O amor corre nas veias da Revolução.
Virgínia ouviu falar de Theodomiro pela primeira vez quando tinha 14, 15 anos.
Por caminhos do parentesco.
Uma prima próxima morava em Salvador.
Chamava-se Adelita, a prima.
Adelita Araújo.
Na família, Lu.
Fora, conhecida por Dedé.
Toda a família materna e paterna de Virgínia morava em Salvador.
Os pais dela, quando se casaram, foram morar no Rio de Janeiro.
Dedé era comadre de Conceição, com quem Theo, preso, se casou.
Com Maria Conceição Gontijo de Lacerda, Theo teve três filhos: Bruno, Fernando Augusto e Mário.
Conceição o acompanhará no exílio, por algum tempo.
Como se sabe, Theo vai para o exílio no final de 1979.
Volta em 1985, depois da queda da ditadura.
Virgínia morava no Rio de Janeiro, mas sempre ia a Salvador nas férias, e ficava na casa da prima querida.
Um dia, a prima soltou um comentário um pouco ácido:
_ Conceição não tem juízo. Agora, está namorando um preso político. Vê se tem cabimento.
Virgínia Lúcia de Sá Bahia, ouvindo, assuntando.
Pela imprensa
Durante muito tempo acompanha a história de Theo pela imprensa.
Era “o marido de Conceição”, a quem conhecera na casa da prima.
Acompanhou as notícias da fuga.
A presunção de que estivesse no exterior depois de ter fugido.
A surpresa de ele buscar guarida na Nunciatura Apostólica, a embaixada do Vaticano em Brasília.
A ida dele para o exterior.
O exílio em Paris.
A volta ao Brasil.
Ao voltar, casado com Marília Fragoso, então promotora de Justiça em Recife.
A promotora conheceu Theo em Paris.
De modo a ganhar algum dinheiro extra, ele também, horas vagas, trabalhava como guia turístico, ensinando o caminho das pedras da capital francesa para brasileiros e brasileiras endinheirados.
Conceição trabalhava numa perfumaria, na Rue de Rivoli, muito frequentada por brasileiros.
Foi ela, Conceição, a ponte para Theo chegar a Marília: num período de vinda dela ao Brasil, os dois já separados, deixou um recado na loja – alguém procurasse serviço de guia turístico, indicassem Theo. Indicaram.
E aí os dois se encontraram, e passaram a namorar, Marília perdidamente apaixonada.
Ajudou-o na resolução dos processos aos quais respondia para poder voltar ao Brasil, a acontecer no segundo semestre de 1985.
O romance durou pouco. E não deixou boas lembranças entre os filhos de Theo, entre toda a família dele, irmãs, a própria Conceição – ninguém gostava dela.
Até hoje, ninguém entende como Theo casou-se com ela.
Voltemos a Virgínia.
Destino a favor
Coisas do destino: Virgínia também havia se despencado para o Recife, acompanhando o primeiro marido dela, Acácio Caldeira, aprovado em concurso para juiz do Trabalho, com quem terá dois filhos: Mariana e João.
Nem ela, nem Theo tinham qualquer relação com Recife. Os dois chegaram à capital pernambucana em decorrência das relações conjugais.
Ele, por Marília.
Ela, por Acácio.
Mais tarde, já amorosamente unidos, Virgínia brincará:
_ Nós devemos nossa relação aos nossos ex.
Ela sai do Rio de Janeiro em 1987, acompanhando o marido.
Estava no meio do curso de Direito, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Já havia concluído Psicologia na mesma universidade, em 1981.
Não se deu bem com a Psicologia, foi atrás do Direito.
Theo, ao voltar do exílio, no segundo semestre de 1985, tinha apenas o curso secundário.
Dana-se a estudar, faz cursinho pré-vestibular, e é aprovado para a prestigiada Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Virgínia também cursava Direito na mesma universidade, continuando os estudos.
Quando o viu pela primeira vez nos corredores da Faculdade, se apresentou:
_ Muito prazer. Conheço Conceição, sou prima de Dedé.
Theo disse saber de quem se tratava.
Já tinha ouvido falar da mãe de Virgínia, madrinha da prima dela e a quem Conceição chamava de “minha Dinda”.
Depois desse primeiro encontro, quando se batiam nos corredores, conversavam muito.
Como dois bons amigos.
Tempo passou.
Theo se separou da promotora.
Virgínia, do juiz do Trabalho.
Não deu outra: a relação dos dois se estreitou.
Principalmente, quando, em 1989, Virgínia é aprovada em concurso para o cargo de Analista do Tribunal Regional da 5ª Região, sediada em Recife, do qual ele já era servidor, aprovado no concurso de 1987.
Passaram os dois a trabalhar no mesmo prédio.
Theo, na 5ª Vara Federal do Recife.
Virgínia, na 4ª Vara.
Antes da aprovação no concurso para a Justiça Federal, Theo trabalhava na Companhia Energética de Pernambuco, (Celpe), companhia estatal de energia de então, onde havia também entrado por concurso.
Bem, trabalhar ali, no mesmo prédio, e eles se batiam toda hora.
Sopa no mel
Deu-se o amor.
Juntaram as escovas de dentes.
Junto com elas, os quatro filhos: Fernando Augusto e Mário, de Theo, e Mariana e João, de Virgínia.
Bruno nunca morou com Theo.
Foi criado por Maria Helena, irmã de Conceição, e Renato Godinho, que cumpriu pena com Theo na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.
Ainda falaremos um pouco disso, à frente.
Juntaram escovas e filhos em dezembro de 1990.
O casamento no papel aconteceu em 4 de outubro de 1991.
Virgínia costumava brincar:
_ Tivemos um tempo sem carteira assinada.
Camila, filha dos dois, nascerá dois meses depois do casamento deles, dezembro de 1991.
Casou com um barrigão enorme, jeito nenhum de esconder.
Theo costumava brincar com a situação.
Dizia ter quase morrido de vergonha ao casar com uma mulher buchuda!
Depois de ter passado uma década na militância, na luta revolucionária, muito tempo de prisão, fuga, exílio, e a volta ao Brasil, uma vida cheia de aventura, no melhor sentido, empenhou-se nos estudos.
Teve uma passagem brilhante pelo curso de Direito, concluído no prazo recorde de quatro anos.
As anotações dele, os cadernos, eram disputados a tapa pelos colegas.
Não apenas pelo conteúdo, mas também pela forma impecável, uma letra absolutamente legível, quase de professora primária.
Aluno exemplar.
Gambiarra
Pelo sistema de créditos do curso, com correquisitos e pré-requisitos, para poder adiantar o curso ele teve que fazer uma gambiarra, cursando no mesmo semestre duas cadeiras em que uma era pré-requisito da outra.
O diretor da faculdade, José Luiz Delgado, descobriu a gambiarra.
Quis impedir o aproveitamento dos créditos daquelas duas cadeiras em que uma era pré-requisito da outra.
Theo entrou com um mandado de segurança contra o diretor, e ganhou.
Delgado, puto.
Ficou com ódio profundo daquele aluno ousado.
Nunca esqueceu.
Na primeira oportunidade, deu o troco.
Deu um jeito de atrasar a colação de grau de Theo em um semestre.
Acontece o seguinte: Theo não havia cursado a cadeira de Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB), resquício da ditadura, e obrigatória.
Achava estar dispensado dela.
Não estava.
Um professor se dispôs a fazer um curso de férias para ele, de modo de contornar o problema.
Delgado, no entanto, cheio de ódio, desejo de vingança aceso, vetou.
Resultado: Theo teve de amargar mais um semestre na faculdade cursando apenas EPB.
Isso postergou a formatura dele para o final de 1991.
Virgínia havia se formado no meio do ano de 1990.
Os dois passaram então a estudar para o concurso de juiz do Trabalho.
Ela já havia entrado na Faculdade de Direito com tal objetivo.
Theo não tinha qualquer familiaridade com a Justiça do Trabalho.
Pensava em fazer concurso para a Justiça Federal.
O edital para juiz do Trabalho, no entanto, foi o primeiro a abrir, e ele também se inscreveu.
O concurso se realizou ao longo do ano de 1992.
Ele se dava em várias etapas.
Os dois passaram.
Tomaram posse em 5 de março de 1993.
No exercício do cargo de juiz do Trabalho, Theo gostou, sentiu gosto.
Era a praia dele.
Nunca mais falou em fazer outro concurso.
Herança da ditadura
O tempo de estudo para o concurso não foi fácil.
Os dois trabalhavam.
Quatro filhos pequenos.
Outra filha a caminho.
Todo o tempo livre utilizado para o estudo.
Respeitado apenas o tempo de lazer dedicado às crianças nos finais de semana.
Dois anos focados no estudo, sem tempo para eles.
Na época, os concursos para juiz do Trabalho eram regionais e não havia possibilidade de permuta.
Se a pessoa fosse aprovada em um estado e quisesse ir para outro, teria que fazer novo concurso.
Os dois combinaram fazer o concurso de Pernambuco.
Combinaram, ainda: se apenas um ou nenhum fosse aprovado, os dois fariam outros concursos até serem aprovados no mesmo local.
Os dois, aprovados em Pernambuco.
Não precisaram fazer o concurso do Rio Grande do Norte, para o qual já haviam feito inscrição.
Antes da posse, um momento de grande tensão.
Depois das provas escritas, oral e de títulos, havia o momento da investigação da vida pregressa dos aprovados.
Tinham de apresentar várias certidões negativas.
Curiosamente, a certidão da Auditoria Militar, para Theo, saiu logo, limpa, limpinha.
O caldo engrossou foi com a Polícia Federal.
Uma extensa folha corrida dele nos registros da PF, não obstante a anistia.
O juiz federal com quem Theo trabalhava, Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, amigo dos dois, e padrinho de Camila, argumentou com o superintendente da Polícia Federal de Pernambuco, Airton Marques Mendes, ser aquilo um absurdo completo, uma estupidez.
A situação de Theo estava absolutamente regularizada, o país não estava mais sob uma ditadura.
A rigor, nada devia constar contra ele nos registros da PF.
O superintende foi alertado, havia equívoco sério.
Não emitisse, ouviu o alerta de receber pelos peitos uma ação por danos morais.
Era o uso do cachimbo, manias da época da ditadura, cujos sinais ainda eram fortes.
Resolve recuar e atende Theo.
A certidão, no entanto, parecia não ter resolvido o problema.
Aquela fase do concurso se arrastou muito além do tempo normal.
Ninguém sabia dizer ao certo quais as razões de tal demora.
Os dois, conjeturando: era o passado político de Theo?
Muita apreensão.
A desconfiança tinha alguma razão de ser.
Membros do Tribunal, em off, falavam na militância de Theo.
A demora, no entanto, era ocasionada por outro candidato sobre o qual pairavam suspeitas de improbidade, e tais suspeitas levaram à reprovação dele.
E saiu a nomeação dos dois.
Um alívio.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros