Política

O desmatamento da Amazônia já atingiu 20% da floresta, até antes do ano de 2021, quando o processo de destruição foi estimulado e apoiado pelo atual governo

Temos um modelo que investe muito em publicidade (“O Agro é pop”) para preservar uma imagem de grandes promotores do desenvolvimento nacional. Foto: Wilson Dias/ABr

Apesar dos assassinatos de índios, quilombolas, ambientalistas, jornalistas e membros das comunidades locais e tradicionais na Amazônia, dos quais os casos de Dom Phillips e Bruno Pereira foram os crimes mais recentes, mas não foram os únicos, as regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil continuam a apresentar, agora em julho de 2022, os melhores índices de intenção de voto no atual presidente. Isso abre um espaço para uma reflexão: por que há essa situação de apoio a uma política destruidora do meio ambiente e genocida?

Um discurso de que empregos serão gerados apenas com desmatamento, garimpos ilegais, extração desenfreada de madeira, geralmente sempre em atividades ilegais patrocinadas ou aliançadas com o crime organizado na região, criou uma base social de defesa desse modelo. Torna-se importante desmistificar esse discurso, ao mesmo tempo em que se deve apresentar alternativas viáveis de sobrevivência e crescimento social e econômico das populações locais, com a preservação da floresta de pé, os rios fluindo e as comunidades sem serem atacadas.

O processo de degradação ambiental do Brasil, que espelha o momento mundial de esgotamento dos recursos naturais, aquecimento global com a emergência climática e destruição da biodiversidade, é uma realidade constatada cientificamente por diversos institutos e pesquisadores, a exemplo de Carlos Nobre, que é considerado o cientista brasileiro mais respeitado no mundo nos estudos sobre a floresta amazônica. Nobre conseguiu sedimentar e divulgar a teoria dos “rios voadores” que vão da Amazônia para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul e garantem os rios dessas regiões, a atividade agropecuária, água para consumo humano e geração de energia hidrelétrica. A destruição da Amazônia e de seus rios voadores já está trazendo consequências para o conjunto do país.

O desmatamento da Amazônia já atingiu 20% da floresta, até antes do ano de 2021, quando o processo de destruição foi estimulado e apoiado pelo atual governo, seja por discursos, pelo desmantelamento dos órgãos de controle, ou por atos do governo e tentativas de aprovação de leis anti-ambientais. Esse desmatamento já provoca mudanças no clima do país como um todo. Todos nós pagamos uma tarifa de energia mais cara pela deficiência dos reservatórios de água que deveriam propiciar a geração de energia elétrica; há em algumas regiões racionamento de consumo de água para consumo humano e as chuvas têm diminuído, provocando uma diminuição da produção e da produtividade na região da produção agrícola.

Na Amazônia os efeitos também se fazem sentir, as secas duram mais tempo e as estações chuvosos estão mais curtas; há rios que ficam mais rasos e uma onda de queimadas em algumas regiões. A temperatura na região já aumentou cerca de dois graus, enquanto a média de aumento mundial é de 1,07°C . O Brasil tem uma responsabilidade geopolítica de apresentar um modelo de conservação desse bioma sob pena de destruir a maior floresta tropical e a maior sociobiodiversidade do mundo. Com essa destruição será criada uma imensa savana onde hoje é a floresta e as demais regiões do país serão arrastadas para um colapso ambiental, com a falência do agronegócio pela falta de recursos hídricos e com a crise energética, pois a nossa matriz depende da água. Haverá a desertificação do Nordeste. Esse conjunto terá como resultado a fome, as migrações, a violência e a desestruturação econômica. A responsabilidade mundial do Brasil também se afirma, pois se conseguirmos um modelo sustentável e socialmente justo aqui, serviremos de exemplo para as demais regiões do globo afetadas pela indústria do desmatamento, da mineração predatória, da exploração madeireira e do garimpo sem controle.

A Amazônia não deve ser único foco, o Cerrado está secando pela maneira com a fronteira agrícola se expandiu, sem controle e assacando os recursos hídricos sem planejamento. Essas áreas de Cerrado e da quase extinta Mata Atlântica que foram ocupadas pela atividade agrícola e pecuária, têm uma emissão de carbono muito grande, diferentemente das agroflorestas que permitem a neutralidade na emissão de carbono. O Brasil já tem experiências exitosas e tecnologia desenvolvida pela Embrapa, universidades e movimentos sociais que podem permitir uma produção sem destruição, e com taxas de lucros mais elevadas.

A ciência nos apresenta dados irrefutáveis, como os dados do IPCC, Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, que em 28 de fevereiro de 2022 publicou seu relatório que indica que um bilhão de pessoas sofrerão deslocamento por inundações das áreas costeiras até 2050, e nos presentes dias pelo menos 3,3 bilhões de pessoas “são altamente vulneráveis às mudanças climáticas” e 15 vezes mais propensas a morrer por condições climáticas extremas. Foi um relatório que apresentou características próprias, instando os Estados a atuar com maior rapidez para cortar as emissões de carbono e indicando o impacto humano em mortes, fome, destruição e migrações por mudanças climáticas.

É importante salientar que não há mais espaço para um negacionismo sobre as mudanças climáticas. As previsões anteriores do IPCC se confirmaram todas, com o aumento vertiginoso dos eventos climáticas extremos, como inundações, ciclones, ondas de calor e de frio, secas e queimadas. A cada 0,1° C de aumento médio da temperatura, o nível dos mares se eleva, os corais morrem massivamente, há uma destruição da biodiversidade e diminuição do nível de oxigênio nos oceanos. Até agora aumentamos a temperatura global em 1,07° C.

Apesar disso tudo, persiste um discurso que, mesmo admitindo a destruição, a extinção em massa, o desflorestamento e até os assassinatos de índios e populações locais, insiste que não é possível desenvolver sem degradação ambiental, que o preço a ser pago é a destruição ambiental mesmo. Essa tese está equivocada nos seus pressupostos e nas suas consequências.

Estudos científicos demonstram que destruir florestas ou os biomas locais para implantação de atividade de agronegócio ou de mineração predatória não promove desenvolvimento social, geração de empregos e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) não passa por incremento, e em muitos casos sofre uma redução. O IDH é a combinação entre renda das pessoas, anos de escolaridade e média de anos de vida, se tornando mais eficaz para avaliar as condições reais de vida das populações do que apenas o Produto Interno Bruto. Não é verdadeira a argumentação de que estamos gerando empregos para os trabalhadores, ou melhorando sua renda e suas condições de vida com o desmatamento. A consequência desse projeto é justamente a destruição dele mesmo, como descrito acima, pois mesmo o agronegócio precisa de água para produzir, o que está ficando mais difícil, o Brasil nos últimos 40 anos diminuiu seus recursos hídricos em 15% e o ritmo tem se intensificado.

Segundo estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia, “supressão de vegetação nativa da Bahia: o que estamos perdendo”, sob a coordenação do pesquisador Pedro Luís Bernardo da Rocha, em colaboração com vários autores, como Blandina Felipe Viana, Gilson Carvalho, Charbel Niño El-Hani, Francisco Carlos Rocha de Barros Junior e outros pesquisadores da UFBA:

Para todos os níveis de destruição da vegetação nativa, o IDH dos municípios da Bahia é, em média, o mesmo, ou seja, a destruição da vegetação não aumentou o desenvolvimento humano dos seus habitantes. Esse resultado tem sido encontrado em outras regiões, como a Amazônia e em outros níveis de análise, por exemplo, quando comparamos os países entre si. Os municípios que perderam sua vegetação natural e não conquistaram desenvolvimento humano estão assim duplamente pauperizados, do ponto de vista especificamente humano e do ponto de vista da natureza em geral.

Outro estudo de relevância foi desenvolvido pela UFABC e pela UFOB em parceria com o Greenpeace que resultou no relatório “Segure a Linha – A Expansão do Agronegócio e a Disputa pelo Cerrado”. O estudo analisou as dinâmicas socioeconômicas na região de Cerrado denominada Matopiba, que reúne municípios do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.  Os resultados da pesquisa sobre essa região, apontada como exemplo de sucesso pelos expoentes do agronegócio e por diversas autoridades governamentais, mostram que “existe mais pobreza e injustiça do que riqueza e bem-estar”. Pode haver crescimento do PIB e das exportações, mas gera-se riqueza para poucos, que se beneficiam do modelo de cultivo com forte uso de agrotóxico e destruição do Cerrado, o que compromete os rios da região e o abastecimento dos rios da Amazônia. Dos 337 municípios do Matopiba, somente em 45 os indicadores de produção e bem-estar superam a média dos respectivos estados. Dos 10 maiores municípios produtores de soja no Matopiba, apenas têm bons indicadores sociais pelo IDH.

Temos um modelo que investe muito em publicidade (a exemplo da permanente e rica campanha publicitária em horário nobre “O Agro é pop”) para preservar uma imagem de serem os grandes promotores do desenvolvimento nacional. Na verdade, é um modelo que se consolidou com o processo de desindustrialização nacional, levando o país a uma situação de colônia de exploração, com base na exportação de commodities de baixo valor agregado como soja, milho, ferro ao mesmo tempo em que importamos produtos de alto valor agregado. O Brasil retroage em cem anos, quando em 1922 éramos um país com base econômica na exportação de produtos agrícolas e importação de produtos industrializados.

Um outro modelo de desenvolvimento é viável e muito mais rentável, se soubermos dispor da biodiversidade com responsabilidade e sustentabilidade, incluir as populações locais na sua preservação e cultivo, conseguirmos agregar valor a esses itens e mantivermos os biomas com vida. O desmatamento zero e o reflorestamento são exigências para conseguirmos manter os recursos hídricos, a base econômica da agricultura, a produção da energia hidrelétrica e a sobrevivência das pessoas, mas esse reflorestamento pode gerar empregos e renda. Há programas de reflorestamento de grande porte, como na China e no leste da África, que envolvem a população local, que ganha algum recurso para preservar o meio ambiente.

Dessa maneira romperemos o círculo vicioso de destruição, garantindo uma fonte de renda diferente da mineração, do garimpo, do desmatamento, da agricultura sem sustentabilidade. Já temos estudos que indicam que se reflorestarmos os 20% da Amazônia destruídos poderemos gerar até 2,5 milhões de ocupações com renda, a exemplo do “bolsa verde”, já lançado no período do governo Lula. Precisamos de um amplo programa de renda mínima condicionado à manutenção da biodiversidade. Nesse processo, o papel do Estado é fundamental para garantir esse novo perfil econômico, e assim criarmos uma base social que tenha a sustentabilidade como forma de sobrevivência e passe a defender seus princípios e práticas.

O Brasil pode estabelecer que não haverá mais desmatamento, garimpo ilegal, ação de madeireiros e grileiros na Amazônia, e para isso precisa aplicar a lei, fortalecer os órgãos de controle e combater as milícias criminosas que se apropriam e destroem o bioma amazônico, assim como parar a destruição do Cerrado, da Mata Atlântica, do Pantanal, da Caatinga e ter um programa governamental para viabilizar sua recomposição. A bioeconomia e as iniciativas de agroflorestas que produzem com a floresta de pé e os rios fluindo são viáveis para muitas comunidades e podem contribuir para preservar, incluir socialmente e garantir um futuro para a Humanidade.

Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em Educação