A chegada da missão Tupamaros foi agradável.
Daquele jantar, Renato Afonso guarda ótimas lembranças.
E tristezas.
Profundas.
Hoje, naquela mesa, está faltando ele.
A ausência do irmão, Marco Antônio, a quem ele rende tributos essenciais quanto à participação revolucionária.
De vida legal, trabalhando numa multinacional, jamais deixou de cumprir tarefas do partido, muitas delas bastante arriscadas, entre as quais a fuga de Theodomiro e a própria Operação Tupamaros.
Pau para toda obra.
Naquela mesa, está faltando ele.
Naquela mesa está faltando outro: Natur de Assis Filho, Naturzinho.
Nosso companheiro de prisão na Galeria F, Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.
Os dois morreram bestamente, não em ações revolucionárias, e não cabe desenvolver isso aqui.
Dois companheiros de grande valor.
E da maior estima de Renato Afonso.
Um, por irmão e companheiro.
Outro, companheiro e amigo muito querido.
Naturzinho, conheci de perto.
Amigo de primeira linha.
Naquela mesa está faltando ele.
Regina Afonso, viva e atuante, querida companheira, ex-mulher dele.
Viva e forte.
Atuante até hoje.
Todos, naquele jantar.
Demorado e agradável.
A participação honrosa, de Eduardo Galeano.
Abrilhantou aquele momento.
E do capa-preta Tupamaro, Júlio.
Já dissemos: nada de nome completo.
Nem se sabe fosse aquele o nome de batismo dele.
O jantar ficou para sempre na memória de Renato Afonso.
Por todas as razões.
Pelo significado revolucionário.
Pelas decorrências dele.
E até pela tristeza, provocada pelas ausências, pelas perdas.
Definir caminhos
Renato reflete.
Depois da festa, porque aquele jantar foi uma festa, o trabalho, mais do que uma festa de Babete.
Pensava em Theodomiro, o companheiro ainda no exílio parisiense.
Certamente feliz por saber da operação em andamento.
Fora ele a acatar a sugestão dos companheiros tupamaros, exilados.
Ousadia dele.
Internacionalismo proletário.
E agora via o barco andar.
Renato Afonso pensava: tratava-se agora de planejar como ajudar os Tupamaros a se reerguerem no Uruguai.
Fazer um planejamento de curto, médio e longo prazo voltado àquela empreitada.
Ajoelhou, tem de rezar.
Muito trabalho pela frente.
Segurança, alojamento e finanças no centro das preocupações.
Na discussão daqueles dias, no decurso do planejamento, uma questão essencial veio à mesa: quanto das políticas internas de cada organização poderia ser do conhecimento da outra?
Tupamaros e PCBR sabiam: a reconstrução da organização uruguaia com a colaboração do PCBR era apenas uma dentre as diversas tarefas políticas dos dois partidos.
Ambas as organizações estavam à frente de várias outras empreitadas e por isso era importante quais podiam ser compartilhadas, respeitadas as condições de segurança.
O quesito segurança, mais fácil de ser equacionado.
A maior parte das organizações oriundas da experiência da resistência armada desenvolveram critérios mais ou menos comuns.
Daí, a discussão fluiu com bastante facilidade.
Imprimir dólares
Quanto às finanças, buraco mais embaixo.
Problema mais complexo.
Os tupamaros não queriam escancarar as fontes de onde provinham os recursos deles.
Justo não quisessem.
O PCBR, além de preservar também as eventuais fontes de financiamento, não vivia situação confortável na área financeira.
Não dispunha de meios para investir muito na empreitada da reconstrução da organização uruguaia.
Impasse.
Sem dinheiro suficiente, não haveria como o BR ajudar os Tupamaros.
Não havia má vontade por parte do BR.
Era a realidade do partido.
Os Tupamaros mexem uma pedra de modo a sair do impasse.
Revelam providencial fonte de recursos.
Dela, então, se valeriam para contribuir com a movimentação do BR.
