E sobreveio um Tempo sem entranhas.
Anos de pedra espessa,
dias de muro e medo:
a morte invadiu
com seus exércitos
o espaço aberto das ruas
e o silêncio das armas
sepultou com seus ferros
e o manto verde-oliva
os ossos dos meninos trucidados.
E os coveiros do Continente
estenderam seu império
de delatores,
carrascos,
elegantes assassinos
de farda impecável
e coturnos reluzentes,
até o porão das fábricas,
a marcha dos retirantes,
os barracos das favelas,
os bancos das escolas,
os sonhos dos saqueados,
até a última fresta
onde a boca dos humanos
passasse ao humano ouvido
palavras de rebeldia.
E a Noite pensou de si mesma
que era um Tempo sem prazo,
sem passado, sem futuro,
um Tempo que se bastava,
da própria dor se nutria.
Os olhos da Noite cega
não viram fagulhas saltando
na alma das oficinas,
não viram tochas ardendo
na marcha dos retirantes,
não viram os favelados
recriando o fogo vivo
nas estações depredadas,
e os olhos dos estudantes
clareando de esperança
as ruas submetidas.
Os olhos da Noite cega,
não viram o sonho do Povo
reacendendo fogueiras
no ventre da escuridão
enquanto busca romper
as turvas cadeias do sol
e AMANHECER!
Pedro Tierra
Presídio Político de São Paulo (Barro Branco), maio/1975
Este poema foi escrito no Presídio do Barro Branco, na Zona Norte de S. Paulo, onde se encontravam encarcerados quarenta e dois condenados pela Lei de Segurança Nacional. Essa mesma que segue vigente apesar da Constituição liberal-democrática de 1988. Releio essa página hoje, 31 de março, quarenta e seis anos depois e confirmo, não sem amargura, uma convicção antiga: o Brasil é um país que se move em círculos. Esse poema poderia ter sido escrito ontem para denunciar um passado que se recusa a nos deixar. Insiste em atar-se ao presente e imprimir nele sua marca de desigualdade, exclusão, brutalidade, tortura, de insensibilidade frente à dor do outro. E a literatura segue sendo interpelada a dar o seu testemunho.
Ditadura Nunca mais!