Sociedade

Os traços da colonização ibérica (espanhola-portuguesa) e do neocolonialismo, inglês e depois norte-americano, impõem problemas comuns a toda região, vividos e enfrentados de modos distintos em tempos e espaços nacionais

Os anos 2020 desenham uma complexa conjuntura na América do Sul. Depois do avanço de governos democrático-progressistas nos anos 2000 e do seu retrocesso em torno dos anos 2010, a conjuntura de 2020 mobiliza contraditórias possibilidades de avanços e retrocessos. A década atual configura um panorama de alta ambiguidade e instabilidade em comparação com as décadas anteriores, que apresentavam tendências mais nítidas. A chamada Onda Rosa atravessa amplos desafios e impasses na atualidade.

A opção por tratar América do Sul e não América Latina, como quase sempre ocorre, desenha uma delimitação precisa, que pretende garantir uma aproximação geográfica-histórico-social-cultural mais afetiva. O contexto regional afeta de maneira profunda a vida político-cultural de cada país sul-americano de modo desigual e combinado. Entretanto, cabe excluir do universo analisado, as três guianas, por sua peculiar inserção histórico-político-social-cultural na América do Sul. Elas tiveram colonialismos e neocolonialismos bem distintos: inglês, holandês e francês, sendo a última até hoje uma colônia. Assim, a análise está endereçada às seguintes nações: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru, Paraguai, Uruguai e Venezuela.

A aproximação geográfico-histórico-social-cultural, mesmo consideradas as diferenças existentes entre os países, possibilita imaginar vivências compartilhadas. Os traços da colonização ibérica (espanhola-portuguesa) e do neocolonialismo, inglês e depois norte-americano, impõem problemas comuns a toda região, vividos e enfrentados de modos distintos em tempos e espaços nacionais. Os processos de construção das nações, desde as independências até a contemporaneidade, com seus avanços e retrocessos, igualmente tecem instantes partilhados, marcados por conjunturas comuns, que englobam todo subcontinente. Independências, ditaduras, neoliberalismos, democracias são exemplos de fases históricas habitadas por todos.

A nomeação de países como democrático-progressistas tem consciência das polêmicas acerca da denominação escolhida. A opção pela denominação deriva da constatação de que todos os governos chegaram ao poder por processos democráticos e que todos eles tiveram em comum um conjunto de políticas públicas progressistas, com destaque para as políticas sociais e as políticas de relações internacionais. A nomeação não desconhece as polêmicas existentes sobre os processos históricos, democráticos ou não, de alguns dos países analisados. Entretanto, não cabe no âmbito do texto tratar pormenorizadamente o desenvolvimento específico de cada nação.

A primeira onda se iniciou na virada do século 21 com a vitória de Hugo Chávez na Venezuela (1999), seguida da eleição de governos democrático-progressistas na Argentina (Néstor Kirchner - 2003 e Cristina Kirchner - 2007), Chile (Michelle Bachelet - 2006), Brasil (Lula - 2003 e 2007 e Dilma Rousseff - 2010 e 2014), Uruguai (Tabaré Vázquez - 2005 e 2015, José Mujica - 2010), Bolívia (Evo Morales - 2005, 2009, 2014 e 2019), Paraguai (Fernando Lugo - 2008) e Venezuela (Nicolás Maduro - 2013). Ficaram fora da primeira onda de governos democrático-progressistas a Colômbia e o Peru.

Dentre as características comuns desses governos se destacam: 1. Chegada ao governo nacional por meio de eleições, superando tentativas anteriores de luta armada para a conquista do poder ou para resistir aos regimes ditatoriais implantados na América do Sul; 2. Florescimento de novas lideranças provenientes de classes e segmentos antes excluídos das vidas políticas nacionais, a exemplo do operário Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), do líder indígena Evo Morales (Bolívia) e das presidentas Michelle Bachelet (Chile), Cristina Kirchner (Argentina) e Dilma Rousseff (Brasil); 3. Políticas sociais de inclusão contrárias à enorme desigualdade existente na região; 4. Políticas externas independentes e não submissas à diplomacia norte-americana; 5. Busca de políticas de integração e cooperação regional, por meio de novas iniciativas como a Unasul ou do fortalecimento e expansão de blocos já existentes, a exemplo do Mercosul; 6. Políticas econômicas diferenciadas, apoiadas em certo nacional-desenvolvimentismo, mas com ambiguidades em relação ao neoliberalismo. O desenvolvimentismo levou alguns governos a certos choques com setores da população: povos originários, comunidades ancestrais e ambientalistas; 7. Apesar das alterações implementadas no âmbito do sistema político terem variado, em todos os países aconteceram mudanças, ainda que em graus muito diferenciados; 8. Ampliação de canais de participação social-político-cultural dos setores populares; e 9. Alterações diversificadas nas políticas voltadas para as culturas.

A contraofensiva conservadora ameaçou o Chile (2010), mas foi revertida em 2014, com a vitória de Michelle Bachelet; avançou com o golpe de novo tipo no Paraguai (2012) e se acentuou com a derrota na Argentina (2015), o golpe de novo tipo no Brasil (2016), a vitória, que se mostrou derrota com a postura de Lenin Moreno, no Equador (2017), a eleição antidemocrática no Brasil (2018), o revés no Chile (2018), o golpe na Bolívia (2019) e a derrota nas eleições no Uruguai (2020). Ainda que o ritmo de alterações tenha variado um pouco de país para país, pode-se traçar tal movimento de ondas de avanços e retrocessos. O ciclo de governos democrático-progressistas parecia liquidado na segunda década do século 21.

Nem todas as derrotas resultaram de eleições perdidas. Golpes políticos, alguns de tipo midiático-jurídico-parlamentar como no Paraguai e no Brasil, outros mais tradicionais como na Bolívia, estiveram entre os recursos manipulados pelas classes dominantes para retomar o poder nacional. A tentativa de golpe na Venezuela não conseguiu derrubar o governo. Mesmo as derrotas eleitorais não foram isentas de medidas antidemocráticas, como aconteceu no caso brasileiro, com a prisão e o afastamento, pretensamente jurídicos, de Lula, candidato na liderança de todas as sondagens eleitorais, e com o abuso no uso de fake news pagas por empresas, em dupla agressão à legislação eleitoral vigente. Ou seja, enquanto todos os governos democrático-progressistas chegaram ao poder via processos democráticos, as classes dominantes recorreram a procedimentos autoritários e ilegais para retomar governos nacionais. O compromisso delas com a democracia sempre foi tênue na América do Sul, enquanto a parte majoritária das esquerdas assumiu atitudes democráticas, o mesmo não ocorreu com as classes dominantes.

O retrocesso político assumiu várias características comuns: 1. Retorno ao poder nacional das oligarquias, que dominavam os governos sul-americanos secularmente; 2. Políticas externas submissas aos Estados Unidos da América; 3. Desarticulação da integração entre países da América do Sul; 4. Descontinuidades das políticas de inclusão social e combate à desigualdade; 5. Retorno radicalizado das políticas neoliberais; 6. Depressão nos canais de participação política; 7. Ampliação do autoritarismo e da violência do estado nacional no trato das demandas populares; 8. Ataques às culturas, censura, desmantelamento da institucionalidade cultural e das políticas culturais, além de agressões ao campo cultural; 9. Perseguição a lideranças e partidos políticos, por meio do uso político-instrumental do tema da corrupção. Tal criminalização atingiu, dentre outros, os presidentes Lula (Brasil), Rafael Correa (Equador), Michelle Bachelet (Chile), Cristina Kirchner (Argentina) e Pedro Castillo (Peru). Ainda que em certos casos a imputação possa ter algum grau de verdade, a articulação tão abrangente indica algo orquestrado politicamente e lembra a operação Condor, criada pelas ditaduras sul-americanas para assassinar seus adversários. Agora o assassinato não é mais físico, mas simbólico, por meio da instrumentalização do poder judiciário e, em especial, da grande mídia e das redes sociais; e 10. Os retrocessos democráticos tomaram uma dimensão abrangente.

A cena pareceu ser redesenhada pelas vitórias eleitorais na Argentina (Alberto Fernández - 2019); na Bolívia (Luis Arce - 2020); no Peru (Pedro Castillo - 2021); no Chile (Gabriel Boric - 2021); na Colômbia (Gustavo Petro - 2022); no Brasil (Lula - 2022) e no Uruguai (Yamandú Orsi - 2025); pelo desempenho das esquerdas no Equador, apesar do revés em eleições presidenciais (2021 e 2025); pelas manifestações populares na Colômbia, no Equador e nas acontecidas no Chile desde 2019, que culminaram na vitória das forças democráticas na escolha da Constituinte (2021).

Mas o novo cenário não se confirmou, pois a atuação dos setores conservadores, inclusive de extrema direita, se fez intensa. O retrocesso político ocorreu em vários países sul-americanos: a confusa atuação e a retirada de Pedro Castilho do poder no Peru (2022); a derrota dos setores progressistas na eleição da Constituinte no Chile (2022); a vitória de Javier Milei na Argentina (2023); a manutenção da direita no Paraguai, com a vitória de Santiago Peña (2023); a reeleição de Daniel Noboa no Equador (2025); a derrota da esquerda nas eleições da Bolívia (2025); além do crescimento de setores políticos de extrema direita em muitos países da América do Sul tornam a conjuntura dos anos 2020 bastante ambígua, problemática e tensa.

O contexto sul-americano em disputa na década de 2020 tem configurações complexas. O mundo parou, quase literalmente, com a pandemia. Ela agravou as condições sociais, econômicas, ambientais, políticas e culturais. Ela desarticulou a vida e as perspectivas, ampliando as incertezas. Ela favoreceu a expansão das desigualdades, já enormes na América do Sul e fortemente amplificadas pelo neoliberalismo. Ele, por características imanentes, produz desigualdades e autoritarismos. Movimentos e governos autoritários proliferam em cenários: internacionais, regionais e nacionais. No Brasil, entre 2019-2022, a conjunção perversa da pandemia com o pandemônio na gestão caótica da saúde, da economia, das condições sociais, do meio ambiente, da política e da cultura teceram uma conjuntura de alta perversidade. A questão da democracia se impõe como vital para toda a América do Sul e todo mundo.

A disputa pela democracia torna-se central. De um lado, forças autoritárias de extrema direita, com nítida postura antidemocrática, e também uma direita mais institucionalizada, que busca confinar a democracia a um regime político elitista de gestão do Estado, com exclusão da participação efetiva dos segmentos populares. De outro lado, os setores progressistas, combinando, de modo contraditório e tenso, concepções instrumentais da democracia com visões mais aprofundadas de democracia, imaginadas não apenas como regime político, mas como modo de organização do Estado e da sociedade para viabilizar a democratização efetiva das relações sociais. O confronto político-social-econômico-ambiental e cultural mobiliza todas essas forças desiguais em uma conjuntura de grande complexidade e instabilidade.

Diversas questões emergem como desafios fundamentais para os governos democrático-progressistas, em um contexto internacional carregado de muitas ameaças, a exemplo das arbitrárias taxações de Trump, que desmoronam as regras internacionais de comércio e de convivência. Uma constelação de temas emerge como imprescindível para manter e ampliar os governos, em conjuntura de alta complexidade. Temas como: 1. construção de projetos nacionais, que constituam blocos históricos capazes de viabilizar e sustentar as transformações sociais almejadas; 2. desenvolvimento de modelos, inclusive econômicos, que permitam a efetiva superação do projeto neoliberal de sociedade; 3. ampliação mais efetiva da cooperação entre os vários países e os governos democrático-progressistas, com trocas de experiências, infraestruturas compartilhadas e programas conjuntos nas mais diferentes áreas da sociedade; 4. maior atenção para problemas e potencialidades ambientais da América do Sul, em um mundo quase em colapso; 5. Enfrentamento das mídias e das redes sociais como componentes básicos para a luta política contemporânea e para a almejada transformação social; 6. visão mais apurada para as vitais conexões entre democracias e culturas.

A luta pela democracia não se dá apenas nas dimensões políticas, econômicas, ambientais e sociais. A disputa político-cultural-ideológica ocupa hoje lugar central, quando se trata de buscar a transformação da sociedade por via democrática, ainda que nem sempre os governos democrático-progressistas estejam preocupados com esses enfrentamentos, tomados por uma perspectiva bastante equivocada. Tais disputas aparecem com grande centralidade no cenário contemporâneo, marcado, a ferro e fogo, pela mobilização de intensas “guerras culturais”, acionadas pela extrema direita.

Mesmo enfrentamentos em aparência distantes são perpassados pela disputa político-cultural-ideológica. A ascensão socioeconômica de aproximadamente quarenta milhões de pessoas no Brasil, entre 2003-2016, quase semelhante às populações da Argentina ou da Colômbia, foi publicizada por narrativas em confronto. Ela pode ser imaginada, por exemplo, através de narrativas culturais-ideológicas conflitantes: 1. como decorrente do mérito pessoal de cada pessoa; 2. como derivada de dádiva religiosa da ajuda de Deus; 3. como resultante de políticas públicas de inclusão social. A disputa de interpretações faz enorme diferença na luta política. Ela é fundamental para a transformação democrática das sociedades sul-americanas.

Outro exemplo da disputa de narrativas acontece em torno da temática da corrupção. O agendamento e uso político sistemático do tema contra lideranças e partidos democrático-progressistas é crucial para elucidar, em parte, os retrocessos ocorridos. Ele traz para a agenda o papel político desempenhado pela chamada “grande” mídia e a recente atuação das redes sociais, com destaque para as big techs. Ainda que a tentação do poder tenha capacidade de corromper alguns políticos democrático-progressistas e parte significativa do campo político, associar intencionalmente a corrupção exclusivamente a somente algumas forças políticas, como faz e fez a “grande” mídia e forte parcela das redes sociais, demonstra a intensa instrumentalização política do tema da corrupção, algo bastante distante de algum interesse genuíno em sua superação. Aliás, o tema da democratização e regulação das mídias e redes sociais não pode ser menosprezado nas disputas em curso na América do Sul. Elas têm sido aliadas umbilicais de autoritarismos, de neoliberalismos e de projetos políticos conservadores das classes dominantes.

A opção de buscar transformações por meios democráticos exige considerar a disputa político-cultural-ideológica como algo imprescindível no processo de construção da nova sociedade. Por certo, o menosprezo por tal dimensão da disputa política da América do Sul do século 21 aparece como um dos fatores que podem fragilizar a atuação das forças democrático-progressistas e colocar em risco a transformação democrática da sociedade na região. Os fatores explicativos dos impasses vividos pela chamada Onda Rosa, sem dúvida, são muitos e diversos. O texto pretendeu assinalar apenas alguns deles e dar ênfase ao diminuto enfrentamento da luta político-cultural-ideológica como dado vital no processo de transformação democrática da sociedade sul-americana.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)