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A disputa pelos passados é atitude vital para a democracia. Sem passado histórico conhecido e publicizado amplamente não há garantia de democracia.

 

Em termos em que os descompassos entre políticas realizadas e percepções da população sobre elas se torna uma espécie de enigma a ser decifrado, parece interessante refletir a política em suas temporalidades, para poder entender melhor os desafios atuais da vida política em meio às disputas entre projetos de mundos unipolares ou multipolares e de autoritarismos e democracias, inclusive com a atual destruição avassaladora das regras internacionais de convivência, bem ou mal, acordadas nos últimos tempos.

O tempo senhor dos destinos, como cantou Caetano Veloso, perpassa as políticas. Elas dialogam com temporalidades, ganhando configurações distintas e singulares. Fora das conexões com o tempo, as políticas se desmancham sem ar. Temporalidades e políticas mantém enlaces simbióticos. Tais articulações, nada simples, configuram jogos em disputas, transformando agentes e contextos.

As políticas se atiçam em tais conexões com as temporalidades. Elas perpassam passados, presentes e futuros. Todos eles são transformados pela atuação de políticas. Só a política ordinária, presa ao dia a dia e ferida de pragmatismo, fica restrita ao presente, como se ela não se alimentasse e alimentasse o passado ou como se ela não produzisse futuros e fosse produzido por eles. A grande política, para aludir a um termo de Antonio Gramsci, transcende o presente e dialoga com o passado e o futuro. Nada no tempo lhe é estranho. O tempo conforma a grandeza das políticas.

Em visita ao passado, as políticas se vestem de memórias com sabor e com saber de raízes. Elas tecem fios que alicerçam os fundamentos históricos das políticas. Memórias demandam políticas, que produzem memórias. Nada de políticas sem memórias. Nada de memórias sem políticas. Os exemplos de disputas em torno de passados afloram. O golpe civil-militar de 1964 é exemplar nessa perspectiva. Seus defensores negam a todo instante a ruptura democrática e dizem o golpe como se fosse, paradoxalmente, realizado em nome da “democracia”. A disputa pelos passados é atitude vital para a democracia. Sem passado histórico conhecido e publicizado amplamente não há garantia de democracia.

Entretanto, armadilhas há e podem surpreender, além de subverter traçados políticos. Bloqueios de memória sacodem e vitimizam políticas. Silêncios calam memórias, que assim correm riscos de desaparecimento. As memórias podem ser subtraídas por manipulações políticas, muitas delas violentas, que esquecem e fazem desaparecer não corpos e crimes, mas também as memórias. Elas se transmutam em memórias refeitas por construtores-vendedores de memórias. O escritor angolano José Eduardo Agualusa já identificou e fantasiou criadores de memórias em livro. O filme brasileiro, Vendedor de passados, de Lula Buarque de Hollanda, de 2013, traduz para o cinema a invenção de Agualusa. A produção e venda de memórias como mercadorias faz parte de intensas disputas políticas de memórias.

O passado não passou, como bem advertiu Walter Benjamin, ele está vivo nas políticas de um presente, disputado e refeito por interesses conflitivos, que não querem calar nos tempos presentes. Passados se reconstroem politicamente. Políticas se redefinem com alicerce em seu passado. Dinâmica viva e tensa marcam políticas e passados. Ela emerge como fundamental para a democracia. Nada de negar o genocídio indígena, a escravidão negra, a descomunal desigualdade, o autoritarismo persistente e os golpes e tentativas reiteradas de rupturas democráticas. Tal memória faz parte indelével do tempo presente, com suas contradições, sem anistia em favor da democracia.

O presente não é apenas fabulação e disputas de passados. Ele se configura como campo de forças enredado em muitas disputas vivas em andamento. O presente sem fim aparece e parece sempre em disputa, correlações de forças e tensões. Nele, as políticas, em horizonte democrático, devem estar em fina sintonia com as demandas e questões de seu tempo ou simplesmente estão fora de sua temporalidade, deslocadas da história.

As demandas e questões de cada tempo histórico tecem complexidades, também sempre em disputa. Políticas, sem sintonia com os climas enraizados de seus contextos, tendem a colapsar, dado seu descompasso temporal. Sua desatualização acelerada apaga a efetividade das políticas no presente e na história. A (e)vidência da política está em xeque-mate. O clima, por mais fluido e impalpável que possa parecer, sintoniza políticas e tempos. Ele não pode ser desconsiderado nas análises de conjuntura. Ela faz com que atuações ganhem ou percam significados em dialética entre acontecimentos e contextos.

Futuros são temporalidades escorregadias. Como imaginações, eles, furtivos, exigem exercícios e experimentos de criação e inovação, vitais para as políticas, que reivindicam memórias do existente e invenções do inexistente. A dupla face das políticas se revela em plenitude para alcançar sua dinâmica. Políticas aqui são maquinações, imaginação e invenção de futuros. Mas a potência imaginadora não é livre. Ela está prisioneira da existência de climas propícios para possibilitar horizontes para abertura de futuros.

Políticas e futuros demandam políticas como memória e como invenção. Políticas como imaginação e invenção de futuros. Mas, como foi dito, a potência imaginadora está prisioneira da existência de climas para viabilizar a abertura de futuros. Sem isso, a capacidade das políticas de imaginar se esvai e em lugar de futuros possíveis restam apenas desespero, desesperança e distopias. A ausência de esperança política em futuros possíveis marca o Brasil de hoje. Ela funciona como aliado do conformismo e do não envolvimento em lutas políticas por futuros.

As políticas exigem tempo para sua maturação e sua transcendência do limitado mundo cotidiano, ordinário, que fugaz e pesado rebaixa a imaginação e aprisiona a esperança. Sem imaginação e esperança, as políticas tendem ao pragmatismo das pequenas vitórias, quando muito, esquecendo que seu dever maior é restituir a democracia como poder do povo e para o povo. Só com uma grande política, que dialogue com passado, presente e futuro, a política pode se tornar projeto de efetiva transformação social, em um mundo jogado na crise de desmonte no sistema político e econômico mundial.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)