Política

Análise do livro "As asas invisíveis do padre Renzo " (2002), do jornalista e escritor Emiliano José. A história contada na terceira biografia escrita pelo autor é a vida do padre italiano Renzo Rossi (1925-2013), que ficou conhecido por ter visitado na cadeia a maioria dos presos políticos brasileiros, durante o período da ditadura civil militar (1964-1985).
  1. A biografia

O navio balançava mais do que ele esperava. Mal o dia se anunciava, punha-se na balaustrada a pensar, os olhos no horizonte, no mar sem fim [...]. Chegado aos 40, e embarcado numa aventura. Uma aventura que ele escolhera.”

Este é o parágrafo que abre o livro As asas invisíveis do padre Renzo (2002), do jornalista e escritor Emiliano José. A história contada na terceira biografia escrita pelo autor é a vida do padre italiano Renzo Rossi (1925-2013), que ficou conhecido por ter visitado na cadeia a maioria dos presos políticos brasileiros, durante o período da ditadura civil militar (1964-1985). A obra já está esgotada nas livrarias. Podem ser adquiridos alguns exemplares usados através do site da Estante Virtual, mas sem dúvida merecia que o autor revisitasse a obra com o propósito de uma segunda edição. O debate sobre os anos de chumbo permanece intenso, sobretudo neste ano em que relembramos para não esquecer os 60 anos do golpe de 1964.

Antes de publicar este livro, Emiliano José já era um respeitado biógrafo pelo sucesso obtido por Lamarca, o capitão da guerrilha. Escrito a quatro mãos, em parceria com Oldack Miranda, e publicado em 1980, Lamarca virou um “best seller”. Ficou doze meses em primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos da revista Veja, na categoria Não Ficção. Emiliano José também escreveu Marighela: o inimigo número 1 da ditadura militar (2004), e mais recentemente lançou em dois volumes a biografia do político baiano Waldir Pires (2018 e 2019), e seu último trabalho, Zanetti: o guardião do óleo da lamparina (2024), percorre a mesma trilha de sucesso no registro das memórias dos anos de terror provocado pelo ciclo militar.

Padre Renzo nasceu em Florença - Itália. Depois de quinze anos trabalhando no meio dos operários italianos, decidiu embarcar na aventura mencionada pelo autor na abertura do livro. Chegou ao Brasil em 1965. Eram tempos difíceis: por um lado vivia-se o segundo ano da ditadura civil-militar. A hierarquia da Igreja Católica, através da CNBB, tinha celebrado em Manifesto a chegada dos militares ao poder. Por outro lado, os católicos viviam sua própria transformação. O Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 e concluído em 1965, entre outras diretrizes incentivava os religiosos a se aproximarem dos problemas sociais das comunidades mais pobres. Essa nova doutrina iria se consolidar na América Latina com a realização Da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), em Medellin - Colômbia, em 1968, e no CELAM de Puebla, no México, em 1978.

Para contextualizar aquele momento, Emiliano José analisou as contradições entre os católicos, da página 63 à página 87 do seu livro. E situou Renzo nesse debate:

Renzo nunca foi de questionar os dogmas da Igreja. Sempre respeitou profundamente os cânones religiosos. Essa postura, no entanto, nunca diminuiu sua capacidade de solidarizar-se com os desvalidos”i

Emiliano José narrou nas páginas iniciais da biografia a decisão de Renzo em ser padre. Descreveu a situação da Itália após o final da Segunda Guerra Mundial, a queda do fascismo, e a força do Partido Comunista italiano no Pós-Guerra. E como a Igreja Católica entrou na disputa pela hegemonia entre os trabalhadores. Renzo ordenou-se padre em 1948, e dois anos após já era capelão da fábrica Italgas.

O autor disse que Renzo tinha como sonho “exercer o sacerdócio entre as pessoas que não tinham vínculo com a Igreja [...] Acreditava que devia salvar vidas”ii. Para isso, aproximou-se dos operários, que relutaram em aceitar a presença de Renzo entre eles: “Somos comunistas, não queremos padres aqui”. Mas, aos poucos, venceu a resistência e não tardou a ser visto como amigo. Embora guiado pelo princípio inicial de “salvar as almas”, o autor disse que Renzo aderiu a algumas lutas dos comunistas contra os seus patrões. Em 1959, ajudou a arrecadar dinheiro para o fundo de greve, durante a paralisação das fábricas de Florença, após uma demissão em massa de operários.

Foi com a mesma sensibilidade às lutas sociais e sem exigir conversões, segundo Emiliano José, que Renzo chegou à Bahia. Foi atuar na periferia de Salvador. Entretanto, o trabalho que motivou o autor a escrever sobre ele foi outro: as visitas nos subterrâneos do regime de exceção. Emiliano José disse que padre Renzo nunca planejou exercer a pastoral carcerária como projeto de vida. Ocorreu por acaso. Sua primeira entrada em uma prisão política aconteceu em 1970, quando se preparava para voltar à Itália. Soube da prisão do frei dominicano Giorgio Callegari, em São Paulo, que fazia parte de um grupo de religiosos presos durante a operação que resultou na morte de Carlos Marighella. Callegari era italiano e Renzo pensou em levar informações sobre ele aos familiares na Itália.

O autor ressaltou, porém, que não foi desta vez que o Renzo passou a se dedicar ao que ele chamou de “segunda conversão”. Isto só viria a ocorrer cinco anos depois, quando um paroquiano foi preso pela ditadura. Era Benjamim Ferreira de Souza, ex-militante da Ação Popular (AP). Após alguns anos na clandestinidade, Benjamim optou por se entregar à polícia, e foi preso:

É com a prisão de Benjamin, no início de março de 1975, que começa o mergulho de Renzo no trabalho com os prisioneiros em todo o País. A mãe de Benjamin, Ida Ferreira de Souza, ficou desesperada e procurou Renzo. Queria saber como estava o filho, e nada melhor que um padre para cumprir a missão. Renzo se dispôs a visitá-lo. Não teve muitas dificuldades. Era o início da peregrinação que só terminaria com a soltura do último preso político, no segundo semestre de 1980”iii

A partir desse episódio, Emiliano José passou a relatar a jornada do padre italiano por dezenas de cadeias políticas brasileiras. Ao longo do livro, o autor descreveu suas caminhadas, ouvindo relatos de sofrimentos, compartilhando alegrias e esperanças. Serviu de pombo correio para fazer a comunicação entre grupos de esquerda dentro e fora das celas, ajudou familiares dos presos financeiramente, e participou da luta pela Anistia.

  1. Os vícios nas biografias feitas por jornalistas

Quem lê As asas invisíveis do padre Renzo pode ter dificuldade de discernir se está diante da biografia de um personagem verdadeiro, ou se está lendo um romance biográfico ficcional. Ao analisar o livro de Emiliano José com a “lupa” de do historiador Benito Bisso Schmidt, no ensaio Construindo biografias... historiadores e jornalistasiv, não é difícil ver o que o historiador considera “vícios” na escrita biográfica conduzida por jornalistas, em comparação às biografias feitas por historiadores. Alguns dos problemas apontados por Schmidt no jornalista Fernando Moraes repetem-se em Emiliano José. É constante a utilização do “fluxo de consciência”, para alinhavar os acontecimentos na vida do personagem, como se o autor tivesse ouvido do biografado certas “impressões da sua alma”.

Entrevistei o escritor Emiliano José, em setembro de 2017. Questionei-o sobre a utilização de subjetividades na elaboração de As asas invisíveis. No início da narrativa do livro, quando o autor diz que Renzo “punha-se na balaustrada a pensar”, nunca ouviu de fato tal pensamento do próprio biografado, mas ouviu do próprio o feedback inusitado de que era exatamente aquilo que se passava pela cabeça!

O autor disse que conheceu Renzo no início de 1975. O autor esteve preso na Galeria F, da Penitenciária Lemos de Brito, mas já havia saído da cadeia quando o padre italiano começou a visitar as prisões. Em 1998, Emiliano José foi à Itália para dar uma palestra e hospedou-se na casa de Renzo, no centro de Florença. Ali, deparou-se com centenas de cadernos manuscritos do padre, que desde o início do sacerdócio cultivou o hábito de escrever ao final de cada dia. O contato com os diários acendeu o desejo de escrever sua biografia. Ele realizou duas grandes entrevistas com o biografado, em 1998 e em 1999. Entrevistou ainda dezenas de ex-presos políticos. Com esse material bruto, empreendeu a tarefa de sintetizar o que tinha em mãos para produzir o texto final, que resultou no livro.

O texto não utiliza notas de rodapés, um pecado imperdoável na perspectiva de quem escreve biografias com o olhar de historiador. Dessa forma, é impossível saber de onde foram retiradas as citações da maioria das ideias do biografado. Expressões, como “reflete”, “constatou”, “considerou absurda”, utilizadas ao longo do livro, não é possível saber se foram recolhidas dos diários do padre Renzo, das entrevistas feitas pelo autor, ou do seu próprio exercício de imaginação. Não obstante, salientamos que o autor fez isso conscientemente. Disse-me textualmente na citada entrevista: “O jornalista se arrisca, mas de modo responsável. Faz um esforço extraordinário para cercar o seu objeto. E depois exercita a sua veia literária”. Emiliano José considera ainda que existe uma “fronteira borrada” entre a biografia e a literatura. Ironicamente, essa opinião se assemelha ao que foi dita pela historiadora italiana Sabina Loriga, no ensaio O limiar biográfico, ao se referir às biografias escritas por historiadores:

Parece-me mais fecundo meditar sobre essa fronteira fluída que separa a biografia da história e da literatura, e analisar as proibições, os abalos, as incursões recíprocas que a transpõem” (LORIGA, pág. 19)v

Essa liberdade de exercitar a veia literária é impensável no campo da biografia feita por historiadores, na opinião de Benito Schmidt, embora “apesar da aproximação também ser marcante, a margem de invenção é menos dilatada [...] Ou seja, os trabalhos produzidos nesta área, para além das qualidades estilísticas, devem prestar contas ao ‘tribunal de apelação da História”.

Em outro ensaio, História e biografiavi, na página 195, Schmidt considera que uma biografia historicamente aceita deve sobretudo cercar-se de “fontes documentais apropriadas” e apresentar o resultado de sua pesquisa em um texto que “remeta para fora do texto, ou seja, que indique os procedimentos analíticos utilizados e os materiais empíricos que subsidiaram a investigação”. A historiadora Vavy Pacheco Borges também vai nesse sentido, no ensaio Grandezas e misérias da Biografia, ao dizer que “o bom biógrafo, com todo bom historiador, apresenta suas fontes, suas ‘provas diante do tribunal da História’, como disse o historiador inglês E. P. Thompson”vii.

No sentido oposto, Emiliano José considera que o seu texto “se basta em si”, razão pela qual em suas biografias não sabemos quando o autor se pautou por uma fonte específica, ou se aquela expressão vem da sua liberdade cognitiva. O uso constante de diálogos é também outro aspecto presente em todo livro. Esse recurso, de acordo com Shimidt, “é um exemplo de texto ficcional que, embora baseado em certas informações, não aparece em nenhum registro na forma como foi apresentado” (SCHMIDT, op.cit., pág. 11).

As asas invisíveis finaliza com extensa bibliografia, onde estão relacionados livros, artigos para imprensa, cartas e outros documentos, que Emiliano José utilizou para compor sua biografia. Salvo alguns documentos e livros específicos, citados dentro do corpo do texto, a ausência de notas de referência impossibilita a conexão das fontes com o relato do autor. Ou seja, é preciso acreditar que o escritor, apesar da liberdade literária que se deu, valeu-se de informações fidedignas em fatos cruciais de seu livro.

  1. Virtudes biográficas em Emiliano José

Ainda que toda problemática relatada no item anterior questione a validade desse tipo de biografia na perspectiva da cátedra em História, é possível considerá-la como fonte histórica confiável? A resposta, na minha opinião, é sim. O trabalho memorialista de Emiliano José já se mostrou qualificado, principalmente se tomarmos por exemplo sua primeira biografia, Lamarca. A obra não chegou a dezessete edições sem méritos. E o autor afirma que ela é referência bibliográfica na grande maioria dos livros e trabalhos acadêmicos sobre a ditadura civil-militar brasileira. Ou mesmo é o foco de estudos historiográficos, a exemplo do recente Trabalho de Conclusão de Curso em Licenciatura em História O lugar de Carlos Lamarca na memória sobre a luta armada (1971-2015), defendido por Marcos Vinícios da Câmara Oliveira, na Universidade Federal do Oeste Baiano, em setembro deste ano.

A construção sincrônica e o perfeito enquadramento do biografado no contexto são outras qualidades exemplares na obra de Emiliano José. Em As asas invisíveis do padre Renzo, o domínio da técnica narrativa permitiu ao autor apresentar a trajetória do personagem, sem incorrer nos riscos mencionados por Luíz Viana Filhoviii, de “esmagar o biografado sob a aluvião dos acontecimentos do seu tempo”. E, ainda, escapou do “paradoxo do sanduíche”, citado por Sabina Loriga, em alusão ao termo cunhado pelo historiador Charles Firthix. Nesse paradoxo, segundo a historiadora, “o tempo histórico aparece como um fundo de cena fixo, sem impressões digitais”.

Outra armadilha que Emiliano José passou incólume foi não tratar o seu biografado como um herói, um santo ou um predestinado, à moda das biografias dos “grandes homens” ou mesmo das hagiografias. O título do livro, sugerindo que ele é uma espécie de anjo, é perfeitamente entendido como metáfora. Ao contrário, Renzo Rossi é apresentado como um homem comum, nascido em uma Itália católica cuja escolha pela vida religiosa estava no campo das possibilidades da sua época. Da mesma forma, a decisão de cumprir uma vida missionária longe do seu país era recorrente entre os jovens padres dessa época. Os rumos tomados por seu sacerdócio no Brasil também foram resultados de situações incidentais, que o padre abraçava com fervor na medida em que o chamado lhe era feito.

Vejo então a biografia do padre Renzo Rossi dentro da visão do sociólogo Pierre Bourdieu, no ensaio Ilusão biográfica:

A sucessão longitudinal dos acontecimentos constitutivos da vida considerada como história em relação ao espaço social no qual eles se realizam não é em si mesma um fim. Ela conduz à construção da noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente [...], estando sujeito a incessantes transformações”x

Concluo com a apresentação da dissertação de mestrado do professor Adriano Batista Paixão do Lago, defendida em 2015 no programa de mestrado da Universidade Estadual da Bahia, Campus V, em Santo Antônio de Jesusxi. O trabalho analisou a obra memorialista de Emiliano José sobre a ditadura civil militar. Destacou suas três biografias e a série de livros intitulada Galeria F – Lembranças do mar cinzento. Entre os vários aspectos que Lago enxergou no trabalho de Emiliano José está o fato de preencher um vazio, pois entendeu que há escassa bibliografia sobre as ações dos grupos que se opuseram à ditadura na Bahia.

Outro aspecto destacado por Lago foi a queda da imagem que os pesquisadores nacionais tinham do nosso Estado, visto até bem pouco tempo como “área de recuo”, ou seja, um lugar considerado seguro para se refugiar. Os livros de Emiliano José, na opinião de Lago, deixaram claro que na Bahia a ditadura civil-militar também foi “cruel e sanguinária”. Ele próprio foi vítima da violência de estado. Relatou sua passagem pelos porões da ditadura em sua autobiografia O cão morde a noite (2020), outra obra essencial para aprofundar o entendimento do que foi o “mar cinzento” nas terras da Bahia, como também para compreender o interesse do autor em coletar e registrar as memórias de um tempo que deve ser lembrado, para que não se repita.

i JOSÉ, Emiliano. As asas invisíveis do padre Renzo. São Paulo: Casa Amarela, 2002, pág. 50.

ii Ibid, pág. 28.

iii Ibid, págs. 109-110.

iv SCHIMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... historiadores e jornalistas: aproximação e afastamento. In: Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, nº 19, 1997, págs. 3-21.

v LORIGA, Sabina. O limiar biográfico. In LORIGA, Sabina. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, págs. 17-47.

vi SCHMIDT, Benito Bisso. História e biografia. In CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINVAS, Ronaldo. Novos domínios da História. Rio de Janeiro, Elsevier, 2012, págs. 187-205.

vii BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In PINSKY, Carla (org). Fontes Históricas. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2011, págs. 203-233. O excerto citado está na página 227.

viii VIANA FILHO, Luiz. A verdade na biografia. São Paulo, Civilização Brasileira, 1945. Página 15.

ix LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, pags. 247-248.

x BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996, pág. 189.

xi LAGO, Adriano Batista Pereira. Entre história e memória: os relatos de Emiliano José sobre a ditadura civil-militar. Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História no Campus V da Uneb. Santo Antonio de Jesus, 2015.