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De Paris, Theodomiro Romeiro dos Santos, olhava o ambiente. Houve momentos anteriores a 1985 nos quais já se sentira tentado a voltar ao Brasil. Mas sabia o quanto era visado. Tinha de se acautelar, mais do que a maioria. Chegara a hora. Atravessar o Rubicão. Voltar à terra natal.

1985 é um ano decisivo.

Precedido por uma das maiores manifestações de massa de nossa trajetória como país.

A Campanha das Diretas é um daqueles momentos luminosos.

O acontecimento permite discutir vitória e derrota.

A verdade: uma campanha derrotada.

Como disse: nesse caso, vitória e derrota têm de ser relativizadas, olhadas de modo abrangente.

A campanha foi um vendaval de manifestações populares por todo o país.

A sufocar a ditadura e a permitir o início da transição com a eleição, pela via indireta, pelo Congresso Nacional, de Tancredo Neves como presidente da República.

Assim, falar em derrota, no caso da Campanha das Diretas, há de se tomar cuidado.

Foi decisiva na derrota da ditadura.

Claro: há os ardis do destino.

Tancredo Neves morre antes de assumir.

José Sarney assume.

Inegável, no entanto: outro momento político se iniciava.

Democrático.

Sei: persiste a discussão sobre nossas “transições por cima”.

As classes dominantes sabem como se mexer.

Melhor entregar os anéis.

Preservar os dedos.

A burguesia interna e o capital internacional viam a ditadura na fase final, desde pelo menos o início do governo Figueiredo.

Viram o velho moribundo se recusando a morrer.

O novo, com dificuldade de aparecer.

Na linha da sentença de Gramsci.

Nesse claro-escuro, surgem os monstros, dizia o comunista italiano.

E surgiram.

Ainda nesse meio tempo, houve, no governo Figueiredo, tentativas da extrema-direita militar de conturbar o ambiente pelo terrorismo, e assim, quem sabe, garantir mais tempo à ditadura.

Como o atentado do Rio Centro.

Acontecesse, e seriam centenas de mortes.

E então o argumento para um novo e trágico fechamento político, prisões, torturas, mortes.

Felizmente, e não podemos dizer de outro modo, as bombas explodiram no colo dos terroristas.

Dos militares escalados para a tarefa.

Parece uma vingança do destino.

Contudo e apesar de tudo, a democracia acabou vencendo.

Povo em cena

Discutir as “transições por cima”, argumentar em torno delas, às vezes obscurece a realidade da participação popular.

As classes populares se movimentam de acordo com a força delas.

A movimentação depende da correlação de forças.

Muita coisa aconteceu nesses anos turbulentos, anteriores a 1985.

Desde o início do governo Figueiredo, e até um pouco antes dele, as forças populares haviam começado a colocar a cabeça de fora novamente.

Especialmente a partir do surgimento da atividade política das camadas médias e da classe operária do Centro Sul, mais ainda do ABC paulista.

Aconteceu a anistia.

Às vezes, subestimada por áreas de nossa esquerda.

Foi de extraordinária importância.

Notáveis lideranças políticas puderam voltar ao Brasil, entre as quais Leonel Brizola e Miguel Arraes.

Muitos revolucionários, egressos das organizações armadas, também retornavam, com novos pensamentos.

Muitos comunistas do PCB, de novo no Brasil.

Presos políticos foram libertados.

O país respirava.

A ditadura fora derrotada nesse episódio.

Pela luta do nosso povo.

Talvez não tenha sido como pensado.

Talvez a anistia pudesse ser muito mais ampla.

Talvez os militares, os torturadores, devessem ir para a cadeia.

Talvez.

Nada disso aconteceu simplesmente porque nos faltaram forças.

O diabo da correlação de forças.

O homem faz história.

Mas o faz sob determinadas circunstâncias, condicionado por elas.

As classes mexem-se sempre sob um cenário econômico, político, social.

Assim, nos mexemos nós, durante os anos próximos ao fim da ditadura.

O desenlace não foi como queríamos, podemos dizer isso.

Não houve a chamada “tomada do poder”, como nos nossos melhores sonhos.

Nós havíamos primeiro sofrido uma derrota.

Fomos massacrados.

Por erros nossos e pela barbárie da ditadura.

Jorrou muito sangue.

Aos poucos, recuperamos nossa capacidade de mobilização.

Foi um processo lento, a partir de meados dos anos 1970.

E depois se acelerando.

E chegando a anistia.

E mais tarde, a eleição indireta.

Não como queríamos.

Mas, inegavelmente, um novo tempo.

PCBR

De Paris, Theodomiro Romeiro dos Santos, olhava o ambiente.

Houve momentos anteriores a 1985 nos quais já se sentira tentado a voltar ao Brasil.

Mas sabia o quanto era visado.

Tinha de se acautelar, mais do que a maioria.

Chegara a hora.

Atravessar o Rubicão.

Voltar à terra natal.

Ele ainda se encontrava organizado, como dizíamos nós.

Ainda se considerava, e era, militante do PCBR.

Teve vários contatos com Bruno Maranhão, principal dirigente do partido, vivendo no exterior, exilado também.

Antes de partir, seguir para o Brasil, rememorava.

Começo dos anos 1980, um núcleo de exilados, vinculado aos Tupamaros, faz contato com Theodomiro.

Queria reorganizar o partido no Uruguai.

Pensava a retomada da ação política, o partido iria se reconstruir.

Difícil cumprir tal tarefa a partir da Europa.

Melhor fazê-lo a partir do Brasil.

Imaginava pudesse contar com a ajuda ao PCBR para tanto.

Ter à disposição dos exilados dispostos àquela tarefa a estrutura do partido no Brasil.

Theodomiro não pensou muito: era um dever revolucionário ajudar o partido-irmão.

Sem conhecer muito a situação do PCBR no Brasil naquele momento, topou.

Passou a informação à direção.

O partido botou a mão na cabeça.

Muitas tarefas pesavam sobre o PCBR numa fase de reorganização, compreendida tal fase entre o final da década de 1970 e a primeira metade dos anos 1980.

Agora isso: o trabalho de ajuda aos militantes tupamaros vindos do exterior devia ser encargo do PCBR no Brasil.

Negar, o BR não podia.

Militarismo

Necessário um retrospecto.

Duas ou três palavras, ligeiras, sobre o partido naquela fase.

Para mostrar as movimentações do PCBR no processo de reorganização.

Um tumultuado processo.

BR, assim chamado pelos militantes, havia sido vítima de tremenda ofensiva da ditadura, a partir do início dos anos 1970.

A ditadura mata, de forma bárbara, na tortura, o principal dirigente do partido, Mário Alves, no início daquele ano.

Depois, ditadura segue assassinando outros dirigentes.

O partido, o pouco a restar dele desde o início de 1970, depois da ofensiva, aprofunda a prática militarista.

Tomado pelo espírito da época, marcado pelo debraysmo.

Ação uma atrás da outra.

Muitos assaltos a banco, ou expropriações, como chamadas.

Guerrilha urbana, às vezes assim chamada, impropriamente.

A ditadura aumentou a ofensiva.

Muitas mortes.

O principal dirigente naquela fase, Bruno Maranhão, obrigado a se a exilar.

Ou seria morto.

Ainda assim, na perspectiva de reorganizar o partido, Maranhão entra clandestinamente no Brasil em duas ocasiões: 1977 e 1978.

Corria sérios riscos porque o País ainda vivia sob ditadura.

Sob o general Ernesto Geisel, patrocinador da política de distensão lenta e gradual, pensada por Golbery do Couto e Silva.

Não é possível esquecer: Geisel dirá da necessidade de continuar a matar, literalmente.

Maranhão, no Brasil, buscava juntar as pontas, aqui e acolá, e garantir a sobrevivência do BR: foi essa a atuação dele nas duas vindas ao Brasil naqueles ainda sombrios anos.

Nessa situação de clandestinidade, conversou com muitos militantes, animou-os a seguir no trabalho de reorganização.

Ainda acreditava nessa possibilidade.

Trabalho difícil.

Não se dispunha de qualquer infraestrutura, e nem de recursos.

Um processo muito voluntarista.

Desejo de recomeçar a militância do partido.

Partido se divide

Isso, no entanto, cobrava a realização de um debate político, especialmente sobre os equívocos do passado.

Necessário avaliar qual o saldo teórico da organização, fosse qual fosse tal saldo.

O BR, não obstante o evidente militarismo, queda acentuada pelo voluntarismo, considerava-se um partido leninista, talvez uma contradição em termos.

Isso significava dizer: apostava na necessidade da existência do partido para dar conta da tarefa revolucionária, para fazer a revolução.

Esse debate vinha se desenvolvendo desde o exterior.

A reconstrução foi iniciada em 1977, 1978, num cenário de imensas dificuldades.

E ao mesmo tempo, numa conjuntura nova da luta de classes, com a retomada de movimentações das camadas populares, com o fortalecimento da luta institucional, do MDB, depois PMDB, e tudo isso surpreendendo um BR desprevenido.

Com isso, o partido teve que desenvolver dois esforços simultâneos, teóricos e políticos: refletir sobre o passado da organização e desenvolver uma tática sobre tudo que ocorria no Brasil.

Em 1978, uma nova eleição iria acontecer no Brasil.

BR se divide.

Uma parte do Comitê Central na Europa, a favor de que o partido apoiasse candidatos com perfil de esquerda dentro do MDB/PMDB.

Outra parte, se colocava contra essa posição: queria o apoio a candidatos com programas mais radicalizados, nitidamente de esquerda, correspondentes ao que tal corrente considerava o grande avanço do movimento popular.

Esta corrente, liderada por Bruno Maranhão e contando com os companheiros do Brasil, contatados pelo próprio Maranhão, nas viagens de 1977 e 1978.

Não queria uma oposição débil.

Necessário desmascarar não só a ditadura, mas também os setores da burguesia cuja oposição era insuficiente para dar conta dos desafios postos pelos movimentos populares.

Estava tudo muito bem: a corrente liderada por Maranhão achava positiva a existência de um racha nas classes dominantes.

Mas não estava disposta a colocar o partido sob a direção de um partido majoritariamente burguês como o MDB/PMDB, apoiando candidatos dados à conciliação, sem uma nítida visão da luta de classes, sem uma perspectiva revolucionária.

Uma posição discutível, considerando a conjuntura, mas era este o pensamento dos dirigentes do BR no Brasil.

O partido racha.

Dele saem figuras importantes, como Apolônio de Carvalho, o nome mais destacado do BR então, desde a morte de Mário Alves.

Se já era pequeno, menor ainda ficou por conta desse racha.

De Paris, então, bem antes de pensar em retornar, Theodomiro informa ao partido da necessidade de ajudar os Tupamaros a se reorganizar, a partir do Brasil.

O BR se movimenta.

Não podia recusar.

No partido, predominava uma visão latino-americanista, herança de todo um momento histórico.

Revolução Cubana, as tantas experiências de guerrilhas, bem ou mal sucedidas.

E agora surgia a oportunidade de uma ação efetiva, solidariedade internacionalista, no âmbito da América Latina.

Renato Afonso de Carvalho, um dos principais dirigentes do partido em ação, ex-prisioneiro político, professor de história, é quem conta essa história. Fiz com ele longa entrevista, no mês de setembro de 2024.

O BR ajudaria os companheiros.

E isso em meio ao tumultuado processo de reorganização.

Na visão de Renato Afonso, o partido, limitadamente fosse, havia se recomposto na Bahia, em Pernambuco, no Paraná e em Santa Catarina, e depois também no Rio de Janeiro.

Tem compreensão nítida: um processo difícil.

Não crescia no ritmo desejado para as tantas tarefas a que se impunha.

Todo esse quadro se desenvolvia nos anos passados por Theodomiro no exílio parisiense, entre 1979 e 1985.

Renato Afonso tinha certeza: partido não tinha pernas nem braços para cumprir bem todas as tarefas.

Mas, recusar a ajuda aos Tupamaros, nem pensar.

E foram iniciadas as primeiras conversas.

Um delas, na Bahia.

Tal solidariedade, o leitor saberá logo.

Coisa de cinema, vocês lerão.

Só esperar um pouquinho: próximo capítulo.

Antes de Theodomiro regressar ao Brasil.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros