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Quando uma pessoa durante a vida influenciou a vida de tanta gente, quando ela morre sua existência permanece, em cada um que ela formou, em cada conquista que se consolidou, nas lutas que deixou

Não sei se tenho idade suficiente para fazer análises sobre a vida, mas nesses trinta anos que vivi pude aprender algumas poucas coisas e uma delas é que existem pessoas que entram na sua vida para deixar marcas profundas na sua trajetória. Não é como um amor à primeira vista dos contos de fadas, muitas vezes demoramos anos até entender a real influencia dessas pessoas em nossas vidas, mas cada uma delas são fundamentais para nossa história.

Você consegue imaginar uma praia paradisíaca durante uma noite sem a lua ou as estrelas? Não é possível enxergar a beleza do lugar e nem saber como se movimentar, mas se um farol acender, se a lua cheia aparecer, ou quando o sol nascer você passa a descobrir toda beleza desse lugar. Pensando que essa praia é nossa vida, e que a escuridão são os momentos nos quais nos sentimos perdidos, sem saber muito bem qual caminho seguir ou até mesmo sem enxergar a beleza que está ao nosso redor. Nesses momentos existem pessoas que surgem como um farol, como um guia, que nos ajudam a perceber tudo que está a nossa volta. O Flávio Jorge, nosso querido Flavinho, foi essa pessoa para a minha vida e na de várias outras que tiveram a oportunidade de conhecê-lo.

Conheci o Flavinho em 2012, logo que me filiei ao PT e me reencontrei com o movimento negro. Digo que reencontrei porque quando era mais nova acompanhei a minha mãe em diversas agendas do movimento negro brasileiro, em especial de mulheres negras. É possível, inclusive, que já naquela época eu o tenha conhecido, mas prefiro falar sobre o que lembro porque é mais fácil. Eu tinha acabado de me filiar, estava iniciando a minha trajetória como uma militante do movimento negro e Flavinho foi uma das primeiras pessoas a me acolher, me ensinar sobre os coletivos, sobre as lideranças, sobre as nossas principais lutas. Minha primeira fala em uma audiência pública representando uma entidade foi graças ao Flavinho que me indicou para falar em nome da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), coletivo que também em 2012, a convite dele, passei a militar. Sempre tive muito receio de falar em público, nesse dia na audiência lembro que gaguejei, não me apresentei, não falei o nome da entidade que representava, tive muito receio, enfim, a fala não foi boa, mas ele ao final me parabenizou e disse que com o tempo eu pegaria o jeito. Não entendia porque ele que tinha tanta experiência, que sabia exatamente o que precisava ser dito abriu mão de falar para que eu representasse a Conen naquele momento e em vários outros atos, seminários, encontros, até que eu pegasse o jeito e já soubesse me apresentar, apresentar o coletivo que faço parte, e discursar as nossas análises e propostas para o que estava sendo pautado. Nossa conexão foi tão grande que a gente brincava que ele era o “meu pai do movimento negro”, e de fato foi como um pai, não só para mim, como para vários outros jovens negros que tiveram a felicidade de aprender e ter ele como dirigente.

Ninguém nasce sabendo falar ou fazer análises de conjuntura. A militância política, em especial a militância no movimento negro, é fruto de uma construção coletiva e histórica, se aprende ouvindo, vendo e principalmente na luta diária por nossas vidas. Ter a humildade para saber que precisamos aprender com nossos mais velhos é importante, mas ter um mais velho que nos dê a mão e ligue o farol para nos mostrar os caminhos é fundamental e o Flávio Jorge foi, e para sempre será, essa pessoa.

Flávio Jorge foi um dos principais líderes do movimento negro brasileiro. Articulador da Soweto - Organização Negra na cidade de São Paulo e da Executiva da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Flávio foi o primeiro secretário nacional de Combate ao Racismo do PT (1995 a 1999). Um dos principais articuladores do 1º Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen), atuou também na construção da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e na nomeação de Matilde Ribeiro como a primeira mulher negra Ministra da Seppir, que em 2023 se tornou Ministério da Igualdade Racial.

Militante histórico do PT, foi diretor da Fundação Perseu Abramo por mais de uma década, era conselheiro do Instituto Lula e fazia parte da coordenação da Iniciativa África. É praticamente impossível em apenas um texto falar toda a trajetória de luta do Flávio, mas saiba que existe a digital dele em todas as principais articulações, reivindicações, lutas e vitórias do movimento negro brasileiro dos últimos quarenta anos. Desde o ato nas escadarias do Teatro Municipal que fez surgir o Movimento Negro Unificado até as políticas públicas de igualdade racial que foram implementadas no Brasil.

Depois de um tempo militando ao seu lado, eu descobri que sua trajetória na política, assim como a minha, também se iniciou no movimento estudantil em uma universidade privada. Em 1974 ele ingressou na graduação de Ciências Contábeis da PUC e mais tarde, em 1978, ajudou na formação do Grupo Negro da PUC, coletivo que reuniu estudantes negros de diversos cursos e até de outras faculdades. Em 2014, quando ajudei na recriação do coletivo AfroMack, no Mackenzie, onde cursei a faculdade de Direito, ele me contou algumas das histórias de seu tempo de movimento estudantil e fiquei impressionada como os lutas e as reivindicações ainda eram muito parecidas.

Com Flávio Jorge aprendi que a luta contra o racismo e pela igualdade racial está em todas as áreas de atuação. No movimento estudantil que luta por educação pública e de qualidade, no movimento de mulheres que luta pela igualdade de gênero, na segurança pública cidadã, que visa pela proteção da vida e não promoção da morte, na cultura que emancipa nossas almas, no esporte que nos dá energia, na luta por direitos humanos, por justiça, por saúde, por políticas sociais, enfim, a luta pelo fim do genocídio e pela construção de uma sociedade livre do racismo é necessariamente a luta pelo fim de todas as violências, opressões e desigualdades, é a luta pela construção de uma nova sociedade.

Quando soube da morte do Flávio Jorge, a primeira imagem que me veio em mente foi a do farol se apagando, me senti no escuro, e tudo isso em um momento super complexo na sociedade brasileira. Ganhamos a eleição em 2022, Lula é Presidente novamente após anos de destruição cometidas por um governo genocida, mas o governo de União e Reconstrução possui uma série de desafios políticos, econômicos, sociais e ideológicos. Temos uma das bancadas mais conservadoras da história do Congresso Nacional que apresenta diariamente uma série de projetos que colocam em xeque direitos historicamente conquistados, direitos inclusive que o movimento negro com a participação do Flávio Jorge arduamente conseguiu conquistar e consolidar em lei. A criminalização das mulheres, da pobreza, da população negra, o retrocesso em políticas de igualdade que acreditávamos que estavam consolidadas, a bancada da bala, do boi e da bíblia, que essa semana se uniu na bancada do estupro com o PL1904, enfim, temos muito pelo que lutar, muitas políticas para construir, e perder um dos nossos principais líderes nesse momento é inacreditável.

Na religião de matriz africana aprendemos que saber lidar com a vida é saber lidar com a morte. A morte não é o fim, é o início de outra jornada. Quando uma pessoa durante a vida influenciou a vida de tanta gente, quando ela morre sua existência permanece, em cada um que ela formou, em cada conquista que se consolidou, nas lutas que deixou. Me recordo disso para dizer que o luto não pode nos imobilizar nesse momento, todas as lutas que ele travou e conquistas coletivas que promoveu devem servir como combustíveis. A melhor forma de homenagear Flávio Jorge é transformando o luto em luta, é continuar o seu legado de luta pelo combate ao racismo, transformação e justiça social, pela igualdade pela democracia.

Flávio Jorge virou nosso ancestral e a luz desse farol agora se mistura com a luz das estrelas que nos guiam junto de Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, Abdias do Nascimento e muitas outras lideranças negras que foram seus companheiros de luta em vida. Muito obrigada pela oportunidade de aprender com você Flavinho.

Flávio Jorge, presente. Agora e sempre!

Tamires Sampaio é advogada e militante da Conen e do coletivo Bem Viver. Conselheira do Instituto Lula e coordenação da Iniciativa África