Haviam trazido da Europa matrizes de dólares.
Com tais matrizes, produziam dinheiro em gráficas clandestinas na Europa, com o qual se mantinham no continente.
Cabia ao BR tão somente encontrar a gráfica capaz de imprimir aquelas tão providenciais matrizes.
E o dinheiro jorraria.
O BR, feliz.
Dinheiro fácil assim, ainda não tinha visto.
Renato Afonso sabia muito bem a quem recorrer.
Há revolucionários multifuncionais e simultaneamente cuidadosos no desenvolvimento da militância.
Contidos, sabendo-se manter na legalidade e desempenhar tarefas de grande risco e importância.
Assim, o caso de Emanuel Macedo.
Eu próprio fui beneficiado pela generosidade dele, logo ao sair da prisão.
Pelas mãos dele, cheguei à Tribuna da Bahia e me tornei jornalista.
Dono de uma pequena gráfica, a Emita, prestava relevantes serviços ao BR e a outras organizações revolucionárias.
Renato Afonso acreditou estar resolvido o problema: a Emita imprimiria os dólares.
Fácil.
Ledo engano.
Matrizes chegaram à oficina, e constatou-se uma incompatibilidade técnica, a inviabilizar a confecção dos dólares.
_ Tínhamos um tesouro guardado num cofre. Nos faltava o segredo da fechadura.
Voltava-se à estaca zero.
O impasse continuava.
Tinham de trocar o pneu do carro com o carro andando.
Finanças transformaram-se numa pedra no sapato das duas organizações.
Dinheiro teve de ser resolvido na mais absoluta improvisação.
Aos trancos e barrancos, foram tocando a tarefa, com toda a escassez financeira.
Clandestinidade
Júlio, o capa-preta da operação no Brasil, mantinha contato permanente com Montevidéu.
Os companheiros da capital uruguaia o informava das condições de absorção dos companheiros chegados do exterior ao Brasil, prontos para seguir para Montevidéu, e ajudar na reconstrução dos Tupamaros.
Era o mesmo Júlio a manter contatos com os demais companheiros ainda no exterior, sobremaneira em Paris.
E os orientava quanto à oportunidade de viajar para o Brasil.
Daqui, saberiam, então, quando poderiam desembarcar no Uruguai.
A Bahia, sobretudo, e o Rio de Janeiro, também, funcionavam como entrepostos desse processo.
O PCBR jamais teve conhecimento dos caminhos utilizados pelos Tupamaros para a entrada deles no Brasil.
Segredo guardado a sete chaves.
Diferentemente, a saída dos militantes uruguaios para Montevidéu era proporcionada e monitorada pelo PCBR.
O acolhimento deles no Brasil, também, o alojamento, tudo isso da responsabilidade do PCBR, como não podia deixar de ser.
Renato Afonso se recorda de Natur de Assis Filho se virando nos trinta para garantir a hospedagem dos dois primeiros tupamaros a chegar à Bahia.
Marco Antônio, no Rio de Janeiro, também se desdobrava de modo a garantir bons alojamentos a outros tupamaros.
Às vezes, face às condições existentes no Uruguai, muitas vezes recomendando paciência, alguns dos tupamaros passavam largo tempo na Bahia ou no Rio de Janeiro.
Tudo muito delicado e cuidadoso.
Tinha de ser, numa conjuntura como aquela.
A questão das finanças, por exemplo, é pouco detalhada. Não caberia fazê-lo.
E nem hoje Renato Afonso o faz.
Algumas regras restritivas, próprias da clandestinidade, eram impostas pelo PCBR.
Se Natur de Assis Filho era o encarregado de providenciar alojamentos para novos militantes tupamaros chegados à Bahia, nenhum outro militante devia ter conhecimento.
Nesses casos, nem Renato Afonso era informado, apesar da condição de principal dirigente da operação.
Júlio, como se sabe, o responsável tupamaro pela operação no Brasil, ficou hospedado no apartamento do próprio Renato Afonso, no edifício San Marino, na Pituba.
Provisoriamente.
Depois, alugou-se um aparelho para ele, e neste caso, ninguém tinha conhecimento da localização, nem o próprio Renato Afonso.
A decisão de alugar esse outro local, parecia óbvia: ficar no apartamento de Renato Afonso era um grande risco.
Local frequentado por muitos militantes, muitos deles vinculados ao PCBR, mas também por outros tantos companheiros de organizações variadas da esquerda brasileira.
Aparência de legalidade
A partir dessa resolução, Júlio tendo saído do apartamento de Renato Afonso, os contatos entre os dois eram pré-fixados, num calendário a levar em conta as conveniências do PCBR e os avanços do trabalho comum.
Houve cuidados especiais.
Destinados a garantir aparência de legalidade aos militantes tupamaros.
A gráfica da Emanoel Macedo, sempre essencial.
Os militantes uruguaios tinham passaportes próprios.
Necessário complementá-los para reforçar uma aparente situação de normalidade.
Como se morassem em Salvador.
Ou ao menos aparentassem estar dispostos a permanecer na capital baiana.
Macedo, então, produziu carteirinhas de sócios do Esporte Clube Vitória, do Bahia, também.
Documento desse ou daquele hospital onde poderiam ser atendidos, mesmo sendo fictício.
Até convites para casamento e formaturas.
Tudo isso dava impressão de uma vida de cidadãos comuns.
Longe da realidade de revolucionários tupamaros.
Cenário de legalidade.
Júlio, rapidamente, aprendeu a se movimentar em Salvador.
Com uma desenvoltura maior do que se esperava.
Político jovem, mas já com muita experiência.
E disciplinado.
Disciplina, a clandestinidade ensinava.
Era a vida em jogo.
Renato Afonso se recorda das muitas reuniões com ele.
Havia a pauta obrigatória, reconstrução dos Tupamaros no Uruguai, as viagens, os cuidados, as providências da operação.
Mas, os dois debatiam outros temas.
Principalmente, o quadro latino-americano, as lutas revolucionárias do continente.
Em alguns momentos, até questões teóricas.
As duas organizações tinham visões diferentes quanto ao processo revolucionário, mas não deixavam de existir pontos de convergência.
E aí gastavam tempo também com a teoria.
Copa de 50
Por mais segurança e clandestinidade houvesse, a amizade ia acontecendo, e nem tudo era política.
Havia momentos de descontração.
Numa ocasião, depois de uma reunião, Renato Afonso ousou convidar Júlio para uma partida de futebol, um baba, na verdade, pelada, como chamada no sul do país.
Os olhos de Júlio brilharam.
Baba na praia de Piatã.
Baba internacional.
Adversários.
Renato Afonso, de um lado.
Júlio, de outro. Provável já tenha dito: Renato Afonso é excelente jogador, não sei se o mesmo na idade atual.
Fui testemunha das qualidades futebolísticas dele na Galeria F, da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, onde estivemos presos.
Craque, dos melhores.
Rivalizava com Renato da Silveira, Milton Mendes Filho e Itajacy.
Confiante no próprio taco, considerava fosse partida fácil.
Ele se surpreendeu com as qualidades de Júlio.
Excelente jogador.
Contribuiu decisivamente para derrotar o time de Renato Afonso.
Ao final do jogo, comentou com Júlio:
_ Agora compreendo por que perdemos a Copa de 50, no Maracanã.
Júlio mantinha um calendário regular de visitas ao Rio de Janeiro.
Naquele estado estavam radicados outros militantes tupamaros.
Para tais contatos, as providências eram tomadas por Marco Antônio.
Uma das iniciativas de Marco Antônio: alugou um pequeno apartamento, aparelho destinado a abrigar os militantes tupamaros chegados do exterior.
Vida que segue.
A Operação Tupamaros caminhava...
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros