalhadoras e os trabalhadores no centro de um projeto de país. Por outro, sabemos que a hora é agora e não podemos vacilar porque o que está em jogo é não só o futuro, mas o presente de milhões de brasileiras e brasileiros. Com o número crescente dessa categoria de trabalhadores, esse tema se impõe como uma das agendas prioritárias de uma nova gestão de Lula presidente.
Rafael Grohmann é professor de mestrado e doutorado em Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour e do projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford
Jonas Valente é pesquisador de pós-doutorado do projeto Fairwork na Universidade de Oxford. Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB)