Virgínia Lúcia de Sá Bahia e Theodomiro Romeiro dos Santos tomam posse como juízes do Trabalho.
Isso depois de muita tensão.
A Polícia Federal, e já eram anos 1990, tempo já passado após fim da ditadura, quis complicar.
Foi atrás de arquivos antigos, ficha de Theo do tempo do regime militar.
A ficha não era pequena.
Fosse se basear nela, Theo não tomaria posse. E não era pequena, a ficha.
Quando sentiu o risco de um processo, superintendente recuou.
E os dois tomaram posse.
Claro, a notícia era Theodomiro.
No aquário
Não é toda hora que um “terrorista” assume como juiz.
Anos a fio, e Theo chamado assim.
Mesmo quando da chegada dele, de volta do exílio, em 1985, assim ele era chamado.
Ao menos pelos órgãos de segurança.
Ativos nos primeiros momentos da Nova República.
Meios de comunicação de Pernambuco e do Centro-Sul não deixaram barato.
O novo juiz fez sucesso.
À época, havia um pequeno período de experiência, três dias.
Os novatos ficam na companhia de um colega mais experiente durante as audiências.
Sorte dos dois: ficaram com um conhecido deles.
As salas de audiência, duas por andar, tinham frentes de vidro – os dois chamavam-nas “aquários”.
Do lado de fora, multidão de fotógrafos e de repórteres.
Era Theo sair para tomar um café ou para ir ao sanitário, e era uma chusma de jornalistas, doidos por alguma palavra dele.
Volto: a posse de um “terrorista” não acontecia toda hora.
E curioso: o “terrorista” era inteligente a ponto de passar num concurso difícil como aquele.
Estranho, não?
Um terrorista inteligente.
Ditadura terminara, mas deixara marcas.
Theo até tentava, mas não conseguia passar desapercebido.
Terminava a fase inicial, de experiência, e vida segue.
Vida de juiz.
O juiz substituto não tinha pouso fixo.
Podia ser mandado para qualquer comarca, a depender apenas da necessidade da Corregedoria.
Necessidade decorrente de férias, licenças e afastamento de juízes titulares.
Camila, a filha deles, tinha apenas um ano e dois meses de idade.
Necessitava ainda muito dos cuidados de Virgínia.
Theo, então, tentou um acordo com a Corregedoria.
Virgínia ficaria em Recife e varas mais próximas.
Ele, iria para qualquer lugar, a depender das necessidades da Corregedoria.
Acordo feito, acordo cumprido.
Sertões
Theo cansou de mandar-se para Araripina, Petrolina, Salgueiro.
Enviado para as varas mais distantes do Estado.
Seguia, ele próprio dirigindo, num Chevette velho, comprado havia algum tempo pelos dois.
Se hoje juiz é considerado um dos melhores salários do país, não era bem assim naquele tempo.
Quando os dois assumiram, a remuneração estava bem defasada.
Os dois viviam em aperto financeiro.
Somente um tempo depois, puderam dispensar o velho Chevette, e comprar um carro novo.
Theo sempre gostou de dirigir, desde os tempos da luta revolucionária.
Seguia estradas afora, mesmo com o Chevette velho.
Velho, mas valente.
O motor, firme.
O resto, nem tanto.
Preferia o carro aos ônibus.
Sempre gostou do sertão.
Gostou de conviver com a população de Salgueiro e de Serra Talhada, locais onde mais tarde será juiz titular.
Adorava ouvir as histórias contadas pelo povo, gostava da comida, curtia o pôr-do-sol.
Não dispensava uma buchada de bode.
Nem uma farofa de cuscuz.
Esta, a farofa de cuscuz, era presença obrigatória nos churrascos de Itamaracá, onde tiveram uma casa.
Fazia questão de ele próprio preparar a farofa.
Houve um período de vizinhança de titularidades.
Ele, juiz titular em Salgueiro.
Virgínia, em Serra Talhada.
Os dois pegavam o ônibus leito, em Recife, à noite.
Virgínia descia em Serra Talhada por volta de 1:30, duas horas da manhã.
Theo seguia viagem, coisa de mais uma hora.
Nos braços de Morfeu
Virgínia confessa: tinha vontade de chutá-lo para fora do ônibus.
Conta por quê.
Antes mesmo de saírem da rodoviária, Theo pegava no sono.
Sono profundo.
E ela, cadê sono?
Não conseguia dormir um minuto.
Contando estrelas pelo caminho.
Não havia celular então.
E ela, temerosa de acender a luz de leitura.
A maioria dormia, podia incomodar.
Que raiva!
Ele já tinha o sono fácil.
Não bastasse, antes de entrar no ônibus, tomava uma cervejinha.
Aí, então, ninguém o segurava.
Direto para os braços de Morfeu.
E ela, solitária.
Se Morfeu gostava de Theo, dela nem um pouquinho.
Por mais que ela o tentasse.
Madrugador
Um juiz trabalhador.
Bem preparado e admirado por onde passou.
Célere, nunca perdia de vista haver pessoas por detrás dos processos.
Sabia, um processo não era um processo.
Nele, normalmente um trabalhador necessitado, a reclamar urgência na solução do problema dele.
Rigoroso com o horário de trabalho.
Os dois chegaram à titularidade de varas em Recife.
Ela, na 11ª Vara.
Ele, na 9ª Vara.
As audiências começavam às 8:30 da manhã.
Theo chegava no prédio da Sudene, onde a Justiça do Trabalho funcionava, por volta das seis da manhã.
Exagerado, diriam alguns.
Não precisava tanto.
Precisava.
Chegar bem cedo para adiantar o trabalho, estudar os processos constantes da pauta, despachar, sentenciar.
Não raramente, chegava em casa por volta das 22 horas.
Rara dedicação ao trabalho.
Impressionante capacidade.
Produzia um trabalho de muita qualidade no menor tempo possível.
Raro atrasar a prolação de uma sentença.
Liderança
Firme, sempre.
Mas, muito acessível.
Gabinete, sempre aberto às partes, aos advogados, aos funcionários.
Estes, de modo especial, gostavam muito dele.
Até hoje, falam de Theo com muito carinho.
Advogados, também.
A Associação dos Advogados Trabalhistas de Pernambuco (AATP) o homenageou quando da aposentadoria dele.
Virgínia nunca teve problemas de ciúmes ou desconfianças em relação a Theo.
Confessa, no entanto, a existência de uma rival: a 9ª Vara, com quem disputava cotidianamente o tempo dele.
Foi líder associativo respeitado e combativo.
Atrevo-me a dizer: as convicções dos tempos da luta revolucionária continuavam presentes no espírito dele.
Levava aquelas convicções com ele.
Onde estivesse.
Presidente da Associação Regional dos Magistrados do Trabalho (Amatra 6), por dois mandatos, de 2000 a 2004.
Vice-presidente de Prerrogativas da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), no biênio 1997-1999.
Participou ativamente de lutas a figurar na história da Justiça do Trabalho.
Como a luta pelo fim da representação classista e do nepotismo. Quando, em outubro de 2005, veio a Resolução do CNJ proibindo o nepotismo em todos os órgãos do Poder Judiciário, o TRT de Pernambuco já não tinha nenhum caso dessa natureza.
E isso decorreu da firme atuação da Amatra 6, especialmente quando Theo esteve à frente da entidade.
Durante anos, relata Virgínia, os juízes de Trabalho de Pernambuco lutaram contra o nepotismo, contra a representação classista e pelo direito de o juiz titular da Vara escolher o Diretor de Secretaria.
Este, um cargo então normalmente destinado aos parentes de desembargadores ou políticos, no mais das vezes, pessoas totalmente ignorantes quanto ao funcionamento de uma Vara, desqualificadas para o exercício de função tão importante, situada logo abaixo do juiz.
Revolucionário
Theo foi se tornando uma liderança na categoria.
Em Pernambuco e no resto do país.
Quando, nos encontros regionais ou nacionais, percebiam a presença dele, parecia um pop star.
Um beija-mão sem parar.
Principalmente por parte dos conhecedores do passado político dele, doidos para conhecê-lo de perto.
De cedo, muito cedo, aprendeu a manifestar as opiniões dele de forma inequívoca, de modo firme.
Não raramente, de forma contundente, sincera.
Da militância revolucionária, recolhera uma notável habilidade para a análise política, para descortinar horizontes, penetrar os segredos da conjuntura.
Habilidade reforçada pelo estudo, leitura, pesquisa.
Tais características reforçavam a liderança dele.
Mantinha ótimas relações com os colegas, carinhoso sempre, atencioso.
Não nos enganemos: quando as situações exigiam, batia duro, e aí desaparecia o tom ameno.
Despontava, então, o velho militante.
Em defesa das melhores causas dos juízes do Trabalho, em defesa dos bons serviços à população, em defesa da democracia, sempre com o olhar voltado ao povo brasileiro, aos trabalhadores, razão de ser da Justiça do Trabalho.
Não era pretensioso.
Nunca quis fazer da militância dele nenhum cartão de visitas.
Mas, jamais se recusou a contar a história dele, se provocado por alguém, por qualquer pessoa.
Atendia a todos com a maior boa vontade.
Tinha de tudo.
Jornalistas conceituados.
Pesquisadores, muita gente da Academia.
Ou estudante secundarista fazendo trabalho sobre a ditadura.
A qualquer um, contava tudo.
Não recusava, nem se irritava diante de nenhuma pergunta.
E havia as aparentemente incômodas.
Como a de sempre: por que tinha matado o sargento?
Ele, pacientemente, explicava: reagira a uma prisão absolutamente ilegal, feita por agentes da ditadura, sem qualquer mandado, sem qualquer legalidade.
Ou por que fugira à beira da anistia?
Porque havia o risco de ser morto na prisão.
Ficassem à vontade, perguntassem o que quisessem – sempre agiu assim.
Ao morrer, homenageado pela Amatra 6.
O auditório da entidade recebeu o nome dele.
A existência dele, dedicada ao povo brasileiro, derrotou a falsa ideia do terrorista.
Se quiserem nominá-lo revolucionário, tudo bem.
Ele ficaria feliz.
Na vida, manteve-se revolucionário.
Em tudo.
E assim será sempre lembrado.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros