Uma das atribuições mais dignas das culturas é sua relação potencial com a transformação da sociedade, ainda que existam contraditoriamente culturas autoritárias e conservadoras, que agem sempre na contramão contra mudanças na sociedade capitalista. Apesar disso, as conexões entre culturas e política moldaram historicamente períodos preciosos de transformação das sociedades. Cabe, portanto, uma reflexão sobre tais conjunções acontecidas no ambiente nacional.
No Brasil, importantes momentos de mudança na sociedade vieram acompanhados e estimulados por movimentos culturais expressivos. Para se deter apenas em instantes recentes, do século 20 em diante, dois exemplos de enlaces entre movimentos culturais e mudanças sociais podem ser acionados, dentre diversos outros possíveis. Eles reúnem os anos 30 e 50/60 do século passado.
Nos anos 1930, a transição da sociedade oligárquico-agrário-exportadora para a sociedade urbano-industrial, conformada na revolução passiva brasileira, para lembrar a instigante expressão de Antonio Gramsci, foi entremeada pelo movimento de modernismo cultural, na acepção formulada por Antonio Cândido. Tal movimento se fez presente em diferentes áreas das culturas, com destaque para a segunda geração modernista, que não só renovou a literatura nacional, por meio de autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, José Lins do Rego, José Américo, entre outros, mas conformou um primevo mercado editorial no país. Destaque também para o ensaio, que deu origem a intérpretes fundantes do Brasil, como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.
A modernização realizada pelo alto, como anota Carlos Nelson Coutinho, sem incorporar os excluídos, foi controlada e domesticada pela composição entre as antigas e as novas classes dominantes, tendo degenerado em modernização conservadora, como constatou Florestam Fernandes. Mesmo assim, as conexões entre política e culturas foram potentes, conformando o rico panorama social, político e cultural daqueles anos brasileiros, pelo menos até o golpe do Estado Novo, em 1937, por meio do qual as classes dominantes consolidaram sua opção pela modernização em sua versão conservadora.
Nos anos 1950/60, o Brasil novamente associou intimamente culturas e transições sociais. O desenvolvimentismo daqueles anos modificou o país, em muitas das suas dimensões. As manifestações político-culturais foram intensas e perpassaram praticamente todas as áreas culturais reconhecidas: arquitetura, música, teatro, artes visuais, pensamento, literatura, cinema, dança, fotografia etc. Alguns diálogos com segmentos específicos das culturas populares se iniciaram de modo esporádico. Seus criadores são tão numerosos, que parece impossível citar mesmo alguns deles sem cometer injustiças com muitos dos protagonistas da grandiosa manifestação cultural acontecida naqueles anos.
O Brasil criativo e inteligente, como nunca talvez, mais uma vez vai ser bloqueado por outro golpe das classes dominantes, de teor civil-militar, em 1964. Apesar da violência da ruptura institucional, com o desmantelamento da sempre frágil democracia brasileira, pelo menos em parte o movimento cultural, dada sua potência, conseguiu ainda realizar uma floração tardia, como observou com perspicácia Roberto Schwarz, entre 1964 e 1968, quando o golpe dentro do golpe inviabilizou sua continuidade, por meio da repressão, da censura, da violência, do exílio e de outras atrocidades mais.
Para além do bloqueio civil-militar das classes dominantes, o desenvolvimentismo já apresentava limitações, decorrentes de seu caráter excludente e de algumas opções, que se mostraram equivocadas, não inclusivas e colonizadas. Apesar disso, as vigorosas conexões entre culturas e transformações naqueles anos trouxeram ganhos fabulosos para o país. Ele viveu um dos momentos culturais e políticos mais brilhantes da sua história.
O século 21 abriu um novo horizonte de transformações sociais na América do Sul, com a emergência de vários governos democrático-progressistas. No país, agora sob a direção inédita na história brasileira de uma liderança não advinda das classes dominantes e do apoio de centro-esquerda de segmentos da população, o Brasil poderia trilhar um projeto político-cultural nacional distante daqueles impostos pelos setores dominantes.
Sob a inspiração de temáticas como inclusão e diversidade, o país se modificou, apesar das resistências das classes dominantes e de algumas atitudes por demais conciliatórias, que não conseguiram apaziguar as fortes reações dos privilegiados. Eles não admitem a superação de uma sociedade desigual composta de privilégios e carências, conforme Marilena Chauí. A modernização e o desenvolvimentismo encontraram resistências em suas épocas e foram domesticados em suas versões conservadoras. Os temas da inclusão e da diversidade em uma sociedade tão desigual parecem possuir um teor explosivo, que talvez não seja tão facilmente apropriado pelas classes dominantes, sempre capaz de imaginar artimanhas para manter sua exploração e supremacia.
Entre 2003-2016 e de 2023 em diante, com muitos entraves e tensões, emergiram certas possibilidades de transições da sociedade, ainda que contraditadas, no último período, por correlações de força e movimentos contrários às mudanças, em especial situados à extrema direita, com seu ódio visceral à transformação da sociedade, mesmo daquela profundamente desigual como a instalada no Brasil.
Como bem observou Marco Aurélio Garcia, tais conexões entre movimentos culturais e transição não se estabeleceram como nos períodos anteriormente assinalados. De um lado, políticas conciliatórias nublaram as transições. De outro lado, a reação dos dominantes levou não só ao golpe midiático-jurídico-parlamentar-empresarial de 2016, que interditou as mudanças, mas que viabilizou o retrocesso das gestões Temer e Bolsonaro, que atingiram todas as áreas da sociedade, inclusive fortemente a cultural.
No ambiente da cultura, muitas manifestações culturais surgiram, mas não conformaram um movimento expressivo após os anos 2000. Só exemplos esporádicos se fizeram presentes, como o festejado filme A que horas ela volta? A película, sintonizada com seu tempo e espaço, traduziu, em plasmação simbólica, dramas vivenciados naqueles anos, entrelaçados de alterações de vidas e de reações brutais em variadas tonalidades.
O desafio da busca de mudanças se tornou bem mais complexo, diante de um cenário internacional marcado por tensões entre possibilidades de mundos unipolar e multipolar e de conflitos entre forças democráticas e autoritárias de extrema direita, que emergem, como novidade recente, inclusive no contexto político nacional. No cenário esboçado as relações entre culturas e mudanças sociais e a própria transformação se viram dificultadas de modo intenso. Tais obstáculos repercutem fortemente sobre as culturas e a política.
A política, no contexto de contradições e conflitos, tende a embrutecer. Ela, reduzida a sua dimensão ordinária de dar conta do dia a dia, perde horizontes com os entraves à grande política, para utilizar mais uma expressão cara à Gramsci, a qual dialoga com o extraordinário e com possibilidades diferenciadas de futuros. A interdição à imaginação de futuros e de sua disseminação virtuosa na agenda pública da sociedade deprime a criatividade na política e invade também as culturas. Elas adquirem um tom anódino e um viés algo insosso e pragmático, submetidos ao existente. Ambas aparecem como não condizentes com manifestações inovadoras em sintonia mais fina com a sociedade e suas demandas de longo prazo.
Tais percursos afetam política e culturas. O clima político existente na sociedade configura relevante atmosfera para o florescer das culturas. Quando a política mobiliza horizontes utópicos, as culturas se alimentam de possibilidades criativas. Quando a política se empobrece em pragmatismos presos ao cotidiano sem fim, destituída de transcendência, as culturas tendem à inanição e à falta de imaginação. As conexões entre política e culturas são complexas, imensas e intensas. Por óbvio, as culturas igualmente agem na configuração de cenários político-culturais criativos que podem abrir horizontes políticos. Ao contrário, culturas ordinárias tendem a ensejar políticas pragmáticas e de pequena envergadura.
Na cena brasileira na atualidade, algumas condições culturais para brotar movimentos estão encaminhadas: 1. Orçamentos conquistados e federalizados, ainda que de modo complicado; 2. Certa reconstrução da institucionalidade cultural, apesar de suas limitações, como a não conquista da carreira da cultura e a não implantação em plenitude do Sistema Nacional de Cultura; 3. Inclusão de novos agentes, fazedores, comunidades e grupos de cultura, vindos não só das culturas identitárias, e 4. uma maior diversidade de agentes e fazedores incorporados potencialmente ao campo cultural.
O desenvolvimento de programas como o Cultura Viva, acolhendo uma amplitude diversificada de criadores e militantes culturais alarga o campo de modo substantivo. As cotas nas universidades e institutos federais de educação introduzem novas culturas no ambiente universitário, antes muito elitizado, e interferem em seus procedimentos formativos e de investigação. A instalação de novas universidades e institutos federais nas cidades médias, relativizando sua concentração apenas nas capitais, propiciam a retenção de pessoal qualificado em tais cidades e estimularam inovadoras dinâmicas urbano-culturais no país. A proliferação, por todo país, de pessoas, grupos, comunidades e instituições culturais, apoiadas pelas recentes leis de cultura e seus orçamentos, nunca anteriormente vistos na cultura, alargam os territórios culturais brasileiros e seu corpo de fazedores de cultura. Tais e outros dispositivos impactam na dinâmica cultural brasileira de modo significativo, ainda que alguns deles demandem um largo tempo para sua maturação.
Todos os processos alimentam condições para a emergência de movimentos culturais. Eles necessitam ser amadurecidos no tempo e no espaço para permitir a floração de novos movimentos culturais expressivos no âmbito nacional. Os entraves, no entanto, derivam não somente do ambiente político, cercado por pragmatismos, baixa intensidade e corrupções, mas proliferam no interior mesmo do meio cultural. Os embates entre as culturas já instituídas e as novas culturas despontam no ambiente nacional, ainda que, muitas vezes, escamoteados. Um projeto maior de futuro da sociedade pode buscar equacionar tais tensões e tecer uma lógica de complementariedade, que não desconheça contradições e privilégios vigentes.
A multiplicação e a diversidade de manifestações culturais e seu reconhecimento social, mesmo frágil, desenham um ambiente cultural fracionado. A situação de fragmentação das culturas e de seu isolamento, com práticas e visões autossuficientes, aparece como outro obstáculo nada desprezível para as dinâmicas político-culturais, pois ao enrijecerem atitudes e certezas, negam a necessidade de trocas, vitais para as culturas, que sempre são impuras, dado que enriquecem necessariamente em diálogos interculturais. A perspectiva fragmentária dificulta a compreensão da totalidade social e de seus enlaces e de suas contradições e, muitas vezes, impede que as disputas culturais, adquiram dimensão política e se identifiquem com demandas similares de outros setores oprimidos da sociedade.
A superação da fragmentação e do isolamento de manifestações culturais depende de sua capacidade política de reconhecer situações semelhantes de opressão, de ativamente buscar conjugar interesses comuns, da existência de projetos políticos acolhedores e de abraçar um projeto político-cultural, que seja aberto, amplo e aliado das culturas. Em uma atitude mais prospectiva, as culturas podem não apenas intensificar seu diálogo político com a sociedade, mas, indo além, estimularem perspectivas de futuros para a sociedade e a política, pois uma de suas características mais essenciais é sua capacidade de imaginar futuros e inventar novos mundos, algo tão carente nos tempos em que vivemos na sociedade e na política.
A história do Brasil demonstra a relevância de buscar conexões entre culturas e política na confecção de movimentos político-culturais, que adensem a possibilidades de floração de transformações da sociedade. Uma das metas mais alvissareiras do campo cultural hoje, relativamente equacionados os temas do orçamento e da institucionalidade culturais, deve ser a constituição de tais movimentos, que enriqueçam culturalmente o país e que abram possibilidades de esperança em futuros mais imaginativos. Mas para desenvolver tais movimentos político-culturais um requisito impõe-se como imprescindível: o fortalecimento e aprofundamento da democracia.
A história constata a imperiosa necessidade de manter e aprofundar a democracia no país. Nos anos 1930 e nos 1950/60 do século passado, como também em 2016, as classes dominantes interditaram o Brasil criativo e inteligente, impondo intensos retrocessos à sociedade, às culturas e ao projeto de nação, por meio de golpes antidemocráticos. Hoje, a luta pela manutenção e pelo aprofundamento da democracia, em perspectiva de uma democracia mais ampliada, aparece como dado vital para o presente e o futuro da sociedade e das culturas brasileiras. Daí a urgência de conexões mais afinadas e expressas entre culturas e democracias para a construção/consolidação de culturas democráticas no Brasil.