Mais uma vez, desde 1989, quando retorna a normalidade democrática no Brasil após décadas de ditadura militar, a população vai às urnas expressar seus desejos no tocante ao futuro do país. Eleições, mesmo que a participação popular se restrinja basicamente ao ato de votar no modelo político brasileiro, são sempre momentos oportunos de debate sobre os grandes temas nacionais.
Após 45 anos do lançamento da Carta aos Brasileiros, lida pelo professor da USP, Goffredo Silva Telles Jr., no intuito de mobilizar a sociedade brasileira contra a ditadura militar, neste último dia 11 de agosto, também na USP e em várias outras Universidades e estados brasileiros, foi lançado um manifesto em defesa da democracia, assinado por mais de um milhão de pessoas representando segmentos diversos e até divergentes da sociedade civil brasileira. A novidade trazida por esta última manifestação reside no fato de incluir, para além da defesa da democracia, do estado de direito e de referendar as urnas eletrônicas, “pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual”.
No caso específico da questão racial – tratada historicamente como um não problema social dado as pregações do mito da democracia racial brasileira – cola no manifesto junto com a pauta democrática na conjuntura atual de graves ameaças aos cânones da carta de 1988. Isso não é algo a ser menosprezado, considerando ainda que parte dos signatários usufruíram e usufruem de privilégios econômicos e sociais contrapostos a massa da população negra brasileira que sobrevive sob condições adversas no seu cotidiano.
Ao ser ratificado por amplos setores da sociedade civil, este documento reforça o imperativo de aprofundarmos o nosso regime democrático para além das formalidades já acatadas no seu modelo político apontando luzes rumo ao alcance prioritário de uma maior equidade entre cidadãos e cidadãs brasileiros(as) na agenda política do país, inclusive prevendo maior diversidade e participação no âmbito institucional. Esta não é uma tarefa simplória, a cargo de um grupo ou pessoa iluminada nem será equacionada no curto prazo dado o conflito de interesses que lhes são inerentes.
O quadro de desigualdade racial que assola o Brasil não sofreu grandes alterações durante a vida republicana deste país, mesmo durante a vigência dos grandes projetos desenvolvimentistas dos governos Getúlio, Juscelino ou mesmo durante a ditadura militar. Os próprios avanços sociais e econômicos experimentados no período 2004/14, durante os governos petistas de Lula e Dilma, sofreram graves reveses políticos já no governo Temer com o apoio de setores médios da sociedade que se sentiram desprivilegiados não com a sua perda de status, mas com a melhoria na qualidade de vida na base da pirâmide social.
Mario Teodoro (2022) nos traz os fatores que sedimentam e mantêm de forma atemporal este quadro de desigualdade racial no Brasil: a) o não enfrentamento ou passividade do Estado frente a esta realidade; b) assimetrias nas áreas de educação, saúde, trabalho, moradia etc. que existem em desfavor dos grupos discriminados; c) os mecanismos jurídicos-institucionais e repressivos que atuam como mantenedores dessas desigualdades e, por fim; d) a forte oposição aos movimentos sociais que lutam para alterar este estado de coisas, tais como o movimento negro, feminista, sem terra, sem teto, LGBTQI++, juventude, estudantil etc.
Não custa observar que a inserção da pauta racial no manifesto da USP, decorreu da ação concertada de caráter afirmativo do movimento social negro contemporâneo, enfrentando grandes resistências ideológicas no espectro político, seja à esquerda ensejando sempre o protagonismo da categoria classe em detrimento da categoria raça, seja à direita com a permanente exclusão da questão racial como uma demanda que requeresse atenção do Estado ou da sociedade.
Foi o movimento social negro contemporâneo que, em 1995, pressionou e o governo FHC reconheceu oficialmente que o Brasil é um país racista, assim como teve um papel preponderante, a partir de 2003, para que os governos petistas implantassem políticas de igualdade racial, aprovasse a política de cotas e o estatuto da igualdade racial. É o movimento social negro contemporâneo que vem estimulando a participação de ativistas nos processos eleitorais para ampliar a pressão pelo fim das desigualdades raciais seja por dentro dos espaços de decisão e poder político, seja nas ruas, contribuindo com a organização da sua base social.
Neste oportuno momento de alternância política, é imprescindível não utilizar o poder do seu voto para eleger candidatos racistas, homofóbicos, machistas e aporafóbicos, dentre tantos outros que se alimentam politicamente do preconceito, da discriminação, da falta de respeito e empatia e da intolerância sejam estes candidatos proporcionais ou majoritários. Cabe ressaltar que esta postura crítica não deve se limitar a pessoas. Atores institucionais como igrejas, sindicatos, empresas, agentes culturais, servidores públicos, profissionais liberais etc., devem protagonizar e contribuir nesta construção coletiva.
O cavalo da democracia está selado e disponível para ser cavalgado por toda a sociedade brasileira ou, ao menos, pelo seu contingente antirracista que acredito, seja a maioria. Achilles Mbembe nos assevera que: “Para construir este mundo que nos é comum, será preciso restituir àqueles e àquelas que foram submetidos a processos de abstração e de coisificação na história a parte da humanidade que lhe foi roubada. Nessa perspectiva, o conceito de reparação, além de categoria econômica, remete ao processo de recompensação das partes que foram amputadas, a reparação dos laços que foram rompidos, o reinício do jogo de reciprocidade sem o qual não pode haver elevação em humanidade”. (Mbembe, 2018, p 313-314)
A hora é esta. Por uma agenda coletiva, democrática, popular, antirracista, antifascista e multicultural para o Brasil.
Referência Bibliográfica:
Mbembe, Achilles. Crítica da razão negra. São Paulo: Instituto Francês do Brasil, 2015.
Teodoro, Mario. A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil. 1ª ed. Zahar, 2022.
Carlos Trindade é militante negro, economista, mestrando em Sociologia pela UFS, ex-secretário de planejamento e comunidades tradicionais da Secretaria de Igualdade Racial da Presidência da República de 2004 a 2008 e presidente do Sindicato de Auditores e Fiscais de Tributos de Aracaju