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A batalha completou 60 anos em 2024. O fato é que “a Maria Antonia” e sua destruição vem-se tornando um núcleo temático que já conta com farta produção artística e ensaística

 

O episódio ganha finalmente um filme de ficção, intitulado A batalha da rua Maria Antonia. Documentário já havia, e excelente, feito por Renato Tapajós, o quase homônimo A batalha da Maria Antonia, imaginamos que meio século seja o tempo mínimo possível para deglutir o amargo evento e produzir arte a partir dele. A batalha completou 60 anos em 2024. O fato é que “a Maria Antonia” e sua destruição vem-se tornando um núcleo temático que já conta com farta produção artística e ensaística.

O Livro Branco

O primeiro a surgir após o ataque nos dias 2 e 3 de outubro de 1968 foi o Livro Branco, cuja trajetória dá uma boa ideia dos horrores que este país já viveu.

A Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP nomeou imediatamente uma comissão de professores para preparar a documentação, ouvindo testemunhas e colhendo depoimentos. Antonio Candido foi eleito relator – e de como se desincumbiu da tarefa é o que se verá a seguir.

A batalha da Maria Antonia travou-se nos dias 2 e 3 de outubro de 1968, e pouco mais de um mês depois, a 6 de novembro, o relatório foi redigido e apresentado. E a gravidade do que ocorrera assim o exigia: quantas vezes já se ouviu falar no Brasil de uma respeitável instituição de ensino superior ser bombardeada e incendiada? E dentro dela estavam alguns de nossos maiores intelectuais.

Entretanto, depois o registro se torna nebuloso. Tudo rápido e eficientíssimo até aí. Mas daí em diante… O relator entregou o livro pronto à Congregação que o encomendara. Tempos depois, como o livro não surgia, espalhou-se a notícia de que os originais tinham desaparecido. E ninguém sabia o que acontecera – tamanhas foram as convulsões à época.

Logo se deu a prisão dos 800 delegados do Brasil inteiro ao congresso da UNE em Ibiúna, assim decapitando o movimento estudantil que tinha sede na Maria Antonia. E também a invasão do Crusp, o conjunto residencial da USP, pelas forças armadas, prendendo e expulsando os moradores.

Coroando tudo sobreveio o AI-5 mutilando a Universidade, expulsando alguns de seus professores mais renomados. A própria Faculdade seria banida para os confins de São Paulo, onde era então a futura Cidade Universitária – um lamaçal sem calçamento, sem sarjetas, sem iluminação.

Felizmente o relator, que tinha vivo senso da História, guardara uma cópia, bem como todo o material de comprovação. Assim, exatamente 20 anos depois, quando a ditadura já se fora e a democracia se reinstalara, o livro seria finalmente publicado, em 1988.

Talvez tenha caído no vazio. O fato é que pouco se ouviu falar dele.

Nesse ínterim, quando a socióloga Irene Cardoso se dispôs a dedicar-se ao campo e aí realizar sua tese de doutorado, Antonio Candido repassou-lhe tudo: a cópia dos originais e mais o material de comprovação. Inclusive uma bomba de gás lacrimogêneo, que por muito tempo permaneceu à mão do professor, à vista de todos que iam à sua casa. Era item gravíssimo, evidência da intervenção do aparelho policial-militar na batalha da Maria Antonia, que absolutamente não foi o que as autoridades e a mídia rotularam como uma mera rixa de estudantes dos dois lados da rua, os esquerdistas da Maria Antonia e os direitistas do Mackenzie.

Irene Cardoso, ex-aluna de Ciências Sociais, tornou-se uma grande especialista: fez tese em Sociologia, intitulada A Universidade da Comunhão Paulista (1982), e escreveu bem depois Para uma crítica do presente (2001). Os dois livros são até hoje de importância ímpar, com perquirições aprofundadas sobre a ocupação e a batalha, sobre o papel da Universidade, sobre o pensamento progressista de que a Faculdade de Filosofia sempre foi um farol. Teve a coragem de falar em dor, em tragédia, em terror e interdição do passado, visando a história da Universidade, mas também a da Geração 68.

Um outro livro e também da maior importância tinha surgido em 1988: Maria Antonia, uma rua na contramão, reunindo 31 ensaios de vários autores organizado por Maria Cecília Loschiavo dos Santos, ex-aluna de Filosofia. Este último comemorou os vinte anos dos eventos.

Já o primeiro tratamento ficcional, imediato como o Livro Branco, veio numa peça de teatro. Consuelo de Castro, aluna de Ciências Sociais e ocupante da Maria Antonia, ainda autora inédita, assim iniciou sua brilhante carreira nos palcos e na televisão.

Prova de fogo foi sua peça de estreia - mas não estreou. O tema de Consuelo foi, justamente, o movimento estudantil e a ocupação da Faculdade de Filosofia da USP. O título da peça alude ao bombardeio e incêndio do prédio da rua Maria Antonia pelas forças da repressão. O entrecho se passa dentro da Faculdade e suas personagens são os alunos, com seus problemas, seus conflitos, sua solidariedade, vivendo uma utopia.

 O destino da peça de Consuelo de Castro é exemplar. Foi, é claro, imediatamente proibida pela censura, em 1969, quando já se ensaiava no Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correia. Apesar disso e enquanto continuava proibida, ganhou o prêmio de melhor peça de teatro do país, atribuído pelo Serviço Nacional de Teatro, um prêmio oficial portanto, no ano de 1974. Só seria liberada e encenada um quarto de século após os eventos, em 1993, estreando no próprio Grêmio da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antonia onde se passa o enredo. E foi no mínimo uma curiosa experiência, difícil de ser enquadrada nas teorias estéticas: uma peça encenada no próprio local em que se deram os acontecimentos que relata, assistida por uma plateia que fazia parte da trama – quem assina estas linhas, inclusive. Alguma coisa de Prova de fogo transparece no filme ora examinado.

Duas edições

Muitos anos depois a própria Faculdade de Filosofia, agora de Letras e Ciências Humanas, amputada de todas as Ciências, promoveu a reedição conjunta do Livro Branco e de Maria Antonia – uma rua na contramão.

Este último, como vimos, é uma compilação de textos do maior interesse, escritos por gente que refletiu tanto sobre sua participação quanto sobre o “fenômeno” Maria Antonia. Um deles, muitas vezes republicado, é o de Antonio Candido, “O mundo coberto de moços”.

Sempre lúcido, o professor percebeu que ocorrera uma mudança de paradigma mundo afora, segundo a qual os jovens em rebelião desejavam assumir a vanguarda do processo histórico. Sob o signo do antiautoritarismo em qualquer nível – família, trabalho, escola, saber –, foi nas trincheiras planetárias de 1968 que se contestou pela primeira vez o poder discricionário do homem-adulto-branco-heterossexual. Uma tal contestação só cresceria com o passar do tempo, a bandeira do Outro sendo empunhada pelos jovens, pelas mulheres, pelos não-brancos em geral (negros, asiáticos, árabes, indígenas) e pelos homossexuais.

Estas duas reedições constituem documentos incontornáveis da luta perpétua contra o obscurantismo no país, que nunca esmorece.

No cinema

No cinema destaca-se a contribuição de Renato Tapajós, ex-aluno de Ciências Sociais. Preso e torturado, escreveu Em câmara lenta (1977), denunciando a tortura. Por isso, seria preso outra vez e seu livro proibido. Ele viria a ser um destacado documentarista político e um dos principais cinegrafistas a filmar a ascensão dos metalúrgicos de São Bernardo e suas greves, que prenunciaram o fim da ditadura (Chão de fábrica e Linha de montagem, entre outros).

Sempre na luta, quase meio século mais tarde faria o documentário A batalha da Maria Antonia (2014). O diretor mostra as hostilidades entre os alunos da Maria Antonia e os do Mackenzie, foco do famigerado Comando de Caça aos Comunistas (CCC), do outro lado da rua. Os eventos foram num crescendo e resultaram na invasão, bombardeio e incêndio da Maria Antonia, com o beneplácito e o apoio das Forças Armadas. O que não faltou foi a aprovação oficial da reitoria do Mackenzie

Na ofensiva contra o ensino público que a ditadura encabeçou, é bom lembrar que a Maria Antonia era a sede da Campanha em Defesa do Ensino Público, pela qual nossos mais eminentes professores faziam turnês de conferências pelo país todo. A destacar na campanha o papel de liderança de Florestan Fernandes. Uma tal ofensiva incluiu o desmantelamento naquele mesmo ano em São Paulo (sem falar das catástrofes no restante do país) das melhores escolas secundárias, de concepção experimental e de vanguarda, que eram os Ginásios Vocacionais, sob o comando de Maria Nilde Mascelani, e o Colégio de Aplicação da USP. O Ginásio Vocacional do Brooklyn já conta com excelente documentário de um ex-aluno cineasta, Toni Venturi: Vocacional – Uma aventura humana (2011). Toni Venturi se destacou no cinema político, a que se devotou por toda a vida.

Mais livros

Representante da nova safra em ensaio é o livro de Adélia Bezerra de Menezes: Militância cultural: a Maria Antonia nos anos 60 (2014). Traz reminiscências e reflexões de quem viveu intensamente o período em que foi aluna de Letras, evocando filmes, canções, peças de teatro. E sobretudo a extraordinária experiência de dedicar-se à alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire numa vila operária em Osasco, parte da imensa rede que cobria todo o território brasileiro, em que estudantes de todo o país se consagraram a essa missão cívica.

Anos depois surgiu o livro organizado por Benjamin Abdala Jr., (que reaproveita o título de Antonio Candido), Um mundo coberto de jovens (2016). Temos ali uma coletânea de diferentes autores, que Benjamin, ex-aluno de Letras e militante, foi solicitando a um seleto plantel. Confirma o grande editor que sempre foi: o volume é da maior importância, porque foi planejado para suprir carências. Entre estas, ressaltam aquelas sobre o cinema ainda experimental do futuro cineasta Renato Tapajós, então cursando Ciências Sociais, escrita por ele mesmo. Ou sobre teatro estudantil, o Tusp. Outro texto fala da extraordinária experiência de morar no Crusp, ruminação que vem pela mão de um ex-aluno da História que, das profundezas do sertão, chegou à cidade após nove dias de pau-de-arara em caminhão. O Crusp seria expugnado pelas tropas, que o ocuparam e prenderam todos os moradores. Ou sobre o Cursinho do Grêmio, que marcou época.

E mais sobre alguns centros acadêmicos que ficavam sob o guarda-chuva da Maria Antonia. Entre eles fala-se de “os meninos da Glete”, como eram carinhosamente chamados os estudantes de Geologia, que ficavam num casarão na Alameda Glete, debaixo de uma figueira histórica, e que era um foco de radicalização. Agregam-se informes sobre o jornal Revisão e sobre a revista Amanhã, mídia alternativa estudantil de combate.

Variações em torno de um filme

Em 21 planos-sequência, numerados, que começam pelo 21 e vão até o 1, aproximando-se cronologicamente do dia da batalha, o filme vai montando e explicando seus antecedentes. Os 21 planos não relevam da gratuidade, mas organizam e dão estrutura ao filme. Dão boa ideia do ambiente confinado e de huis clos que vigorava então – ali era o mundo... E foi o mundo para muita gente, durante um interregno, numa suspensão do tempo em que o véu de Maia rasgou-se, deixando entrever um outro mundo possível.

Em meio a tanto material, seria impossível não ir construindo um filme alternativo. Da ordem da correção ao presente filme: ninguém falava “Centro Acadêmico”, falávamos “o Grêmio”. E à época nenhuma professora usava calças compridas, o que foi inevitável após a mudança para a Cidade Universitária, que era a selva.

Nesse filme alternativo apareceriam reminiscências que ficaram de fora, algumas delas imprescindíveis, como o episódio da Maçã Dourada, que foi fartamente coberto pelos jornais – portanto não se diga que passou despercebido ou que não está documentado. O que aconteceu: uma menina foi desmascarada como agente infiltrada da polícia. Andava até namorando Dirceu, líder inconteste, e era ocupante da Maria Antonia. Descoberta, foi julgada publicamente, na sede da escola, e na presença de seu pai, que foi convocado como testemunha da lisura do processo, e da mídia. Foi uma grande ocasião.

Outra menina ficava no hall da entrada, pedindo documento de identificação a todos, até os mais ilustres. Estava vestida de guerrilheira e portava boina de Guevara com estrelinha. Enquanto isso, saía do alto-falante a Internacional, tocando sem parar.

Em outro lance, apareceria uma figura incontornável, Oswaldo Moneo, concessionário do bar do Grêmio e da barbearia, grande amigo dos alunos, a quem fiava contas e de quem eles filavam cigarro de um em um. Seu bar era palco de reuniões políticas infindáveis e inflamadas. Antonio Candido não se esqueceu de pegar seu depoimento, é só verificar no Livro Branco. Oswaldo não diz, mas sabe-se que se arruinou fornecendo as garrafas vazias em seu depósito, e eram muitas, para a confecção de coquetéis molotov.

Numa das reuniões que mais pareciam comícios, esta no salão nobre, Antonio Candido ia falar e estava sendo apresentado por uma aluna da Filosofia, que, como instituíra a soberania popular, chamava a todos de “colega”. Ela olhou bem para ele, aquele distinto senhor de terno e gravata, que devolveu o olhar, e saiu-se com esta, entremeada por uma pausa e um gaguejo, “Apresento aqui o colega ... o colega professor!”

Um dos alunos recamava sua fala com a exclamação “pô!”, a tal ponto que se tornou conhecido como “o Pô”, à guisa de nome próprio. Quando mais tarde um cartunista (Henfil? Claudius? Angeli?) criou a personagem Pô de Souza, não nos causou estranheza.

Enquanto isso, no pátio interno grandes caldeirões borbulhavam, já que era preciso alimentar toda aquela gente. Voluntários cozinhavam, em geral mãe de ocupante. Era o caso da mãe da Consuelo de Castro. Sergio Buarque de Holanda, que estava sempre por lá, entrou na fila e, quando chegou sua vez, foi barrado. A mãe da Consuelo foi taxativa: “O senhor não é estudante!”. Ao que ele obtemperou: “Mas sou pai do Chico...” (naquele momento, ocupando a FAU). Ela retrucou: “E eu sou mãe da Consuelo!” e recusou o prato de comida ao grande homem.

A professora Maria Isaura Pereira de Queiroz destacou-se num episódio em que o diretor esbravejava que era responsabilidade dele proteger “o próprio do Estado” e que ia mandar fechar a Faculdade assim que a passeata saísse. Ora, se isso acontecesse, aquela multidão não teria onde se abrigar e ficaria à mercê de ataques, inclusive da polícia. Um grupo de professores tentava demover o diretor. No impasse, Maria Isaura alto e bom som declarou que garantiria pessoalmente a incolumidade do edifício, puxou uma cadeira, colocou-a bem no umbral e sentou-se. Ali ficaria até horas depois, quando a passeata regressou, armada apenas com o guarda-chuva de cabo de madeira esculpido que ganhara da avó.

Encontram-se poucas menções às “bombas químicas”. De uma janela no andar superior do Mackenzie atiravam saquinhos plásticos cheios de ácido, que o laboratório de Química ia fornecendo. O alvo eram as pessoas em baixo. Quando acertavam, queimavam tudo, roupas e pele, que iam mudando de cor. Improvisou-se uma enfermaria no banheiro do térreo, que era amplo, e várias pessoas jaziam pelo piso enquanto outras as acudiam, cortando as roupas queimadas ou passando pomadas e cremes nas partes descobertas. Quando a bomba caía na cabeça, atingia os olhos, que perdiam a visão, esperava-se que apenas provisoriamente. Nas partes cobertas o ácido varava as roupas e queimava a pele por baixo.

Essas são algumas das reflexões que o filme evoca no espectador, sem prejuízo de seus muitos méritos, como atestam os prêmios que tem recebido.

A Maria Antonia na Polis

Já se viu como era internamente a presença viva das especialidades todas em convívio, o contágio de todos por todos, a não-compartimentação do saber. Segundo o professor de filosofia João Cruz Costa, aprendíamos mais nos corredores do que na sala de aula. Some-se a isso a imersão no caldinho cultural que era o centro de São Paulo, onde alunas e alunos saíam das aulas e iam a pé para as livrarias, bibliotecas, cinemas, teatros, óperas, concertos, museus, galerias de arte, exposições, bares e tudo mais que o centro oferecia com exclusividade. E teremos, entre os vasos comunicantes internos que o expunham a todos os saberes, de um lado, e a cultura da cidade, de outro, um aluno muito especial, que era um cidadão da polis.

 A cidade de São Paulo, nessa época, tinha um centro urbano onde tudo, mas absolutamente tudo, se passava: constituía uma polis [1].

No plano das artes, a década anterior, ou seja, a de 1950, viu iniciativas admiráveis como a Vera Cruz e o Teatro Brasileiro de Comédia. A primeira era uma companhia de cinema, com estúdios e ambição hollywoodianos, que por algum tempo produziu filmes da maior relevância, tirando o cinema brasileiro do aleatório e do amadorístico. O Teatro Brasileiro de Comédia, ou TBC, elevou a arte a um nível de profissionalismo e de ampliação de repertório, que assentaria as bases do teatro moderno em nossas terras.

Tudo convergia para um polo onde ficavam a Faculdade de Filosofia, a Faculdade de Arquitetura e a Faculdade de Economia, estas da USP, bem como a Escola de Sociologia e Política, mais o sistema educacional secundário e universitário do Mackenzie, acrescido pelo Colégio Rio Branco e pela Escola Normal Caetano de Campos. Nas adjacências, livrarias sofisticadas como a Pioneira, a Duas Cidades, a Jaraguá, a Partenon, a Francesa. O conjunto formava um complexo de urbanismo metropolitano. Só depois de 1968 essa harmonia seria detonada, dispersando seus cacos pelo resto da cidade, quando não os aniquilando. A ditadura não permitiria que os tumultos estudantis daquele ano se repetissem e tratou de transferir as escolas para longe, em velha tática empregada também em outras latitudes. Quando fui dar um curso na Universidade de Paris VIII logo depois, achei esquisito que esta se chamasse “Vincennes à St-Denis”, dado que Vincennes e St.-Denis são dois bairros muito afastados um do outro, Vincennes a leste e St.-Denis na periferia norte. Então me explicaram que, em seguida aos famosos motins e ocupações de maio de 68, as autoridades tinham fechado Vincennes, onde pontificava Michel Foucault, ativíssimo em 68 e contumaz na Maria Antonia, onde tinha dado o curso que se tornaria Les mots et les choses (As palavras e as coisas)[2]. Vincennes era um dos três focos da rebelião, juntamente com a Sorbonne e Nanterre, e por isso fora transferido para uma nova escola em St.-Denis. E meus colegas franceses acrescentaram: “Estamos aqui de castigo”... Exatamente o que fizeram conosco. E a UFRJ, a maior universidade do Rio de Janeiro, foi submetida ao mesmo processo, que a arrancou do centro e a enxertou na Ilha do Fundão (le bien nommé).

Ninguém tinha pensado que a alma da polis eram os estudantes. Retirados estes, a partir dessa época São Paulo ficou policêntrica – com pequenos centros parciais distribuídos pelos bairros – e sem centro. O centro propriamente dito entrou em derrocada, esvaziou-se de seus habitantes e se tornou marginal, destino comum à inner city nas Américas. Após um tempo de abandono, ainda recalcitra ante os esforços para revitalizá-lo, em toda a imponência de sua arquitetura.

A malha urbana da região era constituída por uma alta concentração cultural por metro quadrado. Ali se erguiam, e se erguem, o Teatro Municipal, o Teatro de Cultura Artística e a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, de visitação diária, sobretudo para os “adoradores da estátua” que se reuniam ao pé de A Leitura no saguão. Em não mais que uma dúzia de quarteirões ficavam ainda o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, afetuosamente chamado de Clubinho, a Biblioteca Infantil, o Teatro Leopoldo Fróis e a Aliança Francesa.

E, afora o Museu de Arte Moderna na 7 de abril, com seu bar e uma ativíssima Filmoteca, como então se chamava a futura Cinemateca, o centro oferecia uma constelação de majestosas salas de cinema, nenhuma com capacidade abaixo de mil assentos. Eram elas o Art Palácio, com mais de 3 mil, construído por um reputado arquiteto da época, Rino Lévi; e o Marabá, o Ipiranga, o Normandie, o República, o Metro, entre outros[3]. Uma sala de arte, o Cine Bijou, com programação sofisticada e requintada, ficava logo ali, na Praça Roosevelt. Uns anos depois, seria a vez do Cine Belas Artes, na Consolação esquina da Avenida Paulista, que tinha a vantagem adicional de ficar defronte ao bar Riviera[4], de frequentação obrigatória pela turma da Maria Antonia. Este bar era dominado por uma figura inesquecível, o garçom Juvenal, que tomava conta de todo mundo (dizia: “Não entra agora que ela está aí com outro...”), recebia correspondência, avisava se havia suspeitos de espionar para a ditadura etc. Acabaria por se tornar protagonista de história em quadrinhos, pela pena do desenhista Angeli, na série da tirinha “Rê Bordosa”, sempre como um inestimável garçom e com seu próprio nome. A protagonista Rê Bordosa foi capa do primeiro número da revista desse cartunista, Chiclete com Banana, que vendeu cem mil exemplares. Angeli e Laerte também eram fregueses do Riviera, é claro, tal como os irmãos Caruso, todos eles humoristas políticos da linha de frente na resistência à ditadura[5] .

Digno de menção é o amplo movimento de reparação, que agora se espraia pelo país todo, de diplomar os alunos mortos pela ditadura militar. A mais atingida de todo o país foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, contando quinze baixas de alunos assassinados, com ênfase no curso de Ciências Socias, origem de tantas figuras ilustres nas artes, nas letras, nas ciências e na política. Ao todo a USP conta 39 mortos em todas as Faculdades, incluindo seis professores e dois funcionários. A fonte é o Relatório da Comissão da Verdade (em dez volumes), preparado ao longo de dez anos pelos historiadores da casa, sendo que nossa Faculdade de Filosofia, tal a repressão que se encarniçou sobre ela, recebeu um volume inteiro, o de número 7[6]. Pois bem: esta escola acaba de atribuir diplomas de conclusão de curso a todos os seus alunos assassinados, argumentando que foi o assassinato que interrompeu suas carreiras. O movimento está se alastrando a outras faculdades também. E está sendo cogitada a concessão do título de doutor honoris causa àqueles que já se tinham formado e eram professores.

Hoje, à guisa de reparação simbólica, uma placa votiva consagra os que tombaram em defesa da democracia, logo na entrada do prédio da Maria Antonia 294 resgatado.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP. Foi Professora Visitante nas Universidades de Austin, Iowa City, Columbia, Paris VIII, Freie Universität Berlin, Poitiers, Colônia, École Normale Supérieure, Oxford, Berlin 2. Tem 40 livros publicados, sobre Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, crítica da literatura e da cultura. Colaboradora da revista Teoria e Debate.

 

[1] Marilena Chauí, “Um lugar chamado Maria Antonia”, in Maria Antonia: uma rua na contramão, Maria Cecília Loschiavo dos Santso (Org.). São Paulo: Nobel, 1988.

[2] : Ricardo Parro e Anderson Lima da Silva, “Michel Foucault na Universidade de São Paulo”, Discurso, v. 47, n. 1 (2017.]

[3] Inimá Simões, Salas de cinema em São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria Estadual de Cultura, 1999.

[4] Fundado em 1949, subsistiu até 2006; permaneceria fechado até 2015, quando foi reaberto por velhos fãs e fregueses.

[5] No Rio de Janeiro imperava a turma de O Pasquim.

[6] Consultar na internet.