Madre Cristina
Para ela, a vida religiosa não é contraditória com a dedicação à luta social
No final dos anos 50 surge no Brasil um componente novo entre as forças que impulsionam as lutas dos trabalhadores. Abandonando uma velha aliança com as elites dominantes, um setor da Igreja católica proclama o retorno aos ideais revolucionários do cristianismo primitivo e começa e engajar-se nas mobilizações populares.
De lá para cá esse deslocamento progrediu muito. No início dos anos 60, a esquerda cristã chegou a gerar uma organização política revolucionária, a AP – Ação Popular, que atuou na clandestinidade e sofreu violenta repressão no período da ditadura militar, como tantos outros agrupamentos do mesmo gênero.
Na década de 70, houve um momento em que a Igreja funcionou como um dos únicos espaços em que era possível manter atividades mais amplas de resistência. Já na década de 80, o fenômeno tinha adquirido expressão tão forte, com projeções internacionais, que desencadeou furiosa perseguição, exercida pelo Vaticano reacionário.
Madre Cristina, nascida Célia Sodré Dória, cônega de Santo Agostinho, educadora, psicóloga, fundadora e diretora do Instituto Sedes Sapientae – que funciona no bairro paulista de Perdizes -, é uma espécie de memória viva desse engajamento dos cristãos brasileiros nas lutas do povo. Nascida em família de origens aristocráticas, prima ou amiga de infância de grandes figurões da alta burguesia paulista, ex-aluna do colégio Des Oiseaux e da faculdade Sedes Sapientae — que durante anos abrigaram a fina flor da juventude feminina dourada —, Célia soube romper com esse ambiente social de forma radical. Tornou-se Madre Cristina para poder, conforme suas próprias palavras, dedicar-se com exclusividade à luta social.
Nos tempos tenebrosos de Garrastazu Médici (1969-74), vários presos políticos – principalmente os militantes da AP e PCdoB - foram torturados para confessar alguma ligação de Madre Cristina com suas organizações clandestinas. Comentou-se com insistência, naquela época, que um dos assassinados nos porões dos DOI-CODIs, o estudante mineiro Carlos Novais da Matta Machado, havia sido duramente pressionado pelos carrascos para incriminá-la. Muita gente não consegue entender até hoje por que Madre Cristina nunca chegou a ser presa. Nem ela.
Filiada ao PT desde a primeira hora, cedeu o espaço do Sedes, sempre que necessário, para realizar reuniões e até convenções do partido. Seus pontos de vista de livre-pensadora e muitas de suas declarações públicas sempre tiveram, no entanto, o poder de despertar fortes controvérsias entre a militância partidária e os amplos círculos da oposição democrática.
“Freira comunista” para a ultradireita, “porra-louca” para os radicais defensores da moderação permanente, essa mulher lutadora tem como principais marcas o ecletismo de sua inteligência aguda e uma coragem sem limites.
Como teve início sua participação política, seu interesse pelas questões políticas?
Desde menina. Na minha casa havia muito ambiente político. Papai sempre foi um político. Não ocupava cargos, mas sempre combateu, trabalhando na oposição. Isso tudo era na década de 1920. Todo mundo achava engraçado eu conversar sobre política. Eu achava ainda mais engraçado que os outros ficassem espantados. Só os homens, num grupinho muito restrito, falavam de política. Mulher nem votava. As mulheres ficavam completamente marginalizadas e excluídas do processo. Mas eu não percebia isso porque em casa, além de papai, éramos só mulheres, cinco mulheres. Ainda menina, a primeira mestra (vamos chamar assim) foi a questão da injustiça social. Eu não me conformava por temos tudo em casa e os outros não terem nada. Então, perguntava para papai: “Mas por que a gente tem tudo e eles não têm nada? Quer dizer: por que uns têm e outros não?” Essa pergunta sempre me perseguia. Então, achei que deveria resolver esse problema. Quando a gente é criança, é mágica, não? Então, queria crescer para resolver isso. Queria ficar velha. Todo mundo implicava comigo porque eu dizia que queria ficar velha, porque, se fosse velha, com experiência e tal, ficaria poderosa e resolveria.
E como veio a opção pela vida religiosa?
Eu não achava que as pessoas casadas não têm condições de levar uma vida totalmente dedicada à questão social. Acho que podem, mas que eu não poderia. Eu não saberia me dividir. Então, tinha de entrar para o convento, porque assim ficaria liberada para poder me dedicar às questões sociais.
Mas nessa época a Igreja não cuidava apenas das almas? Como a senhora planejava cuidar da questão social por intermédio da vida religiosa?
Sempre achei que a Igreja cuidava das almas com um desvio. Cristo se encarnou justamente para cuidar da Terra. E voltar ao cristianismo era ter uma Igreja encarnada. Então, a Igreja tinha de cuidar da Terra.
A senhora, então, pensava a Teologia da Libertação antes de ela ter surgido?
É isso. Ainda não tinha esse nome. Mas eu não imaginava uma Igreja que cuidasse das almas, de salvar almas.
A senhora veio direto de Jabuticabal para a vida religiosa?
Não. Vim para São Paulo e fiquei como aluna interna no Des Oiseaux — a escola mais refinada na época, ali na rua Caio Prado. Tinha 10 anos. Depois voltei para Jabuticabal, terminei o secundário lá e vim para São Paulo estudar na faculdade Sedes Sapientiae, que tinha sido criada pelas mesmas irmãs que dirigiam o Des Oiseaux, as cônegas de Santo Agostinho, minha congregação. Mas aqui, como aluna, eu comandava, determinava as lições, os professores que iam dar aula...
Aí não era mais pensamento mágico...
Aí era inventivo mesmo. Eu chegava e dizia para a diretora: “Olha, esse professor é péssimo. Ou a senhora muda, ou não apareço na aula, porque eu não vim aqui para assistir aula que não presta.” Eu fazia isso sozinha, mas a classe toda achava muito bom. Então, me formei na faculdade. Depois, resolvi entrar para a vida religiosa. Pensei comigo: “Em qual congregação? Vou entrar para uma congregação pobre? Vou entrar nesta aqui, que é rica. Para desmontar esta congregação...”
Seu impulso era sempre pelo engajamento social? Não foi uma opção propriamente mística?
Eu sempre achei que Cristo se encarnou para construir a Terra. Senão, ele teria ficado no céu. Ele foi um revolucionário. Acho que a Igreja ou é revolucionária ou não é cristã. Cristo fez a revolução da época. E a Igreja tem de ser revolucionária sempre. Porque o mundo deve progredir sempre. Se você pegar uma escala de zero a cem, o homem ainda está aqui, no três ou quatro da “hominização”. Há um processo de “hominização” — até virar homem — que é muito longo. Tem de passar por profundas revoluções. Não apenas transformações conjunturais, reformismos. São revoluções.
Por falar em “hominização”, madre, a senhora tinha essas idéias por elaboração própria ou isso já era resultado das leituras de Maritain, Teillard Chardin?
Não. Do Maritain eu não gostava. Não sei se era preconceito. E o Teillard, descobri muito depois. Eu lia muito sobre psicologia. O resto era resultado de elucubrações comigo mesma.
Na psicologia, que pensamento, que corrente, predominava na época?
Olha, eu estudava todas as correntes. Behaviorismo, gestaltismo... Todas as correntes. Depois, formava sempre a minha proposta. Tanto é que, num livro que escrevi, eu descrevia assim: “Opinião de diferentes autores.” Depois acrescentava: “Concepção proposta com as idéias que formava sobre o tema.” Não, eu não seguia uma escola. Freud para mim foi uma grande abertura, dividindo tudo num antes e num depois.
Como era a vida dentro da congregação?
Tinha gente de muito valor. Cabeças muito abertas. Eu disse: “Vou entrar e começar a mudar a cabeça dessas freiras.” Eram pessoas que tinham propostas, mas estavam condicionadas pelo medo. Aí, a gente começou o primeiro movimento para acabar com a divisão de classes dentro da congregação. Porque existia divisão mesmo. Até os hábitos eram de cor diferente, conforme as religiosas fossem de família rica ou pobre. Uma coisa horrorosa. Aquilo tinha de mudar. E mudou porque já não se adaptava mais à época. Então, já havia um estado de espírito favorável a acabar com aquela divisão, embora as coisas permanecessem, por inércia, pelo peso da tradição. A congregação vinha do século XVI. E existia a questão racial também. As negras não eram aceitas na congregação, nem como alunas do colégio. Imagine se uma aluna do Des Oiseaux podia ser negra! Havia o colégio das pobres e o das ricas, separados por um “Muro de Berlim”. A gente ia ao colégio das pobres levar coisas para elas. Pobre não vinha no nosso colégio. Todo mundo que entrava na congregação encontrava essa situação de fato e se acomodava a ela. Mas conseguimos mudar.
Madre, e como foi a passagem dessa sua luta interna dentro da congregação para fora?
Aí eu já era formada. Era freira e professora universitária. Começou a minha luta ao lado dos estudantes. Comecei a puxar a juc — Juventude Universitária Católica. Porque a juc, no início, era um movimento que rezava muito, fazia muito retiro e muita contemplação. Ponto final. Eu achava que a juc tinha de participar do movimento político, porque sempre acreditei que a gente devia lutar pelo socialismo, e esse socialismo tinha de ser democrático e cristão. A Igreja tinha de participar desse movimento, porque ela existe para transformar o universo. Não pode ficar à margem. Então, comecei a puxar a juc. Nossa Senhora, foi um escândalo! Diziam que eu estava profanando a juc, que achava que oração não valia... Eu não estava dizendo que oração não valia, e sim que não resolvia ficar rezando o dia inteiro, sem fazer nada. Porque eles não faziam nada. A juc não participava da política universitária.
Vamos localizar isso no tempo, madre?
Mais ou menos 1958. Mais tarde, a juc caminhou um pouco para a esquerda. Mas estou falando de uma primeira etapa. Depois, juntamos o nosso grupo de São Paulo com o de Minas, do Betinho [Herbert de Souza]. E nasceu o Grupão. Então, a gente fazia reuniões para estudar. Queríamos uma mudança, mas não sabíamos para onde, nem como. Depois, esse Grupão se transformou na AP (Ação Popular). Sempre fui contra um socialismo com orientação do exterior. Era minha grande briga com eles. Em vez de procurar o socialismo de origem brasileira, começavam a ver o que estava acontecendo na China, na Albânia. Eu dizia: “Esses modelos não interessam. Interessam para ver como eles fazem, mas nós temos de encontrar uma coisa nossa, porque nós somos brasileiros.” Eu queria que a AP ficasse como era. Mas foi mudando; mudou de nome e aí começou a degenerar: virou China.
Nesse ponto já estamos falando da década de 1960. E a conjuntura foi mudando muito...
Sim, o início dos anos 60 foi um tempo de grande mobilização. Bem, eu era mais velha, podia ser mãe deles. Não estava mais tão mágica, já tinha mais os pés no chão, era mais realista. Em 1962, 1963, o pessoal tinha certeza de que a revolução vinha chegando — a revolução do nosso lado. Ninguém imaginava que viria o golpe militar. Estava tudo indo tão bem: até os ministros já estavam se modernizando. Foi uma época muito rica, porque todo mundo participava, a grande massa discutia.
A senhora acha que o clima dessa época era parecido com o de hoje?
Era muito semelhante. Com outras características. Agora a gente vê as coisas de forma muito mais realista do que antigamente. As propostas têm mais os pés no chão. Agora é menos mágico, menos romântico. O pessoal agora está muito mais politizado. Naquela época, o grande tema dos estudantes era a reforma universitária.
Mas isso já foi depois de 1964, não é, madre?
Sim, foi depois. Antes, nós começamos a fazer o presidente da UNE. A gente pensou: “Temos de fazer o presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes)." Aí fomos catar o [José] Serra, que estava estudando engenharia.
Ele era do Grupão?
Não, não era. Mas nós descobrimos que era inteligente e que, se déssemos uma engomada nele, ele toparia. Então, a gente pegou o Serra e disse: “Você vai ser o presidente da UNE.” Ele disse: “O que é UNE?” “Bom, UNE é isto e aquilo.” “Ah, tudo bem.” E começamos a ganhar a UNE.
A senhora, como religiosa, participava desses movimentos de modo autônomo? Não havia oposição a isso no meio religioso?
Eu participava porque era uma pessoa, professora universitária; então, tinha de participar. Aqui no nosso convento não tinha oposição a isso. Mas o bispo e a hierarquia eram muito contrários.
Toda a hierarquia da Igreja era contrária?
Praticamente toda.
E não havia possibilidade de a senhora ser punida, afastada?
A nossa congregação dependia diretamente de Roma. Graças a Deus, não dependia do bispo. O bispo não mandava na gente; e, na época, havia um papa bom, avançado [papa João XXIII]. Além disso, nós tínhamos superioras avançadas. Eu lhes contava nossas atividades. E elas diziam: “Ai, que coisa bonita! Vá em frente! Allez, allez.” A gente só falava em francês dentro da congregação. Vocês sabem, não é? Era proibido falar português.
O comportamento da hierarquia ficou bem marcado com a troca de cartas entre Betinho, como líder da juc, e o cardeal do Rio. Foi uma discussão que antecipou, de certa forma, os postulados da teologia da libertação. Na época, D. Jaime Câmara fez o papel que D. Eugênio Sales cumpre hoje: o cristão não pode se aliar aos comunistas, como a juc vinha fazendo na UNE etc. e tal.
Não era só proibição de se aliar aos comunistas, mas de participar da política.
Estranho isso, não é, madre? Porque a Igreja sempre fez política.
Claro! A Igreja estava sempre a favor dos governos. E dos governos reacionários, lógico. E quando começamos a criar esses movimentos, a juc, a joc — Juventude Operária Católica —, aí diziam que estávamos fazendo comunismo.
A Igreja começou a boicotar?
Nossa Senhora! O que eu era xingada! Ouvia palavrão, era chamada de comunista: “Freira comunista.” “Você é comunista.” E o pessoal da alta sociedade me convidava para jantar. Eu dizia: “Vou, mas olhem, hein, eu sou comunista. Vocês não vão me fazer mudar de idéia, tá?” No jantar, a gente conversava. Eles diziam: “Mas a senhora não vê que é comunista?” Eu respondia: “Primeiro vocês vão me explicar por que ser comunista é mau.” Eles não sabiam o que era comunismo. “Ah, o comunismo é tirar as coisas da gente.” Quando veio o golpe de 1964, a Igreja apoiou, ajudou a preparar, e fez a Marcha da Família".
A senhora teve amigas que participaram dessas marchas?
Todas. As mesmas que me diziam que a Igreja não devia fazer política. Estavam todas lá, de terço na mão, marchando. Eu caçoava delas. Então o Lucas Garcez (ex-governador de São Paulo) veio me procurar. Falou com a superiora e comigo. “Eu aconselho a senhora a ir para a Europa, porque o governo militar... olha aqui.” E mostrava uma papelada deste tamanho, contendo toda a minha vida. “Eles sabem tudo o que a senhora fez. Vão pegar a senhora. A senhora vai ser presa. É melhor ir para a Europa. Inclusive, eles estão facilitando a sua saída. Podem dar uma bolsa de estudos para a senhora estudar na Europa.” Eu respondi: “De jeito nenhum! Se eles querem me prender, que prendam. Daqui eu não saio.”
Isso foi logo em 1964 ou em 1968, após o AI-5?
Em 1964. Dois dias depois do golpe, entende? Dois dias depois do golpe o Garcez apareceu querendo me mandar embora para a Europa.
A senhora não topou...
Eu disse: “De jeito nenhum. Não vou para a Europa. Não quero bolsa de estudo; não quero nada. Quero ficar aqui. E vou continuar fazendo tudo isso.” Aí o Garcez disse: “Eu lhe dou razão, compreendo suas idéias, mas a senhora tem de entender também...” Eu cortei: “Não, não. Não vamos fazer média. Eu não compreendo a sua; o senhor não compreende a minha. Agradeço muito sua boa intenção, mas não vou para a Europa. Vou ficar aqui.” E a gente continuou organizando o pessoal, visitando os que foram presos. A gente entrava na cadeia com muita facilidade.
Talvez fosse bom dividir esse tempo da ditadura militar em dois momentos; isso que a senhora está contando é da primeira etapa, antes do AI-5...
Até 1968 era brincadeira. Estavam brincando de ditadura. Eu me lembro. A gente ia visitar os presos e entrava facilmente. Estava todo mundo lá jogando cartas. Ficavam pouco tempo presos e ninguém era torturado. Mas em 1968 a coisa começou a engrossar. As passeatas cresciam; a repressão aumentava. Um dos centros da luta era a rua Maria Antônia. Outro era a nossa clínica, lá na rua Caio Prado.
Nessa época já funcionava a clínica com atendimento psicológico gratuito?
Já nessa época, na rua Caio Prado, enquanto a faculdade funcionava na rua de cima, a Marquês de Paranaguá. Foi um prédio que os alunos construíram para mim, como presente. Era uma clínica de atendimento gratuito, para a população pobre. Só que funcionava assim: no primeiro andar, havia apenas quartos e banheiros, para a gente esconder as pessoas procuradas pela polícia. A UNE tinha uma sala lá.
Mas era clínica também, atendia as pessoas?
Atendia. Eu atendia. Nas horas vagas eu era psicóloga clínica.
Freudiana?
Sim. Mas atendia só para supervisão, porque eu dava aula, ou então o pessoal que estava na militância. Acho muito importante para o pessoal da militância ser psicanalisado.
Por que a senhora acha importante?
Porque acho que as grandes divergências entre as esquerdas não são ideológicas mas emocionais. São questões de poder. Se você tiver um bom equilíbrio emocional... Em quantas discussões as pessoas diziam que isso era lápis e o outro respondia caneta? Ficavam duas horas discutindo a mesma coisa porque cada um queria ter a última palavra. O pessoal não percebia. Isso me irritava. Então eu tirava o pessoal da sala para fazer um pouco de terapia. “É para você se entender, voltar lá e atuar melhor.”
Isso era bem aceito? Não existia um preconceito da esquerda contra a psicanálise?
Eu não acho.
Mas existe o preconceito de que a psicanálise é uma coisa de pequeno-burguês...
Escute, burguês pode ser o terapeuta, o psicanalista, mas não a técnica. É assim que eu interpretava: uma coisa neutra. Pode ser posta na mão de um revolucionário ou na de um burguês. A técnica psicanalítica não é nem burguesa nem proletária. Fui muito amiga de Marie Langer. Ela era uma das melhores psicanalistas do mundo. Morava nos Estados Unidos, ia uma vez por mês à Nicarágua e passava uma semana, para fazer psicanálise com o pessoal de lá de graça. Porque é outra superstição da psicanálise essa história de que psicanálise não funciona [se for] de graça. Quem não funciona é o psicanalista. Ela fazia de graça e pagava todas as despesas de viagem. Ela perguntava para a pessoa: “Quanto tempo você tem?” “Meia hora.” “Tudo bem. Vamos fazer o trabalho em meia hora.” Ela ajustava a psicanálise às necessidades de um revolucionário que estava lutando na Nicarágua, naquele tempo.
Na Argentina também o pessoal ajudou a organizar a luta clandestina, não foi?
Ajudou.
E esse pessoal que a senhora analisava não tinha medo de ficar malvisto pelos companheiros?
Não, porque eles sentiam os benefícios. Além de me conhecer pessoalmente, eles percebiam os benefícios. Sentiam que melhoravam, que se entendiam melhor e brigavam menos entre si. Depois de 1968 começou a barra mais pesada. Quanta gente saía da cadeia e ia direto para a psicanálise! Até hoje não sei como nunca invadiram a clínica. A polícia sabia que a clínica era o centro, que ali acontecia tudo. Passavam em frente, iam na faculdade, perguntavam onde eu estava, o que estava fazendo e depois voltavam à clínica para tomar café na cantina. Eu descia — porque tomar café é um jogo meio baixo, não é? — e punha todos para fora. “O que vocês vieram fazer aqui? Tomar café? Vão tomar lá na esquina. Não quero vocês aqui dentro.”
Que comparação a senhora faz entre aquele período e o momento atual?
Tem muita diferença. O pessoal que entrou na luta em 1968, 90% deles, para dar uma estatística bem favorável, estava completamente despreparado. Não tinham nenhum embasamento teórico. E eles queriam uma revolução. Para muitos era aventura. Eu conheci tanta gente que entrou na luta, na guerrilha, como uma aventura! Havia um despreparo muito grande e um entusiasmo enorme. Uma generosidade total. Mas um suicídio. Tanto é que o pessoal foi direto para a morte, não é? Eu acho que o pessoal de hoje está mais bem preparado, entende muito mais de política do que no meu tempo.
Será que o pessoal de hoje é menos generoso?
Eu acho que hoje não há uma solicitação concreta para a luta, como naquele tempo. Não que seja menos generoso. Naquele tempo, nas passeatas de 1968, saía aquela massa de estudantes com alguns trabalhadores para enfeitar. Um de cada lado, enfeitando, para dizer que se tratava da união entre estudantes e operários. Não era. Hoje os trabalhadores estão organizados. Existe a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e também a CGT (Central Geral dos Trabalhadores), embora horrorosa. Agora a classe média ficou sem ter o que fazer. É solicitada para quê? Para fazer uma revolução? Que revolução? Quando houve a campanha das diretas vocês viram como a praça encheu. Todos queriam participar, queriam diretas. Acho que hoje falta uma solicitação concreta para a participação da juventude. Participar como? Se houver o chamamento para alguma coisa, ah, você vai ver que eles não são menos generosos que os de 1968.
Depois do AI-5, quando a repressão engrossou, como foi a sua participação nas lutas?
Lá no Sedes da rua Caio Prado éramos suprapartidários. Não queríamos saber de qual organização as pessoas eram. Tinha gente de todas as organizações. O material deles, os estatutos, tudo era guardado lá no Sedes. Havia um sótão lá com classificação; a gente guardava material de todos e dava casa e comida para aqueles que precisavam ficar na clandestinidade. Tinha uma saída por trás, e a gente fazia um esquema de apito. A campainha tocava aqui, e eles ouviam lá. Então, o pessoal pulava o muro e fugia por trás. A gente fazia treinamento para o caso de precisar fugir. Não me interessava saber de que organização eram. O que me importava é que eram pessoas a serviço de uma transformação do Brasil, que estavam sofrendo e precisavam de ajuda. Então, a gente dava a ajuda que podia: casa, comida e “Suíça”, quer dizer, proteção, embaixada.
Como explicar o fato de a senhora nunca ter sido presa, madre?
Não entendo. Eu recebia telefonemas toda hora: “A senhora vai ser morta.” Eu dizia: “Ótimo, pode mandar matar.” Recebia telefonema avisando que tinha uma bomba na clínica, que ia estourar. Quantas palestras fui fazer na Cidade Universitária, no prédio dos cursos de história e geografia! Aquilo enchia de gente. Eu fazia uma palestra daquelas. Eu gostava muito.
Pondo fogo, não é?
Cortavam a luz, a polícia vinha e a gente tinha de sair correndo. Tomava um carro e saía em disparada. Essas coisas aconteciam. Mas ficava nisso.
Nunca foi chamada a depor?
Nunca, nunca. Não entendo por quê. Eles sabiam de tudo que eu fazia. Sabiam inclusive da clínica.
A senhora não era protegida por pessoas importantes da sua família?
Se era, nunca soube, nunca pedi. Essas pessoas me chamavam e diziam: “Tenha juízo”. Eu dizia: “Eu tenho juízo; vocês é que não têm.” Quer dizer, nunca fiz média. Sempre souberam o que eu pensava. “A senhora é muito exaltada.” Era tida como muito radical, coisas assim. Graças a Deus, sou radical. Detesto gente de meio-termo. Dizer que eu sou radical é um elogio. Fico contente.
Já no final dos anos 70, com a luta pela anistia crescendo, a senhora teve papel importantíssimo no apoio aos presos políticos...
As famílias de presos se reuniam no Sedes; a gente ia visitar ou o pessoal vinha fazer tratamento aqui: eletroencefalograma. Uma vez veio um preso político fazer o eletro e chegaram dois carros blindados. Eu quis recebê-lo na porta. Dei um beijo nele e disse para a escolta: “Agora, vocês ficam aí fora.” Eles responderam que tinham de entrar junto. “De jeito nenhum! Vocês ficam aí. Com farda e espingarda, vocês não entram aqui.” Eu nem sabia que um deles era o diretor do presídio, porque ele estava com roupa civil. “Você pode entrar. Está vestido de gente. Mas vai ficar sentado aqui, e não vai descer ao local do exame, porque você vai atrapalhar.” “Mas o preso pode fugir...” Eu fiquei conversando com ele enquanto o preso foi fazer o exame. “Você não tem vergonha de exercer essa profissão? Não acha nojento manter na prisão esses rapazes idealistas...” Dali a pouco começo a receber telefonemas. O cardeal me telefona: “A senhora está sendo ameaçada?” Respondi que não. “Mas disseram que o Sedes está cercado.” O diretor do presídio, pelo rádio, tinha pedido reforço, dizendo que estava sendo ameaçado por mim. Eles cercaram o Sedes. Que medo eles tinham, não? Eu lhe disse: “Que medo vocês têm de nós!” Depois fui retribuir a visita aos presos. Chegamos lá no presídio Barro Branco para passar o dia. Eles nos barraram: “Não podem entrar; vocês não têm autorização.” Eu disse para o resto do grupo de visitantes: “Vocês não vão entrar? Eu entro. Vim até aqui e não vou perder a viagem.” A Ruth Escobar agarrou o meu braço e fomos entrando. Mas eles eram tão covardes que estavam com as armas apontadas para nós. Eu disse: “Escuta! Abaixem isso aí. Eu acho esse cano muito feio!” Eles abaixaram. Então, encontrei o diretor e só aí fiquei sabendo do seu cargo. Porque, lá na clínica, eu dizia assim: “Na minha casa mando eu. O senhor manda na sua. Fique quieto aí.” Mas deu tudo certo, e passei o dia todo lá, conversando com todo mundo. Almoçamos com os presos e não aconteceu nada.
Essas pessoas que a senhora acompanhou naquela fase difícil, analisando ou apenas conversando, gente que foi torturada, perseguida... Como tudo isso refletia nos militantes? O pessoal passou por aquilo numa boa, ficou abalado... Como era?
Muito poucos deram a volta por cima. A maioria não tinha preparo e não sabia por que estava ali apanhando. Uma parte sabia. O Honestino [Guimarães], por exemplo. Ele engoliu um lençol para não falar. E ele já sabia que ia ser morto. Ele veio se despedir de mim. Ele chegou e disse assim: “Eu vim me despedir da senhora porque vou ser morto.” Eu até disse: “Por que você veio aqui, Honestino? Podia marcar um encontro comigo. Eu iria conversar com você em qualquer lugar.” “Ah, não. Eu passei aqui e não agüentei. Queria me despedir da senhora. Eles estão me cercando.” E, de fato, acabaram pegando e matando.
Como foi essa história do lençol, madre?
Quando ele foi preso, em Brasília, sofreu tortura para falar. Ele tinha um lençol ou qualquer coisa assim. Pôs na boca, mastigou e engoliu, para não falar. Isso foi contado pelos companheiros dele. Quer dizer: ele não abriu. Havia aqueles que morriam, mas não abriam. Entretanto, a maioria entregava tudo. Eu também era um canal para quem saía da prisão e queria encontrar sua organização. Era o ponto de contato. Uma pessoa da organização vinha, conversava comigo e marcava um dia.
Ah, a senhora chegou a fazer esse tipo de intermediação?
Sim, para integrar aqueles que queriam continuar na militância. Porque eram poucos os que saíam vivos, inteiros: os que saíam com condições de poder voltar à luta. Mas não me interessava de que organização eram.
Como a senhora viveu o início dos anos 70? Foi um tempo muito deprimido, não? Todo mundo triste e derrotado?
Todo mundo triste, derrotado... E eu chorava o dia inteiro, porque, cada um que era preso, vinha a mãe, o pai, o irmão... ia todo mundo lá, chorar as mágoas. A gente não podia fazer nada. Mas o que a gente fazia? Mimeografava denúncias e saía espalhando pela cidade, pichando muros. Tinha um jeito que eles preparavam a tinta, não sei como, com caroço de abacate. Na hora que se escrevia, não aparecia nada. Depois, ficava preto e dava para ler. Então a gente descia, pichava os muros, entrava no carro e ia embora.
A senhora ia pessoalmente pichar muros?
Ia pichar pessoalmente. A gente entrava no carro, se viesse a polícia. Tudo bem, porque na hora não era possível ler, só depois. Era a denúncia que se podia fazer. Outra coisa possível era telefonar. Ligava para o governador e para as pessoas: “Onde se viu? Matar a juventude!” Quantas vezes eu fui falar com o [Roberto] Abreu Sodré! [governador de São Paulo entre 1967 e 1971]
Parente da senhora, não é?
Da minha mãe! Meu, não! Quantas vezes fui lá brigar: “Você não tem vergonha, Roberto? Prender essa juventude!” Porque naquele congresso de Ibiúna* ele mandou prender todo mundo. Aí, eu fui para a cadeia, entrei e disse: “Bom, agora fico aqui também, com a meninada.” “Não, a senhora não pode ficar aqui.” “Por que não posso? Vou ficar. Não saio daqui enquanto eles não souberem. Só saio daqui para ir falar com o Roberto.”
Nos anos 70 a senhora acolheu, aqui no Sedes, os psicanalistas argentinos que fugiam da ditadura de lá. A linha de trabalho deles era uma proposta altamente elitizada, enquanto hoje, aqui, eu vejo uma proposta de psicanálise totalmente à parte do mundo social e político.
Quando os argentinos chegaram aqui, expliquei a eles a proposta. Eles olharam para mim e disseram: “Nós saímos da frigideira e caímos no fogo.” Eu disse: “Não se assustem, porque esse fogo é brasa apagada.” Só na minha cabeça era assim. Na minha cabeça a proposta era essa.
E eles, como trabalhavam? Por que tiveram de sair da Argentina?
