Cultura

A relação do PT com o ambiente da cultura começa já nos movimentos para construção do partido. Tais mobilizações envolveram sindicalistas, membros vindos de comunidade eclesiais de base, militantes políticos de esquerda provenientes de diversos partidos e grupos existentes e fazedores de cultura, para se utilizar uma denominação abrangente, que acolha intelectuais, artistas e pessoas oriundas de outros registros da cultura.
Em 2025, o PT fez 45 anos com atividades e comemorações por sua trajetória. Como membro do Conselho da Editora da Fundação Perseu Abramo propus que ela publicasse um livro analisando as contribuições e os entraves do PT nas mais diferentes áreas de sua atuação na sociedade. Penso que seria um rico presente de seus 45 anos de vida. Resolvi me adiantar à proposição e tentar agora elaborar um breve esboço de análise do percurso do partido no campo da cultura. Ele funciona como uma espécie de roteiro inicial de um texto mais amplo e denso. A relação do PT com o ambiente da cultura começa já nos movimentos para construção do partido. Tais mobilizações envolveram sindicalistas, membros vindos de comunidade eclesiais de base, militantes políticos de esquerda provenientes de diversos partidos e grupos existentes e fazedores de cultura, para se utilizar uma denominação abrangente, que acolha intelectuais, artistas e pessoas oriundas de outros registros da cultura. O debate acerca da pertinência ou não de agregar intelectuais, por exemplo, percorreu os ambientes iniciais do partido. A homenagem à Mário Pedrosa escolhido filiado número um do PT expressa, de modo notável, as conexões pretendidas entre o PT e o campo da cultura. Em seu itinerário inúmeros intelectuais e artistas se filiaram ou estiveram próximos ao PT. Sem a pretensão de uma lista exaustiva, impossível e improvável para o breve texto, podem ser recordadas personalidades como: Sérgio Buarque de Hollanda, Florestan Fernandes, Marilena Chauí, Paulo Betti, Paulo Freire, Chico Buarque de Hollanda, Lélia Abramo, Sérgio Mamberti, Antonio Candido, Bete Mendes, Marco Aurélio Garcia, Edélcio Mostaço, Paulo Singer, Bernardo Kucinski, Francisco de Oliveira, Moacir Gadotti, Henfil, Eder Sader, Maurício Segall, Maria Rita Kehl, dentre muitos outros. Por óbvio, que, desde então, as relações não foram sempre harmoniosas, pois houve também crises, divergências e afastamentos, mas a presença do PT no ambiente cultural sempre foi relevante, ainda que tenha variado conforme conjunturas. Pouco depois de sua criação, Maurício Segall, no ano de 1982, enviou texto ao Diretório Nacional do PT propondo a criação de uma secretaria nacional de cultura e em 1994 sugeriu um programa cultural para o Partido dos Trabalhadores. Em 1984, Marilena Chauí, Antonio Candido, Lélia Abramo e Edélcio Mostaço, por solicitação da Secretaria Nacional de Cultura, publicaram o livro Política Cultural, no qual discutiam e propunham políticas culturais para o partido e afirmavam que “...embora pareça secundária ou mesmo irrelevante, a questão cultural deveria ser considerada uma das prioridades do Partido dos Trabalhadores”. Mas também assinalavam que “o desinteresse da executiva pela política cultural é alarmante”. O pequeno livro apresenta uma visão ampla das questões culturais, tratando de temas cruciais da realidade cultural brasileira, tais como; a luta ideológica, o estado e a cultura, o nacional e o popular, o saber dos dominados e a presença da indústria cultural. A atenção de segmentos do PT com as políticas culturais e as tensões envolvidas em sua incorporação ou não pelo partido, enquanto organização de massa, vão de algum modo perpassar a história do PT e ser uma das questões essenciais acionadas no relacionamento entre o partido e a cultura. A atitude do PT vai oscilar entre o desenvolvimento, na ação e no pensamento, de políticas culturais em diferentes ambientes sociais e a assimilação ou não delas pela institucionalidade e militância partidárias. Tal dilema é crucial para a análise de tais relacionamentos, pois atravessa o itinerário do partido e está conjugada com a questão de como se encara a cultura na sociedade, no governo e no partido. As lutas político-culturais fazem parte da herança partidária. O PT sempre esteve presente em defesa das culturas e da liberdade, com firmes posições contrárias à censura. Ele atuou na busca de apoio e mais verbas para as instituições culturais, além de decisivamente atuar pelo reconhecimento da cultura e por reivindicações dos trabalhadores da cultura, em termos de condições de trabalho e de salário. A inserção do PT em tais lutas tornou-se uma marca do partido. Recentemente, ele não se intimidou com os autoritarismos do estado e da sociedade no período pós-golpe de 2016, em especial durante a gestão de Messias Bolsonaro e sua guerra cultural. As leis Aldir Blanc I e II e a Paulo Gustavo, conquistas improváveis em tempos de extrema-direita no poder federal, tiveram a ativa participação do PT, em conjunto com outros partidos de esquerda, a exemplo do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A postura decidida do PT costurou alianças com quase todos os segmentos culturais e inclusive foi fundamental para, junto com o meio cultural, derrotar eleitoralmente Messias Bolsonaro. Nas lutas políticas e sociais e, em especial, nos momentos eleitorais, em que a política parece se acelerar, pois não é nada casual que a população se refira a esses instantes como tempo de política, a preocupação com a cultura se expressou, muitas vezes, na confecção de documentos reivindicatórios ou de programas eleitorais de cultura para subsidiar campanhas municipais, estaduais, distritais e nacionais. A produção de tais documentos e programas, múltiplos e dispersos, configura um grande legado, nada desprezível, de formulações do PT acerca do tema das políticas culturais. A falta de memória delas, por meio de seu arquivamento e sua compilação, não permite uma visão mais abrangente e sistemática daquilo que setores partidários e o PT propõem como políticas culturais petistas. Por vezes, tais documentos e programas eleitorais se mostram incapazes de considerar as versões anteriores, em um desconhecimento mais que problemático. Um interessante trabalho político-cultural partidário seria reunir e analisar essas infinitas contribuições como forma tecer uma constelação mais sistemática e visível do universo de políticas culturais petistas. Poucos dos múltiplos programas culturais petistas produzidos tiveram uma circulação mais ampla, que transcendessem os tempos eleitorais e seus espaços de destino. Talvez alguns programas nacionais tenham alguma capacidade maior de circular, mas um deles, sem dúvida alguma, teve não só larga divulgação, mas importante impacto nas políticas culturais petistas ou até mesmo de partidos democráticos e de esquerda. Trata-se do documento A imaginação a serviço do Brasil, elaborado visando as eleições presidenciais de 2002. Construído com base em seminários regionais e nacional, o documento coletivo aparece como uma das formulações de políticas culturais mais consistentes desenvolvidas pelo partido até hoje. Algumas proposições básicas para as políticas culturais nacionais encontram no texto suas primeiras elaborações, como o agora chamado sistema nacional de cultura. Entretanto, o inventivo programa ainda não teve uma atualização necessária e demandada pelas mudanças, nacionais e internacionais, acontecidas e pelas potentes experiências de gestão cultural vivenciadas no país, inclusive no plano nacional. As dificuldades de incorporação em plenitude das questões culturais no âmbito geral do partido, como demonstram a quase ausência de palavras como cultura, política cultural e movimento cultural no livro-compêndio Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998, publicado pelo PT e Fundação Perseu Abramo, não impediram a existência de estruturas partidárias voltadas ao tema, como a Secretaria Nacional de Cultura, que emergiu com mais institucionalidade do coletivo nacional de cultura, em 2003, ou o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas, dedicado à área, ainda que o NAP-Cultura tenha, até agora, uma atuação circunstancial e não persistente como deveria. A secretaria se apresenta, em geral, sempre mais ativa, mesmo que isso não tenha acontecido em todos os seus mandatos. A existência de tais instâncias partidárias significa atenção e ação no âmbito da cultura e das políticas culturais. Outros organismos vinculados ao PT, a exemplo da Fundação Perseu Abramo, de seu Centro Sérgio Buarque de Holanda e da sua editora, têm atuações relevantes no campo, seja através de constantes relacionamentos com o meio cultural, a partir de eventos, seminários, diálogos, pesquisas, trocas, colaborações e parcerias, seja por intermédio de publicações da editora ou das revistas da fundação, a exemplo de Focus Brasil, Perseu e Teoria e Debate, que acolhem textos de autores provenientes no ambiente cultural e, inclusive, do meio universitário. O debate da cultura e das políticas culturais perpassa com maior ou menor intensidade tais instâncias e periódicos. A editora da Fundação Perseu Abramo tem publicado diversos livros que dialogam com a cultura e temas afins, inclusive alguns voltados especificamente para o assunto das políticas culturais. Sem pretensão de listar todos eles, podem ser destacados os seguintes livros: Cidadania cultural. O direito à cultura (2006), de Marilena Chauí, inventiva análise, trazendo reflexões valiosas sobre sua experiência na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina; As políticas culturais e o governo Lula (2011), breve análise das inovadoras políticas dos dois mandatos iniciais petistas, que colocaram em outro patamar as políticas culturais no Brasil; Política cultural e gestão democrática no Brasil (2016), discussão de diferentes gestões de cultura do PT em governos municipais, estaduais e nacional, além de reflexões sobre temas específicos do campo das políticas culturais, e Cultura e política no Brasil atual (2001), análises da situação de diferenciadas áreas da cultura, em especial, daquela vivenciada na gestão Messias Bolsonaro, com seus ataques à cultura e ao campo cultural, inclusive por meio do acionamento da guerra cultural. Estas e, por certo, outras obras editadas desenham um razoável panorama da cultura e das políticas culturais no país. Em seus 45 anos de vida, o PT teceu experiências criativas e exitosas de gestão cultural em inúmeros municípios e estados, no Distrito Federal e no governo nacional. De início, cabe lembrar as gestões locais pioneiras acontecidas em São Paulo e Porto Alegre e os experimentos político-culturais ocorridos em cidades como: Belo Horizonte, Belém, Recife, Goiânia, Rio Branco, Campinas, Londrina, dentre outras. O modo petista de gestão cultural municipal subsidiou a atuação de administrações inovadoras em Brasília e em estados, como Acre, Rio Grande do Sul e Bahia, além de contribuir com governos nacionais, em especial os primeiros governos de Lula. Na gestão federal, com destaque para o período Lula/Gil, as políticas culturais nacionais floresceram como nunca no país. Pode-se afirmar mesmo que o Ministério da Cultura foi então refundado. Em resumo, o PT conseguiu desenvolver experimentos criativos em cultura nas mais diferentes regiões do país, nos mais diversos entes federativos e nas mais distintas áreas culturais, acumulando ricas experiências em cultura e em políticas culturais. A atenção com as formulações e implementações de políticas culturais; a ampliação da noção de cultura; a abertura para além de artistas e pessoal de patrimônio e o acolhimento de amplos segmentos culturais, antes excluídos da ação governamental; a participação pretendida dos agentes e comunidades culturais; a preocupação com cidadania, direitos culturais e culturas democráticas; a busca incessante de democratização da cultura, dentre outros aspectos, passaram a fazer parte fundamental da atuação petista na questão cultural. Elas conformaram uma maneira petista de atuar na gestão cultural, ainda que tal configuração não esteja expressa de modo mais sistemático, como poderia e deveria estar. O criativo patrimônio construído na ativa trajetória do PT, por meio de múltiplos agentes partidários, entretanto, não transformam as relações PT, cultura e políticas, em algo edificante, formatadas sempre em termos positivos. O texto buscou apontar também aspectos desafiadores e tensos, a exemplo da não assimilação capilarizada da cultura e das políticas culturais no âmbito geral do PT. Tal descompasso entre as formulações férteis, práticas inovadoras e atuações dedicadas e a não incorporação ainda plena do tema da cultura por direções, instâncias e militâncias partidárias tem ocasionado, inclusive, visível desconforto, quando se analisam algumas gestões petistas com suas atuações frágeis no campo cultural. Diversas delas esquecem as políticas desenvolvidas pelo PT e quase nada fazem em cultura, enquanto outras, além de desconhecer o legado acumulado, implementam em seu lugar uma pobre ação, que reduz a cultura tão somente aos eventos, buscando instrumentalizar a cultura em uma postura própria da pequena política. Tais atitudes de desprezo pelo que o PT já fez em cultura é inaceitável e deprime em muito a presença político-cultural do PT. Um maior compromisso integral do partido com o rico acúmulo político-cultural atingido, sem dúvida, seria altamente relevante para a cultura, para o próprio PT e para a transformação democrática da sociedade, que em sua opção de luta comprometida com a democracia não pode prescindir da disputa político-cultural-ideológica como componente imanente da vida democrática e da transição social realizada em termos democráticos. Nessa perspectiva, emerge como primordial a conjunção do legado existente, a cuidadosa potencialização dele, inclusive por meio de algumas das medidas sugeridas no texto, e a firme atuação para que o partido como um todo assimile cultura e políticas culturais como fatores inerentes à luta político-cultural, tão necessária para a transformação da sociedade brasileira e mundial.