Estante

Feminismo anticarcerário: o corpo como resistência” recolhe uma série de contribuições de Alicia Alongo, que na Introdução da obra se apresenta como “privilegiada acompanhante sociojurídica das pessoas presas […] defensora de direitos humanos e […] estudiosa e pesquisadora do tema” (p. 34).

Com humildade e rigor, empregando um estilo direto, próximo e empático, a autora nos convida a questionar “com indignação” (ibidem) a existência da prisão a partir de um feminismo antipunitivista. Do mesmo modo que Gilmore (2022), Ricordeau (2019), Francês Lecumberri (2022) e Pitch (2022), Alonso defende que o enfoque punitivista é um horizonte incompatível com um projeto realmente feminista. E neste sentido, as prisões podem considerar-se lugares onde a ideologia patriarcal se faz mais evidente, intensa e totalizante, chegando a afetar todos os aspectos – utilizando uma expressão da sociologia carcerária – da vida cotidiana das mulheres encarceradas, e das pessoas trans e não binárias também, evidentemente. Como indica com extrema clareza a autora: “para as mulheres, a prisão é um continuum do controle patriarcal, uma ferramenta para o castigo e a disciplina. Lutar contra essa forma de castigo é também uma forma de lutar contra o patriarcado e o capitalismo” (p. 41).

Frente a uma justiça restaurativa que não acaba por romper com as lógicas de direito penal, Alonso, pese não declará-lo de maneira explícita, parece simpatizar com uma justiça realmente transformadora, optando por uma gestão comunitária dos conflitos, retirar do Estado o tradicional monopólio que este tem sobre o uso da força e o controle sobre os e as desobedientes e, sobretudo, apostando na abolição do sistema carcerário. O monopólio estatal que se estabeleceu juntamente com a cultura do castigo baseia-se num pacto social do qual não participaram pessoas racializadas, indígenas, pobres e doentes mentais (entre outros). O livro de Alonso nos fala justamente destas pessoas, mulheres e trans que experimentam à primeira mão vários tipos de violência: doméstica, de gênero, sistêmica, institucional e carcerária.

Embora a população carcerária total de cada país no mundo tenda a variar de maneira significativa, a percentagem de mulheres presas na contemporaneidade manteve-se estável, situando-se entre 5 e 7%. Uma explicação para esta sub-representação das mulheres nas prisões pode ser encontrada no fato de, tradicionalmente, as mulheres terem sido submetidas a um intenso controle social que remete à “ideologia da domesticidade”, que promove uma imagem cristã da mulher, como mãe e alicerce do lar (p. 40). A prisão pode ser considerada uma “escola de subordinação” (cf. Melossi & Pavarini, 1977) e isso também explicaria a sua validade apesar dos seus evidentes fracassos. Se pensarmos nas mulheres, contudo, podemos perceber como, historicamente, esta tentativa de subordinação já foi implantada na esfera privado-doméstica, longe das prisões. Para muitas mulheres, a prisão representa então uma continuação da violência que sofreram ao longo da vida e acaba por reproduzir essa violência estrutural baseada na lógica patriarcal.

Além da perspectiva teórica adotada, um aspecto valioso do livro destaca a compilação de histórias de vida de muitas mulheres encarceradas, que a autora entrevistou nas prisões do Chile, Brasil, Itália, México e Colômbia nos últimos quinze anos. Surpreende a ternura e a delicadeza com que Alonso se aproxima dessas histórias das quais emergem sofrimento e desespero, mas, acima de tudo, dignidade. Muitas vezes, é justamente o corpo da pessoa privada de liberdade que é utilizado como arma de resistência (cf. Stroppa, 2022) contra a ferocidade insensata do poder. Através de greves de fome, automutilação e, por vezes, até da morte, “o corpo da mulher rebela-se de forma brutal, denunciando a mutilação da condição humana dentro da instituição violenta” (p. 26).

Um artigo do livro narra as experiências de isolamento vivido por alguma mulheres privadas de liberdade, que se configura, segundo indica uma das maiores especialistas na matéria, Sharon Salev, como “uma experiência especialmente dolorosa para as mulheres” (2021). Além de violar praticamente todos os direitos das pessoas presas, como aponta Alonso, “o isolamento penitenciário é um dos fatores que influenciam os altos índices de suicídio e automutilação nas prisões, por isso deveria ser abolido” (p. 103). Prova disso é a história de Luisa, prisioneira da prisão feminina de Santiago do Chile, que começou a se cortar após vários dias de isolamento e quase nenhum contato humano (p. 57). É a história de Bárbara, que teve que dar à luz sozinha, em uma solitária, onde cumpria sanção disciplinar (p. 64). É a história de Hadmi, presa por crimes menores relacionados a problemas psicológicos e que foi colocada na solitária e, de lá, nunca mais saiu (p. 147). Apesar da dureza dos relatos, este livro também nos proporciona uma certa dose de esperança. Alonso descreve e elogia algumas experiências, protagonizadas por mulheres presas, de “organização, acompanhamento, construção e apoio” (p. 97) que conseguem desarmar a lógica carcerária, a lógica prisional. É nosso dever nos interessar por essas práticas de resistência que conseguem existir apesar da violência do confinamento. Nesse sentido, livros como “Feminismo anticarcerário: o corpo como resistência” nos ajudam a identificar o caminho a seguir para pensar uma sociedade sem muros.

Rachele Stroppa, OSPDH, Universidade de Barcelona ([email protected])

Referências

Francés Lecumberri, P. Feminisms in the challenge of alternatives to punitivism: The necessary synergies in a path to be explored. Oñati Socio-Legal Series,12 (6), p. 1759-1795, 2022.

Melossi, D. & Pavarini, M. Carcere e Fabbrica. Alle origini del sistema penitenziario. Bologna: Il Mulino, 1977. Pitch, T. Il manlinteso della vittima. Torino: Edizioni Gruppo Abele, 2022.

Ricordeau, G. Pour elles toutes: Femmes contre la prison. Montreal: Lux, 2019. Shalev, S. La reclusión en régimen de aislamiento es más dura para las mujeres: ¿debe dejar de aplicarse?, Asociación para la Prevención de la Tortura, 2021. Disponível em: https://www.apt.ch/es/blog/la-reclusion-en-regimen-de-aislamiento-es-mas-dura-para-las-mujeres-debe-dejar-de-aplicarse. Acesso em: 05 mai. 2023.

Stroppa, R. El cos d’Alfredo Cospito, últim instrument de resistència a l’aïllament, LaDirecta. Publicado em 13/02/2023, disponível em https://directa.cat/el-cos-dalfredo-cospito-ultim-instrument-de-resistencia-a-laillament/. Acesso em: 05 mai. 2023. Wilson Gilmore, R. Abolition Geography. Essay towards Liberation. Brooklyn: Verso Books, 2022.

Tradução: Rogério Chaves, coordenador editorial da Fundação Perseu Abramo