Política

Democracia e barbárie são temáticas cruciais para os planos de cultura. Desconhecer o perigo que ameaça a sociedade e a cultura depõe contra as finalidades mais nobres dos planos de cultura. No ano em que o Plano Nacional de Cultura (PNC) tem agendada sua reconstrução, tais preocupações se transformam em atitudes substantivas. O novo plano deve assimilar os acertos e erros do PNC de 2010.

A barbárie é questão crucial de nosso tempo. Democracia ou barbárie parece ser o lema-dilema sob o qual (sobre)vivemos. A barbárie em suas variações contemporâneas nos ameaça a todo momento: autoritarismos, neoliberalismos, fundamentalismos, opressões, neofascismos, intolerâncias, monoculturas, discriminações, explorações, preconceitos etc. O risco da barbárie emerge como perigo para a civilidade humana, pois ela interdita conversas, diálogos, liberdades, disputas político-culturais, próprias do viver democrático e introduz ódio e violências, simbólicas e físicas, em substituição à política, enquanto busca de consensos provisórios, por meio de conflitos legitimados por regras do jogo acordadas de modo pactuado.

A democracia é questão crucial de nosso tempo. Ela também esconde perigos. Em sua versão liberal-representativa, ela quase restringe a participação ao instante político-eleitoral. Ela limita a democratização, quando muito, ao governo e ao Estado, mesmo assim de modo bastante circunscrita. Ela não estende as regras democráticas às inúmeras relações de poder, que constituem a sociedade. Ela se transforma em uma democracia restrita, que não consegue universalizar cidadania e direitos, nem socializar efetivamente a política. Dessa maneira, a democracia liberal-representativa hoje hegemônica está em profunda crise. Ela sofre contestações, inclusive abrindo flancos para sua destruição pela ascensão ao poder político da extrema-direita e consequente instalação da barbárie.

Democracia e barbárie são temáticas cruciais para os planos de cultura. Desconhecer o perigo, que ameaça a sociedade e a cultura, depõe contra as finalidades mais nobres dos planos de cultura. Eles, antes de tudo, devem estar comprometidos com o imprescindível desenvolvimento de uma cultura democrática, que assegure a efetiva socialização dos poderes existentes na sociedade, a universalização dos direitos, a igualdade, as liberdades, o fim da exploração e das opressões, o bloqueio dos fundamentalismos e a abertura à dúvida e ao diálogo. Sem cultura democrática instalada, a construção de outro mundo e outro país possíveis encontra-se comprometida e mesmo interditada.

Os planos democráticos de cultura nas diferentes instâncias – supranacionais, nacionais, regionais, estaduais, distritais, municipais, universitárias etc. – devem ter como horizonte a cultura democrática. Nessa perspectiva, sua construção necessita acontecer por meio de procedimentos democráticos de debate e deliberação, bem como através de processos democráticos de definição política de prioridades. Sem tais requisitos seu objetivo de tecer culturas democráticas se torna impossível. Os necessários procedimentos de debate e deliberação democráticos asseguram a ausculta das populações envolvidas, garantindo o acolhimento de suas demandas político-culturais. Os planos têm que ser capazes de dialogar e abraçar os anseios dos agentes, comunidades e sociedade. Os processos de definição de prioridades precisam, democraticamente, escolher os temas básicos a serem enfrentados em determinado tempo/espaço, pois um plano, que se propõe a orientar políticas e gestões de cultura, não pode em hipótese alguma deixar de definir os horizontes centrais prioritários. Sem isso, ele corre o risco de se tornar nada mais que um documento de belas e boas intenções.

No ano em que o Plano Nacional de Cultura (PNC) tem agendada sua reconstrução, tais preocupações se transformam em atitudes substantivas. O novo plano deve assimilar os acertos e erros do PNC de 2010. O acerto dos debates e das deliberações democráticas e amplas. O erro de um processo de priorização por demais frágil, conciliatório, buscando incorporar todas justas demandas de agentes e comunidades culturais como prioridades, sem atentar para o momento político imprescindível de construção de consensos acerca de efetivas prioridades do campo cultural. Contempladas, elas têm impacto sobre toda a cultura e seu desenvolvimento, colocando-a em outro patamar para a construção de mais um plano. A perspectiva processual torna-se vital para imaginar planos de cultura. Eles não conseguem resolver tudo de uma só vez, mas criam condições para que o campo da cultura seja sempre colocado em outro patamar de desenvolvimento.

Dentre as novas configurações a serem assumidas pelo PNC em 2024, cabe destacar uma perspectiva mais conscientemente federativa. Desde a elaboração do primeiro PNC e do desenvolvimento, em andamento, do Sistema Nacional de Cultura (SNC) no Brasil aconteceu a tessitura de uma concepção mais explícita de federalismo cultural. Ela esteve paralisada entre 2016 e 2022, pelas gestões Temer e Bolsonaro, mas sobreviveu à barbárie e conseguiu, ainda que de maneira capanga, estar presente nas leis Aldir Blanc I e II e Paulo Gustavo. Nelas, o uso dos recursos públicos federais envolve estados, Distrito Federal e municípios com a necessária contenção da intervenção da gestão bolsonarista, inimiga da cultura. A correção do federalismo cultural capenga coloca na agenda da confecção do novo PNC o federalismo cultural em uma versão aprimorada e consciente, como nunca ocorreu antes no país.

O federalismo cultural traz para a cena temas correlatos, que devem ser incorporados com vigor e sabedoria pelo PNC, a exemplo da temática da territorialização da cultura e das políticas culturais. Não se trata mais de desconcentração, descentralização, interiorização ou termos assemelhados, todos eles inscritos em registros de meros atos administrativos, mas de uma mudança paradigmática com o reconhecimento visceral que território é cultura, que todo território possui dimensão cultural imanente, que tais singularidades precisam ser incluídas no PNC como componentes culturais essenciais das identidades e diversidades culturais brasileiras.

Os territórios culturais de fronteiras, por sua peculiaridade, não podem ser olvidados na retomada territorial. Tais identidades e diversidades adquirem características específicas por sua situação de trocas linguístico-culturais fronteiriças. Compreender esta e outras singularidades dos territórios, como o custo amazônico, tão presente na IV Conferência Nacional de Cultura, emergem como dados fundantes para a construção atualizada e vigorosa do PNC.

As identidades e diversidades tão ameaçadas nas gestões federais anteriores e em países mundo afora, em que a barbárie aparece como perigo eminente, ocupam lugar relevante no novo plano, em especial por sua sintonia fina com a questão democrática, pois os autoritarismos têm propensão à imposição de fundamentalismos e monoculturas. O cuidado com o desvio das identidades e diversidades, ao produzir guetos autossuficientes, precisa de atenção redobrada. Neste sentido, os diálogos interculturais funcionam como antídoto contra as tentações, que assombram, de vez em quando, os coletivos e as lutas por identidades e diversidades.

O vigor das identidades e diversidades culturais nas cenas, brasileira e mundial, atuais se traduz nos chamados movimentos político-culturais identitários, que agendam lutas de mulheres, negros, comunidades de orientação sexual diferenciadas e de outros coletivos oprimidos. Aqui não cabem contraposições de identidades e diversidades, nem tão pouco o esquecimento de outras identidades e diversidades que compõem a sociedade capitalista hoje, tais como as relativas às nacionalidades e aos pertencimentos de classe social. O silenciamento delas olvida a conexão entre as políticas de igualdade e as políticas de reconhecimento, por demais imprescindível para a superação da exploração e da opressão da sociedade capitalista, bem como para tecer planos de cultura democráticos, que não podem deixar de incorporar tais temáticas.

A transversalidade aparece como outro requisito indispensável ao novo plano. Ele não pode em hipótese alguma se voltar de modo equivocado para dentro do campo da cultura, como perigosamente parece ter acontecido nas resoluções da IV Conferência Nacional de Cultura. Por óbvio, as demandas prioritárias do campo precisam ser contempladas, mas não se pode perder de vista que a área da cultura é, por excelência, transversal. Ela perpassa toda a vida em sociedade. A transversalidade das políticas de cultura, por conseguinte, impõe-se como básica para planos de cultura, que desejem dialogar com toda sociedade e que possam adquirir uma efetiva centralidade nas políticas públicas. A transversalidade das políticas culturais envolve inúmeras áreas sociais afins. Ela, junto com a conexão entre cultura e democracia, aparece como chave para que a cultura possa adquirir a centralidade nos projetos nacionais de governo. Centralidade tão reivindicada e desejada pelo campo cultural.

As políticas culturais entre 2003-2016 e os ataques à educação, às universidades, aos institutos federais de educação, à ciência e à cultura entre 2016-2022 geraram elementos inovadores, que precisam ser considerados. Aqueles anos, por estímulo ou por resistência, fizeram emergir nas instituições universitárias movimentos relevantes de atenção com a cultura e com as políticas culturais. Proliferaram pelo país iniciativas de construção democráticas de planos de culturas em universidades, federais e estaduais, e em institutos de ensino. Tal mobilização não pode ser desconsiderada na elaboração do PNC. Além das interações federativas com estados, Distrito Federal, municípios, as universidades e as instituições de ensino podem ser novas parceiras no debate, deliberação e implementação do novo plano.

Ainda que não sejam entes federativos no sentido estrito do termo, as universidades e institutos públicos devem colaborar muito com o PNC e com seu fortalecimento. Eles têm sido aliados da luta democrática e da configuração da cultura democrática no Brasil. Nada casual que os governos autoritários e neoliberais tenham atacado tais instituições e dificultado seu crescimento e sua democratização. A colaboração entre as entidades e o PNC acolhe inúmeras dimensões possíveis: discussão, debate, estudos, deliberação, implementação, acompanhamento, formação, análises, avaliações etc.

Os planos de cultura destas instituições buscam: 1. Organizar a atuação delas na área da cultura; 2. Conhecer melhor de sua atuação cultural; 3. Informar de maneira adequada sua ação cultural; 4. Preservar com mais apuro seus bens culturais; 5. Estimular mais a criatividade e a inventividade de criadores culturais; 6. Formar seus estudantes, técnicos e professores em termos culturais de modo consistente; 7. Prestar serviços culturais mais qualificados às comunidades do entorno e remotas; 8. Ampliar os estudos e pesquisas em cultura; 9. Consolidar sua situação de universidade democrática, gratuita e qualificada e 10. Colaborar na construção de uma cultura democrática no Brasil e no mundo. Tais objetivos inscritos nos seus planos culturais possuem fina sintonia com o PNC e devem incentivar interfaces criativas entre eles.

A abertura do novo plano para estas e outras interações com a sociedade brasileira e internacional atualiza e torna mais contemporâneo o próximo plano, que deve conjugar olhares múltiplos acerca do passado, do presente e do futuro, sempre em perspectiva radicalmente democrática. Nesse sentido, o PNC como documento orientador das políticas e da gestão cultural no país tem um compromisso e um papel vital na luta pela cultura democrático no Brasil, que permita superar o caráter pendular da democracia no país, superar os dilemas contemporâneos relativos às ameaças de barbárie e conquistar uma democracia ampliada, em favor da sociedade e da cultura brasileiras.