Estante

Maria Cláudia me mandou o livro autografado.

Esta é minha modesta contribuição a estas bravas guerreiras que viveram e lutaram naqueles anos infames”.

Datado: 22/07/2024.

Não é modesta.

Grandiosa.

A abrir portas para a compreensão do papel das mulheres no decorrer da luta contra a ditadura.

Naqueles anos infames.

E a nos provocar quanto aos dias atuais.

O esforço é conter o objeto, e digo assim porque o livro é resultado da tese de doutorado desenvolvida por ela na Universidade de São Paulo, defendida já tem algum tempo, em 2011, contê-lo nos limites do protagonismo feminino na Ação Libertadora Nacional (ALN), a maior organização armada de resistência à ditadura.

O trabalho explode como um bólido, de infinitas direções, múltiplos significados.

O livro surge em 2018.

Disse abrir portas porque creio ainda existir uma longa estrada para absorver o papel das mulheres durante os anos do terrorismo de Estado praticado pelas Forças Armadas entre 1964 e 1985.

A leitura do livro de Maria Cláudia, ele mesmo, fornece pistas para outras iniciativas.

Embora se concentre nas mulheres envolvidas com a militância direta e indireta na ALN, deixa entrever outras possibilidades, cruzamentos com outras organizações partidárias.

Fácil perceber o envolvimento de várias mulheres ligadas diretamente ou próximas ao PCB, o mesmo partido cuja trajetória não foi a da luta armada.

Nele, no entanto, tantas com mulheres dispostas a ajudar os perseguidos pela ditadura, a cobrar, quem sabe, outro esforço de pesquisa.

Não digo isso aleatoriamente: Maria Cláudia dedica um capítulo ao PCB, consciente de que uma grande parcela das mulheres da ALN era egressa do velho PCB, goste-se ou não, matriz de tantas organizações revolucionárias, ALN incluída.

Ela localiza também militantes do PCB, não rompidas com ele, capazes de serem solidárias com a ALN em momentos críticos da organização.

Coisa de comunistas.

Inegável, ela dirá, ter sido o PCB uma escola de formação de muitas mulheres.

Formação para a luta revolucionária.

Costumo dizer que quaisquer livros incluem outros, ou, ao menos, sugerem outros.

Na não ficção, e na ficção.

Penso em Vidas Secas, de Graciliano, e no capítulo sobre Baleia, uma história a valer por um livro, comovente, emocionante.

Quem ler Maria Cláudia perceberá um mundo de possibilidades, veredas por onde encontrar propostas de pesquisas sobre o sombrio período da ditadura.

Como disse, confrontando o carinhoso autógrafo, o livro dela é uma grandiosa e específica contribuição sobre esse período sombrio da ditadura pelo que contém e pelas muitas portas abertas para outras pesquisas, investigações.

Rica contribuição.

Cinco densos capítulos.

Do meu ângulo, aligeirado, o essencial, no esforço de Maria Cláudia, é tentar penetrar o âmbito do específico papel da mulher na luta revolucionária.

De como a mulher, em condições bastante desfavoráveis, buscou espaço, enfrentou tudo e todos.

A ditadura, com toda a fúria sangrenta dela.

As dificuldades de encontrar brechas num território bem masculino, como se por algum capricho do destino reservado aos homens.

E elas dizendo, não.

É também arena nossa, das mulheres.

Claro, pode-se argumentar, e ela demonstra isso, época também de as mulheres darem os primeiros passos para a libertação, luta seguramente a persistir até os dias atuais.

As revolucionárias de então compunham uma geração de transição.

A geração de 1968 foi a primeira a marcar a independência da mulher, a enfrentar os obstáculos, a gritar, brigar pela liberdade feminina, feminista.

Eram os primeiros urros de liberdade, como dito no livro, pernas à mostra, a minissaia, o jeans.

A descoberta da literatura feminista, Simone de Beauvoir, O segundo sexo a apontar novos rumos.

A entrada da mulher diretamente na luta armada, no caso examinado por ela, facilitada pelo pensamento da Ação Libertadora Nacional (ALN), de modo especial pelas concepções do líder da organização, Carlos Marighella, neste caso muito à frente do tempo dele nesse campo.

Na ALN, nenhuma mulher sofreu discriminação por ser mulher.

E isso era muito decorrente da postura do velho Marighella.

Diferente, por exemplo, da cultura de um PCdoB.

Um dirigente, no caminho para a integração de uma militante num destacamento guerrilheiro, a primeira mulher a ser incorporada à Guerrilha do Araguaia, alertou-a: seria o desempenho dela a garantir o engajamento de outras mulheres. Desse errado, e nenhuma outra viria.

Criméia Teles não se calou e respondeu ao veterano João Amazonas:

_ Por que você cobra isso das mulheres?

_ Se o primeiro homem a chegar aqui não desse certo, não haveria guerrilha?

O espírito machista, tão presente à época, e ainda não superado, estava presente, e aí de modo ostensivo, nos homens da repressão.

Quando o DOPS invadiu a pensão onde Leslie Beloque estava hospedada, o policial dá de cara com roupas finas no guarda-roupa dela:

_ Nossa, então você não é uma vadia, mas então você é igual a mim, você é do mesmo segmento de classe, classe média, talvez da mesma extração social.

_ Como é possível você estar envolvida na militância?

Tivesse roupas boas, então não era uma vadia.

Era mulher de bem.

A repressão tratava as mulheres da luta armada com um desrespeito profundo, dando vazão a toda espécie de machismo, um machismo além de tudo carregado de ódio.

As mulheres traziam tanto o peso da participação na luta armada quando caíam, quanto suportavam nas costas todos os estereótipos próprios da mentalidade patriarcal e machista.

Ouviam, em diferentes ocasiões, os xingamentos.

Amante.

Acusadas de usar “linguagem de rameira”.

Puta pra cá, puta pra lá, o que mais ouviam.

Perigosas serpentes destruidoras da família.

E eles, os policiais, inegavelmente, insista-se, demonstravam um ódio terrível às mulheres.

Difícil pensar, com tal comportamento, pudessem aqueles homens ter uma relação sexual normal.

Só Freud explica.

Mesmo.

E a explicação certamente os irritaria muito.

As mulheres tinham também, para pensar de modo amplo, histórico, tinham também de lidar com o conservadorismo da própria esquerda.

Algum moralismo presente mesmo entre comunistas, no PCB.

Não se negue, no entanto e já se disse isso, terem sido tais estruturas formais, como o PCB, lugares de amadurecimento político e de aprendizagem, e assim sendo, abrindo caminhos para o específico papel da mulher.

Não se deve desconsiderar, o livro insiste, o fato de que ser de esquerda abriu imensas possibilidades às mulheres, inclusive, diria, abertura de espaços para o próprio feminismo.

À época, diria que antes de 1968, não existia um feminismo que não fosse de esquerda.

O avanço do protagonismo da mulher depois da Segunda Guerra no Brasil dependeu, e muito, das posições dos comunistas, de modo especial do PCB.

Fico a refletir, depois da leitura, a perguntar-me: e de lá para cá, quais os avanços para as mulheres?

Certamente, a resposta é: muitos.

E é verdade.

Mas, há perguntas.

Desafiadoras.

Não vivemos tempos de algum retrocesso?

Os homens aprenderam?

Em que medida?

E os milhares de feminicídios?

O homem incapaz de aceitar o direito da mulher de se separar, desamar, querer viver outros amores, ou nenhum?

E o machismo nosso de cada dia?

O afrontoso, o mais desrespeitoso, tão presente?

Aquele a não aceitar o não de modo nenhum?

A ideia da mulher como propriedade do macho?

E o machismo sutil, venenoso, ornado por aparente inocência, como se nada quisesse, querendo?

E as mudanças políticas, os retrocessos evidentes, bom não ignorar?

O avanço, diria consolidação, de uma cultura patriarcal nas religiões, de modo especial, e falo com todo respeito a quaisquer religiões, nas neopentecostais, mas não somente nelas?

Com todas essas perguntas, pretendo ligar aquele passado, sombrio e rico ao mesmo tempo, com os dias atuais.

Só deixar as interrogações.

Depois de 1968, atravessada a ditadura, as mulheres, muitas envolvidas com a luta armada e simultaneamente vivendo mudanças culturais profundas, de maior liberdade, emancipação, parecia surgir um novo tempo.

O crescimento da extrema direita em escala mundial e de modo impressionante, não representou também o ressurgimento do machismo, e um machismo a receber o beneplácito de um grande número de mulheres?

Tais questões deverão ser enfrentadas por aquelas mulheres, como Maria Cláudia, enriquecidas por um legado tão cheio de esperança, tão voltado à liberdade das mulheres, à emancipação de todas.

Não só por elas, sei.

Mas principalmente por elas.

Aprendi muito com a leitura.

Não lamento terminar com tantas perguntas.

Elas nos inquietam a todos, às mulheres e aos homens.

Ao menos aos homens e mulheres progressistas e de esquerda.

Hoje, mais do que ontem, nos soa com muita força, a ideia de que a humanidade só será justa e livre quando as mulheres tiveram chegado à emancipação, à liberdade, ao direito de ser o que ela desejar, quiser, sonhar.

Quando ocorrer a igualdade de direitos face a face aos direitos dos homens.

Na prática.

Enquanto isso não ocorrer, seremos uma sociedade de opressão.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros