Estante

A última parada do Arizona é um filme norte-americano com roteiro e direção de Francis Galluppi, lançado em 2023 e acessível no streaming da Netflix. O cenário é um posto de combustível, com pousada e lanchonete no meio do deserto. O negro dono do pequeno hotel não tem carro. “Não preciso sair. Aqui tenho tudo”. O rádio anuncia o assalto a um banco e descreve o automóvel dos meliantes, em fuga. O calor é insuportável. A garçonete não consegue avisar o marido - o xerife do condado que não arrumou ainda o ar-condicionado - de que os suspeitos estão agora no seu salão.

O ano é 1970. O presidente dos Estados Unidos é Richard Nixon. Os assaltantes estão sem gasolina, e o reservatório da estação comercial está vazio. Com a mesma frustração, reúnem-se um vendedor de facas de cozinha, um casal de idosos e outro de jovens. Em silêncio, à espera do líquido precioso. O caminhão que faria a reposição teve um grave acidente na estrada, e não vai chegar até o local.

Um auxiliar do xerife passa e pega o café. Como não estava atento ao noticiário não reconhece o veículo usado no roubo da agência bancária, cujo modelo e cor foram divulgados. Parte, cantando. A alienação oficial paira sobre a realidade, abandonada ao acaso e às circunstâncias. De novo, a mulher é impedida de se comunicar com o marido, o caipira arrogante que usa a estrela no peito.

Após algum tempo, chega um indígena proprietário de rancho nas proximidades com a camionete de tanque cheio, o que desperta a ambição dos assaltantes que querem se afastar da região. Há uma discussão com vias de fato. Cada subgrupo possui uma arma de fogo. Ao tiroteio, sobrevive apenas um. O bom moço que se apropria dos 700 mil dólares no porta-malas dos foragidos. Um novo casal chega igualmente sem gasolina, toma pé da situação e tenta negociar uma parcela da quantia, sem sucesso. Os cadáveres se empilham. O vendedor de facas prepara-se para fugir com o dinheiro.

Quase ao final, no inferno que torna as personagens soturnas e solitárias, embora acompanhadas, a bandeira dos Estados Unidos tremula no alto sobre a paisagem inóspita. Os leitores do filósofo político Thomas Hobbes identificam no enredo o “estado de natureza”, descrito no Leviatã (1651).

As relações estabelecidas de cobiça, inveja, mentira, violência, maldade correspondem ao período anterior ao Estado social, onde os indivíduos em troca da liberdade buscavam conquistar a proteção estatal para a segurança pessoal, sua vida e seus bens. Porém, mantendo os defeitos da época em que eram livres e não estavam obrigados pela moral (não havia Deus) ou pelas leis (não havia o Estado), e davam vazão aos piores apetites sem respeitar qualquer regulamentação. Hobbes retrata o homem nos idos do estado de natureza inspirado no comportamento do “homem burguês”, que não superou ao longo dos séculos antigas pulsões egoístas. Ao revés, radicalizou-as na extrema-direita.

O símbolo do poder e da riqueza nos anos em que se situa o filme, mais do que a mercadoria ou o trabalho, é o dinheiro caracterizado pelo rentismo financeiro neoliberal e pela financeirização das esferas da existência em sociedade e no próprio Estado. É em torno do dinheiro que as personagens ensaiam um posicionamento no mundo. A bebê órfã é a imagem da esperança contra a prostração.

Como aponta Walter Benjamin, a função da crítica de arte é: (a) “não julgamento, mas acabamento, complemento e sistematização da obra”; (b) o crítico recebe o status de um semicriador. De modo que o crítico e o artista participam ambos do processo criativo, modificando-se na história. A obra de arte intervém em nossa consciência que, transformada pela práxis, desafia o espírito do tempo.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul