Há cem mil anos, o Homo sapiens enfrentou a maior ameaça à sua existência no planeta Terra, representada por uma redução populacional tão grande que praticamente homogeneizou a diversidade genética da nossa espécie, tornando-nos muito mais iguais uns aos outros. Não sabemos ao certo o que causou esse quase colapso do ser humano. Mas desde então, nossa espécie se dispersou pelo mundo, aumentou suas populações, criou tecnologias espetaculares, construiu cidades de pedra, aço e cal, experimentou com as mais variadas formas de expressão artística e chegou ao limite da abstração ao se conectar com o sagrado de diversas maneiras.
Toda essa trajetória poderia ser identificada como bem sucedida, mas essa evolução também nos empurrou para a beira de outra ameaça existencial. Uma parcela bem pequena dos seres humanos ameaçam, por meio de suas práticas, a maior parte da humanidade, consumindo irresponsavelmente os recursos disponíveis no planeta para garantir um lucro repartido entre poucas pessoas. A crise que atravessamos é ambiental, mas também é fundamentalmente social e decorrente da exploração dos mais pobres pelos mais ricos.
A crise climática e ambiental é um evento singular em sua natureza e dimensão. É um evento que só pode ser parado com uma mudança cultural, econômica e ambiental em níveis extremamente radicais. Uma obviedade que poucos têm coragem de dizer. Apenas a construção de uma sociedade socialmente justa, ambientalmente integrada e solidária será capaz de suplantar o tenebroso futuro que aguarda os seres humanos. Não há caminho para superar a ameaça iminente de desaparecimento da humanidade se não for pelo radicalismo estrutural do Ecossocialismo.
É essa a contribuição que o livro organizado por Suelma Ribeiro Silva e Arlindo Rodrigues dá a toda a esquerda brasileira. Uma formação teórica fundamental para estruturar uma ação política que efetivamente pode conduzir a humanidade para superação da crise ambiental que coloca em risco a existência de bilhões de pessoas. E que principalmente, afeta a classe trabalhadora e os marginalizados da sociedade.
Trazer as utopias e as propostas concretas que estruturam a teoria e práxis do Ecossocialismo é essencial. É essencial no sentido estrito da palavra. É essencial porque precisa compor o pensamento da esquerda brasileira para que esta perceba a necessidade de substituir os modelos vigentes da práxis política do campo progressista por uma práxis que efetivamente contribua com a superação daquilo que já é amplamente reconhecido como o maior desafio existencial imposto à humanidade. É essencial porque ele preenche uma lacuna no centro do debate promovido pela Fundação Perseu Abramo. Faltava essa contribuição de uma Fundação que trouxesse tantos elementos teóricos expressivos para a formação política das nossas lideranças de esquerda. Gilney Viana destaca que um dos desafios da primeira metade do século 21 é a elaboração da síntese teórica capaz de interpretar o mundo em que vivemos para propor soluções efetivas de mudança. Na sua contribuição, o autor traz os elementos necessários para essa construção de forma didática e objetiva.
A essencialidade do livro editado pela FPA também reside na urgência do momento em que vivemos. O argumento central do capítulo construído por Luiz Marques é contundente: o decênio em que vivemos é decisivo. Não temos mais tempo para implantar ações moderadas acreditando que elas possam concretizar o enfrentamento da crise climática. A retrospectiva histórica pelo autor apresentada ajuda a situar o leitor para todo o conteúdo que encontrará no livro.
O estado atual das sociedades em que vivemos é mais grave do que era em momentos anteriores. A degradação dos ecossistemas se aprofundou levando à desestruturação dos processos e ciclos naturais, e a maioria dessa desestruturação se deu de maneira irreversível. Atualmente, nossas possibilidade de escolhas do futuro são mais limitadas. O futuro que construiremos será muito pior do que a nossa situação atual se forem mantidas as tendências de medidas políticas moderadas ou de busca por balas de prata tecnológicas com soluções imediatas e superficiais. Nesse contexto, também se incluem as políticas contraditórias de governos de esquerda cujos discursos apontam para uma transição energética, mas que as práticas implicam em investimentos massivos em políticas de extrativismo, incluindo combustíveis fósseis, como destaca Sabrina Fernandes em seu capítulo.
A solução para a crise climática passa por uma ruptura radical do atual sistema de produção e da forma de distribuição de riqueza. A radicalidade tem que ser encaminhada de maneira que o que sobrou dos ecossistemas seja preservado, o que foi degradado seja restaurado e que a humanidade usufrua melhor das tecnologias de automação para distribuir melhor a riqueza gerada e garantir melhor qualidade de vida para a classe trabalhadora. Só uma resposta radical é efetiva contra a crise ambiental e social que vivemos. E o tempo não está a nosso favor. Cada dia que perdemos nos empurra para um futuro cada vez pior do que o nosso presente.
Só o Ecossocialismo pode dar essa resposta: é o que defende Liszt Vieira em seu curto, mas objetivo e resolutivo capítulo. Liszt Vieira também traz uma importante contribuição teórica para o debate com profundas raízes práticas para as políticas. O autor introduz o conceito de três ecologias: a ecologia do meio ambiente, a ecologia das relações sociais e a ecologia das ideias. Apenas uma revolução política, social e cultural articulando essas três ecologias é capaz de superar a crise atual.
Outra contribuição teórica com implicações práticas profundas em políticas ambientais é apresentada por Suelma Ribeiro Silva e Maria Silva Brilhante. As autoras defendem tornar a natureza um sujeito de direitos. O conceito da natureza como sujeito de direitos cuja existência e capacidade de prosperar sejam respeitadas dentro do arcabouço jurídico de cidades e estados, pode levar a diversas políticas públicas de proteção e restauração dos recursos naturais. É uma compreensão mais ampla da coexistência humana com todos os seres vivos da terra que implica na ampliação de uma justiça ecológica para todos os entes que compõem os ecossistemas. Essa perspectiva mais do que teórica já se transformou em políticas dentro de constituições de estados e de leis orgânicas de muitas cidades brasileiras.
Do ponto de vista individual Michael Löwy apresenta um decálogo que responde à pergunta mais comum que os ecossocialistas escutam: o que fazer? E Gilney Viana acrescenta também em sua contribuição que a luta pela transição ecológica não pode ser dissociada da luta de classes e de todas as outras lutas políticas. O Ecossocialismo e os ecossocialistas precisam dialogar com os interesses imediatos da classe trabalhadora para tornar a revolução efetiva. E, como nos ensina Sabrina Fernandes na sua contribuição ao livro, essa disputa e diálogo é central para evitar que o capital se aproprie do debate e conduza falsos programas de transição ecossocialista como o Green New Deal.
O livro Ecossocialismo Brasileiro estaria perfeito por conta da lacuna que preenche e das contribuições teóricas e práticas que oferece, não fosse uma ausência essencial, principalmente num livro que se propôs a organizar teórica e historicamente o movimento ecossocialista do Brasil: faltou a referência histórica àquela que foi a primeira experiência da militância da esquerda brasileira com o Ecossocialismo: o Manifesto Ecossocialista publicado no 2º Encontro Nacional de Ecologistas do PT, de 1991. Essa experiência, que contou com políticos muito relevantes da esquerda e com amplo apoio nacional e internacional, ainda não foi valorizada adequadamente no bojo da história do pensamento ecossocialista brasileiro. E faltaram essa e outras referências políticas relevantes sobre o ecossocialismo, principalmente para apontar as falhas e aprimoramentos que as sucederam. Isso, entretanto, não faz do livro menor, visto o alto nível dos debates propostos pelos autores.
Retomando o argumento central da nossa análise sintética do livro Ecossocialismo Brasileiro, ele já é uma referência essencial para o debate político sobre a verdadeira forma de superação das crises que vivemos. E ter esse livro editado pela Fundação Perseu Abramo é um marco para a formação teórica e práxis política do Partido dos Trabalhadores e de toda a esquerda brasileira.
Agnes Franco é jornalista, Mestre em Globalização e Políticas Trabalhistas pela Universidade Global do Trabalho (Kassel Universität), doutoranda em Ciências Ambientais (IEE-PROCAM/USP), bolsista CAPES. Membro titular da Secretaria Nacional de Meio Ambiente do PT. Contato: [email protected]
Jefferson Rodrigues é servidor público da Prefeitura da Cidade do Recife, professor do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade da Universidade Federal Rural de Pernambuco, sindicalista e Secretário Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores de Pernambuco. Contato: [email protected]