Sociedade

A extrema direita usa a figura da criança quando se trata de debates sobre sexualidade, gênero ou educação. Mas essa mesma criança é abandonada quando engravida em decorrência de violência sexual

Em agosto de 2025, o influencer Felca postou um vídeo que alcançou mais de 40 milhões de visualizações no YouTube, gerando um debate muito importante sobre adultização das crianças. Além disso, jogou o foco para algo que os movimentos feministas falam há anos, que é a exploração sexual de crianças nas redes sociais, sexualizando e promovendo um espaço de pedofilia. O debate atravessou todos os espectros ideológicos, da direita à esquerda: todos e todas contra a pedofilia. Mas será que, de fato, a extrema direita está preocupada com a proteção de uma criança, principalmente as que sofrem algum tipo de abuso?

O crescimento da extrema direita no Brasil e no mundo trouxe consigo um reposicionamento de pautas relacionadas à infância. Essa vertente política se apresenta como protetora das crianças, sobretudo contra a exploração infantil online. No entanto, a mesma retórica não se sustenta quando se trata de proteger efetivamente meninas e meninos de violências concretas, como o abuso sexual que pode levar a gravidezes forçadas, a construção de masculinidades violentas e a perpetuação da subalternidade feminina. Neste artigo vamos analisar essa contradição a partir de três eixos: o discurso moralista sobre a proteção online, a negligência diante do abuso sexual e do aborto infantil, e a formação desigual de meninos e meninas.

Manipulação midiática e seleção moral

A extrema direita se apropria da pauta de proteção da infância como uma bandeira moralista, utilizando-se de casos de exploração sexual infantil nas redes como símbolo da decadência da sociedade moderna e da suposta ameaça de uma “ideologia de gênero”. Essa mobilização cumpre uma função retórica: criar inimigos externos (como as plataformas digitais ou militantes feministas e LGBTQIA+) e posicionar-se como guardiã da moralidade. Pierre Bourdieu (1998) já apontava que as disputas morais operam como disputas de poder. O autor nos ajuda a compreender a moral não como um conjunto neutro de valores universais, mas como um campo de disputas simbólicas atravessado por relações de poder. Para ele, a moral, assim como outros sistemas de significados, é produzida, legitimada e naturalizada por agentes e instituições que detêm capital simbólico e buscam manter ou ampliar sua posição no espaço social.

A moral pode ser entendida como um campo específico dentro da sociedade — isto é, um espaço de posições e de disputas onde diferentes agentes (igreja, Estado, escolas, mídia, movimentos sociais) buscam impor suas definições legítimas sobre o que é “certo” ou “errado”. Bourdieu (1983) ressalta que cada campo possui suas próprias regras, capitais e formas de reconhecimento. No campo moral, o capital simbólico mais disputado é a autoridade de definir os limites do aceitável. A extrema direita recorre a uma moralidade “aparentemente universal” quando mobiliza o discurso da defesa das crianças contra a exploração sexual online ou contra a chamada “ideologia de gênero” nas escolas. Esse discurso, porém, não busca garantir a integridade e os direitos das crianças em sentido amplo; trata-se de uma disputa simbólica para interditar debates sobre gênero, sexualidade e igualdade, pautas fundamentais para compreendermos a diversidade da sociedade e combater violências.

Aqui se evidencia a violência simbólica (BOURDIEU, 1998): ao defender as crianças de um suposto inimigo externo (artistas, educadores, militantes), a extrema direita legitima a invisibilização de violências reais — como o abuso sexual, a gravidez infantil, a desigualdade educacional entre meninos e meninas. Desta forma, a figura da criança funciona como um capital simbólico poderoso. Ao reivindicar-se “protetora da infância”, a extrema direita adquire legitimidade moral e dificulta críticas: quem poderia ser contra a proteção das crianças? Assim, a pauta da infância se torna um recurso político, uma espécie de moeda moral capaz de gerar consenso social em torno de projetos regressivos — como a censura escolar, a criminalização do aborto em casos de estupro e a manutenção de papéis de gênero rígidos.

Quando setores conservadores evocam a necessidade de “proteger as crianças” de conteúdos relacionados à diversidade sexual ou às identidades de gênero, o que está em jogo não é a defesa real da infância, mas a reprodução da heteronormatividade.

A criança é colocada como símbolo de “pureza” e “inocência” — uma construção cultural que serve para naturalizar a cis-heterossexualidade e interditar outras formas de vida. Nesse sentido, a defesa da criança funciona como uma estratégia de regulação do desejo, silenciando debates que poderiam expor as normas de gênero como contingentes e, portanto, passíveis de transformação.

Ao mobilizar a figura da criança, a extrema direita desloca o debate público: em vez de discutir questões estruturais que afetam a infância — como pobreza, violência, abuso sexual e desigualdade educacional —, centra a agenda na “ameaça” representada pela educação sexual ou pelo reconhecimento de identidades dissidentes. Esse deslocamento produz uma falsa polarização: quem defende debates sobre gênero e sexualidade aparece como “inimigo da infância”, enquanto os verdadeiros fatores que vulnerabilizam crianças (desigualdade, exploração, violência doméstica) permanecem invisíveis.

O apagamento da violência sexual e do aborto legal

Apesar do discurso ostensivo de proteção, a extrema direita tem se posicionado contra políticas públicas que amparariam meninas vítimas de abuso. O PL 1904/24, que equipara o aborto após 22 semanas a homicídio mesmo em caso de estupro, ignora a realidade de crianças abusadas. Em 2023, 83.988 pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulnerável — o equivalente a um caso a cada seis minutos. Em 60% dessas ocorrências, as vítimas tinham até 13 anos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), a maioria das vítimas são meninas (88,2%), crianças negras (51,9%) e têm entre 10 e 13 anos (32,5%). Esses dados escancaram os crimes que crianças estão expostas e negá-los, definitivamente, não resolve e sim, agrava.

O abuso infantil constitui uma das formas mais brutais de violência, pois viola não apenas o corpo da criança, mas também sua condição de sujeito em formação. Estudos apontam que a maior parte dos abusos ocorre dentro do ambiente familiar ou em espaços de confiança, revelando um cenário de silenciamento e invisibilidade (Faleiros, 2008; Leal, 2017). Quando o abuso resulta em gravidez, a violência é dupla: além do trauma psíquico e físico, a criança é obrigada a lidar com uma gestação para a qual não possui condições biológicas, emocionais ou sociais. No entanto, o discurso da extrema direita costuma se posicionar contra o aborto mesmo em casos de estupro, ignorando o sofrimento da criança violentada. Ao negar esse direito, desconsidera-se o fato de que a gravidez infantil é sempre uma consequência de estupro, já que uma criança não pode consentir sexualmente. Nesse sentido, a recusa do aborto não é apenas uma posição religiosa ou moral: trata-se de uma forma de violência institucional, que perpetua a opressão sobre corpos vulneráveis.

A extrema direita instrumentaliza a figura da criança como “símbolo de pureza” quando se trata de debates sobre sexualidade, gênero ou educação. Contudo, essa mesma criança é abandonada quando se revela grávida em decorrência de violência sexual. O corpo infantil, nesse caso, deixa de ser visto como vida a proteger e passa a ser território de disputa moral. O feto é colocado acima da criança, apagando sua subjetividade e seus direitos.

Judith Butler (2004) lembra que certos corpos são mais passíveis de luto e cuidado do que outros, dependendo das normas sociais que os enquadram. A criança vítima de estupro que engravida não se torna, para a extrema direita, um corpo digno de proteção plena, mas sim um “meio” para sustentar a defesa abstrata da vida. O sofrimento concreto da menina desaparece atrás da retórica do “direito do nascituro”. Nancy Fraser (2006) ajuda a entender esse movimento: há aqui um deslocamento da pauta da redistribuição e da proteção social para uma luta moral e simbólica. Em vez de assegurar políticas de saúde, proteção psicológica e acesso ao aborto legal — que garantiriam justiça à criança violentada —, a extrema direita converte o debate em guerra cultural, impondo sua visão religiosa sobre a sociedade e criminalizando profissionais de saúde que cumprem a lei.

O resultado é a perpetuação de uma infância marcada por violências sucessivas: a violência do abuso, a violência da gravidez precoce e a violência da negação de direitos. A criança, em vez de ser vista como sujeito de direitos, é transformada em instrumento de uma política conservadora que sacrifica sua vida em nome de um ideal abstrato de moralidade.

Masculinidade violenta: formação e omissão ideológica

A formação de meninos sob parâmetros de masculinidade violenta é um fenômeno estrutural reforçado pela extrema direita. Connell (1995) descreve a masculinidade hegemônica como padrão cultural dominante. A perspectiva de Connell permite compreender que a masculinidade não é um destino biológico, mas uma construção social sustentada por relações de poder. Ao reconhecer a pluralidade de masculinidades e a existência de um modelo hegemônico que oprime tanto mulheres quanto homens dissidentes, abre-se espaço para pensar transformações sociais. Nesse sentido, a teoria de Connell é fundamental para compreender tanto a persistência da violência patriarcal quanto a possibilidade de novas práticas de gênero mais justas e emancipatórias.

A extrema direita, em diversos países, tem investido na defesa de um modelo rígido e normativo de masculinidade, que se aproxima do que Connell afirma. Esse modelo é apresentado como natural, inquestionável e parte de uma suposta ordem “divina” ou “biológica”, mas, na prática, é uma construção social que legitima hierarquias de gênero e sustenta relações de poder violentas. No discurso da extrema direita, ser homem significa ser forte, agressivo, competitivo e dominante. Essa construção reforça a ideia de que a violência é parte essencial da masculinidade — seja na defesa da pátria, da família ou da própria honra. Meninos são, desde cedo, estimulados a rejeitar traços considerados “femininos” (como cuidado, sensibilidade, empatia) e a desenvolver comportamentos de dureza emocional e imposição física.

Esse processo cria uma socialização masculina marcada pela repressão afetiva e pela valorização do confronto, preparando meninos para a vida adulta como agentes de dominação. A extrema direita utiliza a construção da masculinidade como estratégia política. A ideia de que “os homens estão sendo enfraquecidos” por pautas feministas, de gênero ou diversidade sexual é constantemente mobilizada como retórica de ameaça, gerando ressentimento.

Socialização de meninas, controle dos corpos e a subordinação

As meninas são educadas dentro de padrões de subalternidade, reforçados por políticas conservadoras. Na visão da extrema direita, a menina deve ser educada para a docilidade e para a vida familiar, sendo a maternidade seu destino “natural”. Essa concepção ecoa a lógica de Silvia Federici (2017), segundo a qual o patriarcado capitalista construiu a figura da mulher como reprodutora da força de trabalho, apagando sua agência política e econômica. A escola, nesse contexto, não é vista como espaço de emancipação, mas como um dispositivo de disciplinamento que reforça a feminilidade submissa: recato, pureza, modéstia e dedicação à família.

Federici (2017) mostra como o controle histórico da reprodução feminina é atualizado pelo conservadorismo contemporâneo. Para Federici, a reprodução não é apenas biológica, mas social. Ela envolve o trabalho doméstico, o cuidado, a educação das crianças, a sustentação da força de trabalho. Ao controlar a reprodução, o patriarcado capitalista assegura não só a disciplina sexual, mas também a manutenção de uma economia que depende da gratuidade do trabalho feminino no lar. O conservadorismo contemporâneo atualiza esse controle ao insistir na ideia de que o destino da mulher está na maternidade e na subordinação à família nuclear tradicional.

A recusa da extrema direita em aceitar o aborto, inclusive em casos de estupro infantil, é exemplo claro de como o corpo feminino continua sendo apropriado como instrumento de política. A maternidade compulsória transforma as mulheres em reprodutoras da nação, independentemente de sua vontade. Essa política se articula à retórica de “defesa da vida”, que, como já analisamos em Judith Butler, só reconhece certas vidas como dignas de proteção — aqui, a vida do feto sobrepõe-se à vida da mulher ou da criança violentada.

Sobre socialização feminina, para Heleieth Saffioti (2004) se naturaliza a violência. Projetos como Escola Sem Partido (Santos, 2021) interditam o debate crítico sobre gênero. Para Saffioti, a violência de gênero é uma extensão do processo de socialização desigual. Quando meninas são ensinadas a aceitar submissão, o patriarcado não apenas as restringe socialmente, mas também legitima formas de violência física, psicológica e sexual.

A contradição entre discurso e prática e suas consequências reais

A seletividade da extrema direita cria uma dissonância entre discurso e prática. A extrema direita constrói um discurso de defesa da infância e da moral, mas sua seletividade revela que essa defesa é condicionada a interesses políticos e ideológicos. Meninos e meninas são socializados para reforçar hierarquias patriarcais, enquanto direitos reais, como proteção contra abuso, autonomia sexual e educação igualitária, são frequentemente negados. A dissonância entre discurso e prática evidencia que a moralidade e a proteção infantil funcionam menos como fins em si mesmos e mais como instrumentos de poder.

A lógica necropolítica de Achille Mbembe (2018) ajuda a compreender a ação da extrema direita em relação à infância e aos direitos de meninas e meninos:

• A criança é visibilizada quando sua defesa reforça a moralidade conservadora;
• É ignorada quando o cuidado real implicaria questionar hierarquias de gênero, garantir aborto legal ou educação sexual;
• Meninos são socializados para assumir a masculinidade hegemônica e violenta, enquanto meninas são subalternizadas e educadas para obedecer.

Nesse sentido, a necropolítica contemporânea não é apenas um exercício de poder sobre a morte literal, mas sobre quem merece atenção, proteção e direitos, e quem pode ser descartado simbólica e materialmente.

Considerações finais

A análise de diferentes perspectivas teóricas — de Butler e Fraser à Connell, Federici, Saffioti e Mbembe — revela que a extrema direita constrói um discurso moral e protetor da infância que é profundamente contraditório. Embora se posicione publicamente como guardiã das crianças e da “pureza” moral, suas práticas políticas e sociais muitas vezes negam a proteção real às crianças e adolescentes, especialmente em contextos de abuso sexual, gravidez infantil e violência de gênero.

A moral conservadora defendida por esses setores atua como instrumento simbólico: legitima o poder político, reforça papéis tradicionais de gênero e regula quem pode ser considerado digno de cuidado. Meninos são socializados para assumir masculinidades violentas e dominadoras; meninas são subalternizadas, educadas para a obediência e a maternidade. A retórica de proteção infantil, nesse sentido, não protege a vida concreta das crianças, mas serve para interditar debates sobre gênero, sexualidade e autonomia, favorecendo interesses ideológicos e patriarcais.

Portanto, a proteção infantil que essa direita defende não é universal, mas instrumental, voltada a consolidar um modelo social conservador e hierárquico. O resultado é uma moral seletiva, capaz de mobilizar apoio simbólico e político, mas que falha em garantir os direitos, a autonomia e a segurança das próprias crianças que afirma proteger.

Bruna Camilo é doutora em Sociologia pela PUC-Minas. Mestra em, Ciência Política pela UFMG. Pesquisadora em gênero, misoginia e radicalização.

Referências

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