Sociedade

Em verdade, Zumbi representa, com dignidade, a maioria da população brasileira (56%). E representa, também, os milhões de seres humanos tragados por dois crimes de lesa humanidade: o tráfico negreiro e a escravidão.

É impossível o Brasil ser democrático sem superar o racismo.

Consciência Negra

Em 2024, as reflexões e celebrações sobre a Consciência Negra no Brasil terão uma novidade.

Pela primeira vez, a celebração do 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, será feriado nacional, por conta da Lei 14.759/2023, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fruto do projeto de lei do senador Randolfe Rodrigues e relatoria do também senador Paulo Paim.

A data, inspirada na luta do grande líder quilombola Zumbi dos Palmares, já vinha sendo comemorada oficialmente, desde 2011, quando da promulgação da Lei 12.519/2011, de autoria da senadora Serys Slhessarenko.

Sem dúvida, uma grande vitória do movimento negro brasileiro.

Assiste ao dia da morte do seu grande líder, Zumbi dos Palmares, equiparado ao seleto grupo de feriados nacionais.

Não é pouca coisa.

Notável conquista em um país onde o racismo teima em eliminar física e espiritualmente milhares de descendentes de africanos há mais de quatrocentos anos.

Em verdade, Zumbi representa, com dignidade, a maioria da população brasileira (56%).

E representa, também, os milhões de seres humanos tragados por dois crimes de lesa humanidade: o tráfico negreiro e a escravidão.

Nesta celebração do feriado nacional não podemos esquecer o grande companheiro gaúcho, poeta, escritor e professor Oliveira Silveira.

Em 1971, em condições absolutamente adversas, ele deu o primeiro grito de independência do movimento negro contemporâneo diante do apagamento histórico do qual a sociedade brasileira era vítima ao apresentar exclusivamente a Princesa Izabel como a única responsável pelo processo da Abolição da escravatura.

Oliveira Silveira e os companheiros do Grupo Palmares acreditaram no sonho de uma data livre da subalternidade oficial.

Criaram o Dia Nacional da Consciência Negra, exatamente no dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares.

A iniciativa rapidamente ganhou os corações e mentes da comunidade negra brasileira.

Essa vitória na qual é reconhecido o 20 de novembro enquanto feriado nacional não poderia ter ocorrido em momento mais significativo da luta de combate ao racismo no Brasil.

Até porque, vivemos uma encruzilhada desafiadora, do ponto de vista político, uma crise, arriscaremos dizer, civilizatória.

A armadilha do individualismo e das subcelebridades tentam substituir o trabalho árduo e cotidiano de milhares de organizações e milhões de militantes do movimento negro, assim como o legado deles, pelo número de cliques em postagens lacradoras e caricaturais.

O mundo dos algoritmos.

Não temos de nos render a isso.

Essa marca histórica do feriado nacional é mais um legado de uma notável geração de lutadores.

Causas coletivas, interesses coletivos e resultados coletivos, as marcas dessa geração.

Nunca lutou por brilhos pessoais.

O combate ao racismo e a promoção da igualdade são metas visando a alcançar uma coletividade, e não a um indivíduo no particular.

Foi um significativo passo nessa luta histórica.

Ninguém conseguirá ofuscar o brilho dos heróis da resistência.

Aqueles a empunhar essa bandeira em tempos duros, sombrios da ditadura militar.

Tudo isso, é preciso insistir, deixar nítido, graças à luta, à persistência, à garra de milhares de militantes e aliados, assim como da sensibilidade e compromisso social de governos como os dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Consciência Negra é uma caminhada.

De muita luta.

Ela prossegue.

Democracia, um valor estratégico

Importante lembrar essa trajetória. Essa caminhada.

Não é à toa esteja tendo continuidade na retomada do período democrático em nosso país, em que pesem os riscos recentes por que passamos.

Apesar de todos os percalços, não há como negar: o Estado Democrático de Direito continua sendo o grande balizador e alicerce para o prosseguimento da luta do combate ao racismo e da promoção da igualdade.

O Estado Democrático de Direito é a base fundamental para a continuidade de tais lutas.

Diríamos mais: se quisermos ser vitoriosos nessa caminhada, é impensável separar a luta pela conscientização da sociedade brasileira contra as consequências nefastas produzidas pela discriminação racial e o racismo da luta pela consolidação da democracia em nosso país.

Vamos avivar um pouco a nossa memória para consolidar essa convicção.

Poderíamos listar um sem número de conquistas, mas fiquemos nas mais emblemáticas:

  • a aprovação, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal das Cotas raciais nas Universidades, que permitiu o acesso de mais de um milhão de jovens negros às universidades.

  • a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei 10.639/2004, que instituiu o ensino da História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, introduzindo na grade curricular do ensino fundamental a História da África e a contribuição dos negros para a sociedade brasileira.

  • a edição, pelo Poder Executivo do Decreto 4.887/2003, tendo como consequência o reconhecimento de mais de cinco mil territórios remanescentes de quilombos, pelo Governo Federal, regulamentando a Certificação e Titulação das Terras Quilombolas.

  • A criação de dezenas de secretarias e órgãos públicos de Promoção da Igualdade Racial por todo o país.

Tais conquistas só foram possíveis em períodos democráticos e executadas por governos democráticos.

A história não tem linha reta. É cheia de curvas. De obstáculos.

Não esqueçamos: apesar dos enormes esforços realizados pelos setores democráticos do país, bem como pelo movimento negro brasileiro, a questão racial no Brasil continua sendo um tabu em vários setores e um trauma para boa parte da sociedade brasileira.

Decorrente disso, a reflexão e o debate profundo que essa questão reclama continuam sendo atravancados pelos setores conservadores e instrumentalizados por áreas radicalizadas do movimento negro, que de forma ingênua terminam por levar água ao moinho daqueles que desejam que tudo se mantenha como dantes no quartel de Abrantes.

Vamos combinar uma coisa?

Com análises históricas e sociológicas rasas, incapazes de assimilar a complexidade do racismo no Brasil, bem como a relação implícita do racismo com o autoritarismo e a exclusão, a permear o exercício do poder no país, dificilmente teremos sucesso na compreensão desse fenômeno e no avanço da nossa luta.

A relação entre o racismo e o autoritarismo é algo muito mais profundo do que possa imaginar a nossa vã filosofia.

E a superação da aliança entre racismo e autoritarismo é algo a nos desafiar.

Um desafio para todos aqueles envolvidos na luta e no sonho por um Brasil democrático, igualitário, o povo tratado com dignidade e respeito.

Assim, o fortalecimento da democracia e das instituições democráticas é algo inescapável para o avanço das lutas raciais no Brasil.

Ao movimento negro não é indiferente a questão do poder político.

Um poder não democrático traz prejuízos enormes para a luta antirracista, para a luta contra a desigualdade.

Só lembrar o desastre de um governo como o de Bolsonaro, cuja política, explicitamente racista e a favor da desigualdade, prejudicou enormemente a luta dos negros e negras.

Felizmente, o povo brasileiro teve a sabedoria de eleger Lula para um terceiro mandato. Com ele, não obstante tantos obstáculos, os caminhos para a afirmação negra, em princípio, estão abertos.

O movimento negro precisa compreender a dimensão da importância da democracia, internalizá-la profundamente.

E a importância da luta política para garanti-la e garantir novas conquistas para o povo negro.

Vamos combinar outra coisa?

O escravismo e a subalternidade deitaram raízes profundas em nosso país.

Raízes na alma do nosso povo.

Compreender isso é absolutamente essencial.

Entender o papel da ideologia.

De como as classes dominantes constroem o pensamento, a alcançar as classes dominadas.

De como vão levando a população ao discurso da servidão voluntária.

Muito ainda terá que ser feito para mudar isso.

Superar esse estágio de dependência quase masoquista em que a maioria da população, negra e pobre, está mergulhada.

Atração fatal com os algozes. Nossa “Síndrome de Estocolmo”, coletiva.

Síndrome alicerçada no desencanto da mobilidade social e na violência endêmica na qual a comunidade negra está submetida desde sempre.

É verdade: avançamos no plano simbólico, na formulação e execução de políticas de ações afirmativas, bem como na produção de conteúdo para o enfrentamento do racismo e da discriminação.

Tudo decorrente da luta.

E de governos capazes de assimilar as demandas do movimento negro.

Mas também é fato: a maioria absoluta da população negra continua ocupando os espaços mais baixos da pirâmide social.

E sem perspectivas a curto prazo de melhoria das condições de vida. Ao menos, melhorias substanciais.

Além de ser vítima de toda sorte de violências, particularmente contra a juventude negra e mais particularmente violência advinda do aparato de segurança do Estado brasileiro.

Sem contar o crescimento exponencial do crime organizado, cuja ousadia cresce dia a dia, a afetar a vida dos mais pobres e a recrutar jovens da periferia, negros e pobres, para serem militantes do crime.

Uma situação, cabe dizer, desesperadora para a juventude negra, a reclamar políticas amplas do Estado brasileiro, no sentido de coibir a violência da polícia ao tempo em que combate o crime organizado e acentua mais e mais esforços no desenvolvimento de políticas públicas acolhedoras visando essa juventude.

Democracia e Estado Democrático de Direito precisam ter traduções nítidas e concretas no cotidiano da comunidade negra, de tal modo possam ser entendidas enquanto coisas factíveis e importantes para a vida dessas pessoas.

Inclusão racial: imperativo democrático

Se há negros no Brasil, e eles são a maioria da população, não basta fazer a louvação da contribuição cultural e dos atributos pessoais deles.

É preciso assumir: os ancestrais deles foram vítimas de um dos processos mais longos de escravidão da história da humanidade, sendo capaz de nos indignar até hoje, ao menos para quem tenha sensibilidade e conhecimento histórico mínimo.

E assumir mais: o estado de pobreza e de exclusão experimentados por negros e negras na atualidade está diretamente ligada a essa origem.

Como fosse uma maldição a perseguir negros e negras.

Não é maldição.

A sociedade brasileira não conseguiu enfrentar o desafio da superação do racismo, cujas consequências alcançam também, e de modo perverso, as condições materiais de existência.

Por isso, políticas públicas para superar a desigualdade a atingir negros e negras, promover e estimular a inclusão plena deles na sociedade brasileira, não é nenhum favor: trata-se de um imperativo democrático, no sentido mais profundo dessa expressão.

Com políticas públicas se inclui.

Com a inclusão, se estabelecem processos democráticos de escolha, e como consequência pode haver distribuição das riquezas da sociedade de forma minimamente equânime.

Incluir é ampliar a presença da comunidade negra no mercado de trabalho, proporcionando qualificação e melhores salários.

Incluir é ampliar o acesso a serviços de qualidade no campo da saúde, da educação e do lazer.

Incluir é melhorar a qualidade de vida nos bairros pobres, nas favelas e nas áreas periférica proporcionando segurança sem violência e moradia digna.

Será impossível chegar a isso?

Chegar a coisas tão elementares, próprias de uma sociedade democrática?

Não é impossível.

Requer, no entanto, luta.

E luta permanente.

Como nenhuma elite no mundo, nenhuma classe dominante, seja ela branca ou preta, quer perder privilégios, é necessário um trabalho político-cultural voltado à tomada de consciência de negros e negras.

E luta – insista-se.

Não nos iludamos.

Nada vem de mão beijada.

Lutar no cenário democrático, esperamos seja sempre assim.

Mas, lutar.

Sempre, e ainda por muito tempo.

No caso brasileiro, essa elite, ou classe dominante, se quisermos, se confunde com os brancos.

A colonização foi europeia.

Traduziu como colonização a tomada de território.

A maioria absoluta de nossas classes dominantes, daquilo também que possamos considerar elite, é formada por brancos.

Tais classes dominantes, brancas, a constituir uma elite econômica, política e intelectual, autoras dessa colonização predatória, se apropriam da coisa pública, e isso vem desde o início da chegada dos europeus, instituindo na quadra recente uma forma de capitalismo dos mais perversos do mundo, perversidade a atingir toda a população pobre, e de modo especial, negros e negras, maioria dentre os pobres.

Desconstruir esse processo não é simples.

Porém, absolutamente necessário.

Para o bem do Brasil e da sociedade brasileira.

Evidente que teremos muitos embates, mas por meio desses embates teremos condições muito maiores de alcançar o disposto na Constituição: que somos todos iguais, independentemente da cor, raça, religião e origem social.

Isso é fundamental.

Sabemos: os negros, as negras, são distintos.

Têm culturas, origens, religiões e pensamentos distintos.

Isso é bom.

Agora, situemos: é bom se não for utilizado para a perpetuação da desigualdade e da exclusão como vem ocorrendo ao longo da nossa história.

A população negra não deseja ser melhor nem pior do que ninguém.

Não quer ser superior a qualquer outra comunidade do País.

Ser tratada com dignidade.

Com respeito.

É o desejo, e a luta, dos negros e negras.

Desejo e luta da comunidade negra.

Noel Rosa, no samba, dizia: a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também.

Assim, a comunidade negra.

Não quer ser superior a ninguém, nem melhor.

O que a comunidade negra deseja é ser respeitada, como já dissemos.

Sendo diferente.

Mantendo a diferença dela, a cultura, e respeitando todas as demais culturas.

O futuro dos negros no Brasil é o futuro da sociedade brasileira.

É impossível fazer uma sociedade verdadeiramente democrática sem que haja a superação do racismo e sem a inclusão plena dos negros e negras na sociedade brasileira.

É bom para a nossa sociedade que isso ocorra o mais rapidamente possível.

Até para garantir a existência de uma sociedade plural, segura, democrática, aberta e diversa.

Isto não será bom só para os negros.

Beneficiará toda a sociedade, todas as pessoas.

Poderemos então falar de uma sociedade fraterna, solidária, democrática, civilizada.

Não, não podemos cair na armadilha de colocar a culpa no povo ou na sua falta de consciência política,

Vamos combinar uma outra coisa?

A consciência negra capaz de ter pensado e posto nas ruas os blocos afros.

A consciência negra capaz de por séculos e até os dias de hoje ter garantido a sobrevivência e afirmação do candomblé, fazendo dos terreiros centros religiosos, de cultura, de acolhimento, e de afirmação do povo negro.

A consciência negra capaz de jogar capoeira, arte da mandinga, cultura e arte, presente em gestos, falas e movimentos do povo de Salvador, a encantar todos.

Se negros, se negras, foram capazes de tudo isso, podem mais.

Para tanto, traduzir tudo isso para o mundo da política.

Serem, negros e negras, alavancas essenciais, pela luta, da construção da democracia, aqui entendida como aquela capaz de superar o racismo, abrigando a notável diversidade brasileira.

Repensar e alterar profundamente a nossa prática política, nossos métodos, assim como nossa organização política.

Com isso, fazer com que a consciência negra que tanto vocalizamos, seja a ferramenta para a melhoria de vida de nosso povo.

Mais que um desafio, repetimos: é um imperativo.

Para tanto, traduzir a consciência negra em participação democrática.

Consciência política e transformação social é o caminho do povo negro, irmanado com a população brasileira, de modo especial com tantos outros pobres espalhados Brasil afora.

A felicidade do negro é uma felicidade guerreira

Por fim, inspirado nesse orixá vivo, Gilberto Gil, a nos dizer poeticamente ser “a felicidade do negro, uma felicidade guerreira”, esperamos que o movimento negro e os seus aliados promovam o maior 20 de novembro de todos os tempos.

Trata-se de inundar o país de manifestações culturais criativas, rodas de conversas, debates, reflexões críticas.

Tudo voltado para dois objetivos fundamentais: o combate ao racismo e a promoção da igualdade racial em nosso país.

Nessa luta, buscar a unidade com todos os movimentos e pessoas antirracistas, independentemente da cor da pele.

Buscar inspiração para tal unidade no candomblé, por exemplo.

Desde sempre, a religião afrodescendente soube ser um elo de unidade, de acolhimento.

Ainda sob a escravidão, ia buscar aliados entre os brancos dispostos a negociar.

Sempre soube negociar, fazer política, no sentido mais amplo da palavra.

Vivemos um momento de acumulação de forças, após o 2016 e o 2018, golpe contra Dilma, prisão de Lula e eleição de Bolsonaro, ataques profundos à democracia.

Gostamos muito de pensamento presente em um dos livros de João José Reis, nosso notável historiador voltado às lutas negras.

Mais do que as grandes rebeliões, e ele escreveu belo livro sobre a revolta dos Malês, o principal, na luta contra a escravidão, na opinião dele, foi “o heroísmo prosaico de cada dia”.

A construção cotidiana, incessante, muito própria, do candomblé.

Luta pela hegemonia.

Juntando todo mundo.

Os ancestrais nos ensinando.

E até hoje o candomblé, serenamente, nos ensina.

Se quisermos outras inspirações voltadas à unidade, dispostas a deixar de lado a cor da pele, só nos basearmos em heroicas figuras da luta africana: Nelson Mandela, Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral e Samora Machel, os três últimos assassinados pelos agentes do colonialismo.

Ou na lição legada pelo Black Lives Matter, movimento originário dos Estados Unidos.

No desenvolvimento da luta “Vidas Negras Importam” houve o envolvimento de amplos contingentes da população branca, liderados por ativistas negros.

Esse 20 de Novembro há de ser um momento de radicalidade na luta pela democracia, pela igualdade, de modo especial pela igualdade racial.

Uma radicalidade marcada pela amplitude das reivindicações e pela amplitude da presença popular.

Um 20 de Novembro capaz de alcançar vastas camadas de nosso povo.

Viva a Democracia! Viva o Dia Nacional da Consciência Negra!  Viva Zumbi dos Palmares!

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros

Zulu Araújo é ex-presidente da Fundação Cultural Palmares