É preciso olhar a realidade brasileira como uma mudança de época, inflexão histórica. A realidade deste primeiro quarto de século 21 mostra uma alteração profunda na trajetória do Brasil.
Mudança de época pode ser entendida como aceleração do tempo presente. Momento especial da história de uma determinada civilização ou dos povos. O Brasil percorreu poucos momentos de inflexão histórica. O que ocorre agora pode ser comparado com outros momentos, como a década 1880, quando o país, mercantilista, monarquista, com quase quatro séculos de escravidão, fez de certa maneira uma transição para a sociedade capitalista, estabelecendo uma nova estrutura de classes sociais.
Outro momento que caracteriza inflexão histórica foi a revolução de 1930. Para muitos historiadores, não se trataria de uma revolução. Mas Getúlio abandonou o padrão libra-ouro, equivalente ao que seria Lula abandonar hoje o padrão dólar. Foi feita na época uma auditoria da dívida. Os ganhos dos cafeicultores foram impactados, ocorrendo também uma centralização da moeda, quando hoje impera no Brasil o livre fluxo de capitais.
Começa a ser rompido o pacto agrário que prevaleceu até os anos 1920. O Brasil era ainda um país muito primitivo. As mulheres, por exemplo, não podiam ter a presença que é possível hoje neste encontro nosso. As mulheres viviam em média 34 anos, chegavam a ter de 10 a 15 filhos. Qual a possibilidade de a mulher ter uma participação ativa numa sociedade machista como era o Brasil?
A transformação que se inicia em 1930 corresponde a um novo projeto urbano-industrial. O programa liderado por Osvaldo Aranha dizia claramente que o Brasil era um país capitalista e, portanto, tem de haver lucro. Mas para ser legitimado, o lucro tem de pagar imposto. E ainda hoje o lucro não paga imposto no Brasil. Esse programa de 1930 afirmava que a propriedade privada é a base do capitalismo, mas já colocava a necessidade de que ela exercesse função social. E ainda hoje possuímos a segunda maior concentração de terras no mundo, só perdendo para o Paraguai.
Em momentos históricos como esses mencionados, as gerações passadas disputaram numa correlação de forças que resultou no Brasil que temos hoje. Mas foram mudanças de época. E agora, quais os desafios para o Brasil e para o Partido dos Trabalhadores no segundo quarto do século 21?
O primeiro é que estamos vivendo a maior transformação dos últimos 500 anos, com deslocamento do centro do mundo do Ocidente para o Oriente. Hoje, 70% do dinamismo econômico mundial vem dos países chamados Sul Global. O Brasil não pode ter mais como referência a Europa, como ocorreu no passado. Temos de olhar para onde está o dinamismo hoje. Até agora, nosso país olhou o Atlântico como sua referência de comércio. Mas, desde 2009, a principal referência já é o Pacífico. Isso significa o quê? Em primeiro lugar, reconhecer que nos últimos 500 anos a população se concentrou numa faixa de 200 quilômetros ao longo do Atlântico, onde vivem 70% dos brasileiros. Mas isso vem mudando.
Está em curso a integração sul-americana, com um conjunto enorme de iniciativas no âmbito de ferrovias, rodovias e hidrovias que nos conectam com o Pacífico. Isso está mudando o eixo do Brasil. Nasce uma nova geoeconomia. No passado, as regiões mais dinâmicas estavam na faixa litorânea, centro de nossa indústria, locais dos principais empregos. Hoje, essas regiões mostram um crescimento do PIB em torno de 2%, enquanto algumas regiões crescem 6% ou 7%, quase uma China. É o caso de regiões no interior de São Paulo, interior do Paraná, um pouco de Santa Catarina, subindo pelo Centro-Oeste até o Norte. São regiões cada vez mais conectadas com o exterior.
Na faixa litorânea que abriga 70% da população registra-se baixo dinamismo, concentração de pessoas desempregadas, moradores de rua, remuneração vinculada a atividades de baixa produtividade, amplo crescimento do fanatismo religioso e do bandidismo.
É um outro Brasil que vem se configurando. E que propostas temos para responder a essa mudança? Vamos reproduzir o padrão de urbanização que aconteceu até agora nas regiões litorâneas, nessas novas regiões mais dinâmicas? Vamos manter nossa visão eurocêntrica? A Inglaterra teve papel importante na economia brasileira, depois de Portugal. Desde 1920, os Estados Unidos foram se tornando o principal parceiro comercial. Mas, desde 2009, a China tornou-se nosso principal parceiro comercial. E não se trata apenas do comércio com a China. Há também crescimento do investimento chinês aqui.
O que temos a dizer, então, diante dessa mudança de centro dinâmico do Ocidente para o Oriente? Qual é a posição do Brasil em relação a isso?
Outro ponto importante que cabe registrar é o novo regime demográfico do país. O Brasil sempre foi um país de forte crescimento populacional. No século 19, a população foi multiplicada por cinco vezes. No século 20, multiplicada por dez. Mas as projeções indicam que a partir de 2040 a população deve estagnar e apresentar uma trajetória de queda, chegando no ano 2100 a uma população menor que a do ano 2000.
Isso significa um processo de redução drástica no número de crianças. Há uma queda acentuada na taxa de fecundidade. As mulheres estão tendo menos filhos. É uma questão ideológica, econômica, ausência de política pública? Estamos satisfeitos em ter uma população de 234 milhões de habitantes, num país que poderia ter 400 milhões pela sua dimensão continental? A população acima de 60 anos já é maior do que a população juvenil. A expectativa média de vida já é 76 anos e deve subir.
Essa alteração demográfica nos faz pensar a questão educacional. Que tipo de formação se deve adotar, uma vez que o número de crianças será cada vez menor? Teremos mais pessoas com mais idade. Devemos pensar em escola para toda a vida, por exemplo? Prefeitos do Brasil, sem esse debate nacional, estão optando por fechar escolas. Somos o país que mais fecha escolas no mundo. Foram 50.000 escolas fechadas, sobretudo na zona rural. Diante da pressão fiscal, fecha escolas, concentra em escolas maiores, reproduz o modelo educacional de sempre. Seria o caso de planejar escolas menores, com ensino integral?
A terceira mudança fundamental em curso é a entrada do Antropoceno, o novo regime climático. Os relatórios demonstram que a temperatura continua subindo no planeta e já chegamos a um ponto sem retorno, convivendo com uma temperatura maior, degelo nas calotas polares e elevação do nível do mar. Temos no Brasil um estudo sobre as principais cidades que podem desaparecer, pelo menos parcialmente? Que parte do Recife vai sobreviver e qual parte de Copacabana vai se manter? Como olhar o Brasil a partir das diferenças entre seus biomas?
O quarto e último ponto é a transição da chamada era industrial para uma era digital, a transformação digital das nossas vidas, do nosso modo de pensar, de trabalhar, de lazer e de se relacionar. Não estamos falando apenas de uma mudança tecnológica, mas de novos aspectos que envolvem a condição da presença e das conexões ou hiper conexões.
Essa nova realidade está sendo dominada cada vez mais por grandes monopólios externos. O Brasil, infelizmente, não conta com soberania de dados. O Brasil precisa ter soberania porque não é admissível que uma grande empresa, fora do Brasil, tenha mais dados sobre nós do que o IBGE; e que o presidente dessa empresa tenha mais informações que nosso presidente da República. Tudo isso interfere em nosso modo de pensar. A concentração dessas Big Techs está abrindo uma fase que pode se assemelhar ao que ocorreu na Idade Média, com o obscurantismo que permaneceu entre os séculos V e XV, quando os monastérios católicos armazenavam toda informação e o restante da população era completamente analfabeta, como mostra o filme ou o livro “O nome da rosa”.
Outro problema sério é o não letramento digital. Vamos ao buscador atrás de uma informação e a resposta que obtenho já vem em sintonia com o meu perfil ali armazenado. Se a Monica Valente e eu fizermos a mesma pergunta, podem vir respostas diferentes.
Estamos entrando em um novo tipo de subdesenvolvimento. Oferecemos nossos dados brutos e essas grandes empresas operam, dilapidam esses dados e nos devolvem na forma de um modelo de negócios que decide sobre nossas vidas. A questão dramática da digitalização é fundamental porque ela traz desafios e riscos, mas também oportunidades. A forma como o conhecimento é repassado, hoje, pode resultar num monopólio mundial das informações. Isso é gravíssimo do ponto de vista da democracia, da liberdade de escolha, dos valores fundamentais.
Poucas gerações, como a nossa, viveram uma mudança de época tão nítida, com os desafios e as oportunidades de decidir sobre nosso futuro, disputando nosso futuro. Estamos aqui apresentando ideias. As ideias são como o leme de um barco. Só com o leme, não funciona. O barco precisa ter velas e essas velas são um movimento para transformar a realidade. O PT é o partido que tem as velas para fazer mover a grande transformação do Brasil.
Marcio Pochmann Atual presidente do IBGE, foi também presidente do IPEA, da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Lula. Formado em Economia pela UFRS, fez pós-graduação em Ciência Política em Brasília e concluiu o Doutorado em Economia em 1993, na Unicamp, onde foi professor titular até 2020. Foi secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade durante a gestão Marta Suplicy