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O mercado de dados vem sendo explorado, sem regulação, sem participação do titular do dado e sem pagamento de tributo, por empresas como Facebook, Google, Amazon e Microsoft

O deputado federal Arlindo Chinaglia, do PT de São Paulo, apresentou o Projeto de Lei Complementar – PLP nº 234/2023, que pode inserir o Brasil na vanguarda da revolução tecnológica em curso no mundo, regulamentando o direito à monetização de dados e assegurando o direito de propriedade de dados pelo cidadão e a retribuição pelo uso de seus dados por terceiros.

O projeto institui uma Lei Geral de Empoderamento de Dados e dispõe sobre o Ecossistema Brasileira de Monetização de Dados, que consiste em definir a propriedade do dado para seu titular, certificar essa propriedade e permitir que ele possa usufruir dos ganhos decorrente do uso de seus dados pessoais, criando uma espécie de poupança para o dono do dado e não apenas para as empresas de tecnologia ou big techs que coletam e comercializam os dados de seus usuários.

Conceitualmente, a monetização de dados contempla a coleta e processamento de dados de uma pessoa física ou jurídica para a geração de receita ou um benefício econômico. É o processo pelo qual empresas ou organizações coletam, processam e vendem informações sobre as pessoas, em particular visando fins comerciais, utilizando técnicas de análise de Big Data. Envolve a coleta e análise de dados pessoais, a fim de criar perfis de consumidores e direcionar publicidade personalizada, desenvolver produtos e serviços, identificar padrões comportamentais, e gerar novos conjuntos de informações de interesse de quem os adquire, produzindo um benefício quantificável para quem coleta e processa os dados.

O projeto em questão define os participantes desse ecossistema, seus princípios e objetivos, os conceitos, as garantias e direitos aplicáveis aos titulares de dados, os requisitos técnicos a serem atendidos, o conteúdo mínimo do contrato a ser firmado entre titular e coletores/armazenadores e agentes de dados, os procedimentos a serem adotados, as competências fiscalizatórias e regulatórias, as penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das obrigações das instituições envolvidas, entre outras medidas necessárias ao seu funcionamento.

Trata-se de um ecossistema, capaz de captar dados gerados por dispositivos de qualquer espécie, conectados à rede mundial de computadores, ou mediante transações que gerem dados relacionados ao seu usuário, inclusive em âmbito doméstico ou veicular, todos passíveis de serem coletados, processados ou distribuídos. Esses dados pessoais, que seriam certificados, poderiam ser captados e armazenados por diferentes instituições habilitadas para oferecer serviços aos usuários, os quais seriam utilizados para desenvolver novos produtos, personalizar produtos e serviços e ofertá-los a esses usuários, com garantia de remuneração ao titular do dado.

Funciona mais ou menos assim: uma vez feita a “certificação” e estabelecida a propriedade individual do dado, o proprietário-titular poderá tomar as decisões de seus interesses sobre a cessão de seu uso, baseado nos ganhos e vantagens que lhe sejam ofertadas ou asseguradas. Agrupados e organizados segundo os relacionamentos e categorias, os dados poderão ser valorados e monetizados, e essa valoração dependerá tanto da natureza da informação gerada, quanto da quantidade de dados e seus relacionamentos, pois somente a partir deles é que um dado individual assume valor.

Desse modo, a monetização de dados pessoais poderá ser feita através de um sistema centralizado que utiliza uma identidade digital única para consolidar informações de diversos usuários e disponibilizá-las para empresas interessadas em comprá-las. A partir da criação de uma “identidade digital”, única e intransferível, para cada usuário ou titular de dados, vinculada a um processo de registro e fornecimento de informações pessoais básicas do titular, e ao desenvolvimento de um sistema de proteção dessa identidade, por meio de criptografia ou blockchain, por exemplo.

Com essa identidade o titular terá acesso a um sistema de gerenciamento, por meio do qual poderá autorizar, para os fins que considerarem justificáveis, os dados pessoais por ele gerados ou disponibilizados, e ser recompensados financeiramente ou por meio de acesso a serviços gratuitos ou descontos em produtos e serviços, pelos que acessarem esses dados, e os gerenciadores/intermediadores de dados poderão coletar e processar dados relevantes, incluindo informações demográficas, histórico de compras, preferências pessoais e qualquer outra informação de interesse de empresas e anunciantes, que poderão ser empresas atuantes nos mais variados segmentos (setor financeiro, de previdência complementar, seguros privados, saúde suplementar, comércio eletrônico, transporte aéreo, varejo em geral), ou mesmo para fins de pesquisa de mercado, de publicidade e de marketing ou até mesmo instituições de pesquisa.

Assim, esse modelo cria uma poupança de dados ou uma espécie de carteira digital, que permitirá ao seu titular fazer transações financeiras, como pagamento de contas, transferência e até aplicação financeira, rompendo com a noção de que quem hospeda o dado, como ocorre com Google, Amazon e Facebook, detém a sua posse e a propriedade “de fato”, e decide o que fazer com eles, mesmo sem o conhecimento do titular desses dados, que, na forma da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, é a pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento.

Esse gigantesco mercado de dados vem sendo explorado, sem regulação, sem participação do titular do dado e sem pagamento de tributo, por empresas de tecnologia como Facebook, Google, Amazon e Microsoft, que coletam enormes quantidades de dados pessoais de seus usuários, incluindo informações sobre hábitos de navegação, comportamentos de compra e preferências de consumo, utilizam esses dados para segmentar anúncios e direcionar conteúdo personalizado para os usuários.

O Brasil, que ficou fora das duas fases anteriores da revolução tecnológica – a do hardware (o equipamento/máquina) e do software (programas que fazem o computador funcionar) –, agora tem a oportunidade de recuperar esse tempo perdido, liderando a regulamentação do uso de dados que movimentam bilhões de dólares e direcionam o consumo humano, mediante a segmentação de anúncio com conteúdo personalizado para os usuários.

Seria natural que o país que inventou o Boleto, a URV, o Pix, o Drex (nossa moeda digital) e outras formas inovadoras de pagamento, saísse na frente na definição de um marco regulatório para a propriedade de dados e a sua monetização. Essa iniciativa inovadora pode colocar o Brasil na vanguarda em termos do tratamento do direito à privacidade de dados, ao seu tratamento e vantagens econômicas advindas do seu tratamento e compartilhamento no âmbito dos ecossistemas digitais.

A transformação em lei desse projeto, além de fazer do Brasil uma referência na proteção da privacidade e integridade de dados e informações, faria justiça ao titular dos dados, permitindo sua efetiva participação nos lucros por eles gerados, e distribuindo renda e gerando tributos para os cofres públicos, inclusive com parcela dessa arrecadação sendo destinada aos programas de combate à pobreza. Com a poupança de dados, os brasileiros, em lugar de nascerem devedores, como acontece atualmente, já nascerão credores, pois seus dados irão gerar renda para seus titulares.

Trata-se, portanto, de uma iniciativa ousada, inovadora e corajosa, que enfrentará, certamente, a resistência das big techs, mas que pode colocar o Brasil na dianteira mundial nesse debate e assegurar uma posição de liderança, com enormes externalidades positivas, além de contribuir para a implementação de uma política de renda básica de cidadania no país.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap e é membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República