Eles eram politizados. Aqui, faziam o que podiam para politizar os alunos. E tinham, lá na Argentina, uma prática de ir atender nas favelas, inclusive militantes clandestinos, tudo isso. Nossa linha de trabalho aqui no Sedes ainda está longe disso, mas estamos começando a fazer convênios para trabalhar com o pessoal da periferia. Sempre digo que a clínica é para fazer justiça social. Quem vai fazer a revolução é o pobre, não o rico. Então, o pobre tem de ter um ajustamento emocional. Digo para o pessoal daqui: “Vocês aqui na clínica vão fazer uma terapia para melhorar o ajustamento emocional deles, e eles terão melhores condições de assumir a revolução brasileira.” Isso na minha cabeça, mas é uma loucura conseguir colocar na prática o que você quer. Não acontece. Fico muito triste.
A senhora acha que ideologia é neurose? Uma terapia pode, por exemplo, mudar um cara de direita?
Conforme o terapeuta. Essa história de dizer que o terapeuta deve ser neutro... Não existe neutralidade. A gente interpreta de acordo com o que acha. E, quando a gente procura um terapeuta, já sabe aquilo que ele propõe. Se um trabalhador fosse procurar um terapeuta tradicional, bem burguês, chegaria lá e contaria que estava em greve por melhores salários. O psicanalista poderia dizer: “Não, você está brigando com seu pai, porque não resolveu o complexo de Édipo etc.” Se você tem um psicanalista que separa as coisas, ele diz: “Você está lutando por uma coisa certa; agora, sua maneira de lutar é muito neurótica, muito emocional.” Ou seja, ele interpreta para separar, mas mantém a ideologia.
Perguntei isso pensando, na linha de Reich, que o autoritarismo é um negócio de caráter, precisa ser tratado.
É. Acho que o autoritarismo é uma neurose. O autoritarismo é você não respeitar o outro. É você querer impor. Não é isso o autoritarismo? Isso não é normal. Você tem de conviver com o outro. Por isso quero que o pt, antes de assumir o poder, faça um trabalho de educação popular que ganhe a população — a população deve estar convencida de que aquilo dará certo. Conscientização de novos valores: isso eu acho muito importante. É a educação popular que muda a cabeça das pessoas.
A ação da Igreja naquele período de ditadura brava era a mesma de hoje?
Não, era completamente diferente. Antes de 1964, a Igreja era muito reacionária. Mesmo D. Paulo [Evaristo Arns], no começo, era bastante reacionário. Ele foi convertido pelos presos políticos. Antes ele me mandava recados, dizendo que eu estava extrapolando etc. A primeira vez que ele foi visitar uma cadeia, viu um preso que chegou se arrastando. Foi a virada do cardeal. Porque antes a gente contava que as pessoas tinham sido torturadas e ele não acreditava. Chamava os generais, que diziam que os presos eram muito bem tratados... Aí, D. Paulo deu a virada, e todos aqueles padres novos, que já estavam na militância, entraram com toda força e com a proteção do cardeal. A Igreja de 1960 e a de 1970 eram distintas.
Nessa mudança, como está rolando na Igreja a questão do marxismo?
Acho que na Igreja ainda existe muita ignorância sobre o marxismo. Falta alguém para fazer uma sistematização. O avanço do pessoal da Igreja foi por outro caminho. Marx é muito difícil para uma pessoa que não tem iniciação em sociologia. E a formação dos padres realmente não prepara para isso. Eles encontraram o caminho — a teologia da libertação — que assume a luta de classes. Temos de organizar a classe para poder se emancipar, se libertar. Então, encontrando o caminho fácil, não foram procurar um estudo maior do marxismo. Mas acho que isso está faltando: dizer por que o cristão pode ser marxista ou não. Essa questão não está resolvida, nem vem sendo estudada.
E a linha atual do Vaticano?
Isso está trazendo um grande atraso. Este papa [João Paulo II] está sendo péssimo. Ele está conseguindo desmontar a Igreja, porque tira os bispos progressistas e nomeia os reacionários. Lá na nossa região, no Jardim das Palmas (Campo Limpo), ele tirou um bem progressista e pôs um bem reacionário. Mas o povo está muito organizado, fazendo a cabeça dele, porque ele é muito pouco instruído. Se não estiver fazendo a cabeça dele, ele não entende nada, porque o povo está fazendo o que quer. Está muito divertido. De qualquer modo, a Igreja, no Brasil, está passando por um período muito triste e perigoso.
Esse processo vai dar no quê? A Igreja ainda volta àquela linha dos anos 70 ou o pessoal progressista, encurralado, vai pular fora?
Até agora não tem sido essa a orientação dos progressistas. Não querem sair da Igreja, mas trabalhar, vamos dizer assim, na clandestinidade. Não quer que se faça? Então não digo que faço. Mas continuam fazendo, nas catacumbas. Acho isso mais adequado. Criar um cisma divide. Não soma. Agora, a verdade é que este papa tem feito um mal muito grande. Ele é polonês, não universal. Não é um papa. Ele gosta da Polônia. Ele chega na Polônia e diz: “Todo mundo deve fazer política; todo mundo deve entrar para o sindicato.” Em outros lugares diz: “É proibido para o cristão fazer política.”
E o papel da mulher na Igreja?
É um papel inferior. Mas, dentro da Igreja, a mulher está se metendo e fazendo tudo. Por enquanto, só não celebra missa. Todo o resto ela já está fazendo, e com muito mais eficiência que os homens. Mas há uma luta que precisa ser feita. De fato, a Igreja é machista. É hierárquica. Ela não é horizontal mas vertical. Ela não é democrata. Eu acho que o [Frei] Betto e o [Leonardo] Boff têm dado uma contribuição nesse sentido. Mas um estudo sério precisa ser feito.
Como a senhora vê a questão do celibato, da Igreja e da sexualidade?
O celibato, eu acho um absurdo. Aliás, foi introduzido apenas no quarto século, parece. Para mim, a sexualidade não pode ser dissociada do amor. As coisas têm um fim. Não é só um instinto, uma descarga de espermatozóides e de óvulos. Não, não é uma coisa fisiológica. É todo o envolvimento de uma pessoa que se liga a outra. Acho que passamos da tese para a antítese. Hoje em dia é assim: você encontra uma pessoa, se você sai com ela, precisa ir para a cama, senão não tem graça...
Por que não se abre mais essa discussão dentro da Igreja, madre? Já vimos padres e freiras, em conversas reservadas, defenderem a idéia de que, nesse campo, cada um deve se virar do jeito que pode, porque abrir a luta contra a castidade obrigatória enfraqueceria o bloco progressista. E, no entanto, nós sabemos que existe homossexualismo dentro da Igreja, casos de Aids...
Acho isso uma coisa deprimente. Não enfrentar esse problema... O pessoal não quer enfrentar. Mexeu na questão sexual, o pessoal todo põe o pé atrás e enrijece. É tanto desejo que para reprimir você afasta o corpo. Você vive o problema, mas diz que não. É uma intelectualização, uma maneira de fugir do seu problema. Então, eles dizem: “A gente faz porque não tem outro jeito” — uma espécie de promiscuidade. Devia regulamentar isso. Por que o padre não pode casar? Os discípulos de Cristo, todos, eram casados. Por que, agora, inventar o celibato?
Madre, neste final de entrevista, queremos conversar sobre o PT. A senhora já teve posições polêmicas dentro do PT Como vê o partido?
Desde o começo, vi o PT assim: um movimento revolucionário que vai fazer a revolução. Então, para mim, desde 1980, o PT tinha de ter um tempo para, primeiro, ganhar uma grande quantidade de massa para depois procurar o poder. Porque, se pegar o poder antes de ter a massa, não vai conseguir realizar. A não ser por armas. Nós estamos vivendo o fim de uma época. No fim de uma época, sempre há uma aceleração da história. Cinco anos atrás eu achava que o povo não estava preparado para o PT assumir o poder. Mas agora houve um avanço enorme. Nesta eleição, votei no Lula no primeiro turno. Antes, eu não votava no PTpara o Executivo.
A senhora pode comentar aquele episódio do seu apoio ao Fernando Henrique [Cardoso] para prefeito, em 1985?
Aquilo foi uma chateação. Eles arrancaram de mim aquela carta. Eu não ia votar no PT porque achava que naquele tempo o partido ainda não estava preparado para assumir o poder. O argumento deles de que votar no [Eduardo] Suplicy dividia a votação — nem lembro bem quem eram os candidatos — nunca se colocou para mim. Não era o meu argumento. Eu argumentava que o PT tinha de dar um tempo, ainda, para a educação popular, para depois assumir o poder com base. Certo ou errado, no tempo do Fernando Henrique o PT não tinha essa base popular. Agora tem. Houve um disparo. Tanto é que já votei no Lula no primeiro turno. Acredito no PT. Acho o PT o único partido que é partido, embora tenha divisões internas. Tem propostas. As divisões internas são meios diferentes para chegar ao mesmo fim. É o único que tem uma militância que dá o sangue e vai até o fim. Eu me filiei ao PT logo no início. Fui uma das primeiras. Nunca antes tinha me filiado a partido político nenhum, porque gostava da minha independência.
E como a senhora está vendo esse segundo turno, a decisão dentro de 48 horas?
Acho que aquele processo de aceleração da história gerou, em 15 dias, um salto de 15 séculos. Pela primeira vez a esquerda se organizou. Existe um movimento de esquerda. Claro que o Brizola tem as idéias dele, diferentes das do PT. Mas é a esquerda organizada, unida, o fim de um processo, que é a eleição do Lula. E está todo mundo na rua. Todo mundo vestiu a camisa e está aí para trabalhar. Está todo mundo aí. Mas precisamos ter claro que o PT ainda é PT.
O que é isso?
PI é Partido da Igreja e do Intelectual. Mas o povão... Na casa em que eu moro todas as irmãs vão votar no PT. Mas os empregados, no [Fernando] Collor. O jardineiro não, porque amanhã, na véspera da eleição, eu pego ele e vou enquadrar. Mas o jardineiro diz que o Lula vai desfazer a família. A faxineira diz que o Lula vai roubar o barraco dela. O outro diz que vem o comunismo. Por isso acho que o PT precisa trabalhar com esse povão. Estar ali de manhã, de tarde, de noite. Acho que está precisando disso. O PT precisa ter canais assim, para entrar mais nesse povão e ganhar mais a massa.
Maria Rita Kehl é psicanalista e escritora. Paulo Vannuchi é jornalista.