Economia

O caso brasileiro evidencia uma tendência estrutural da fase atual do capitalismo marcada pela dominância financeira. Historicamente, os bancos centrais adquiriram mais poderes a partir da segunda metade do século 20, em paralelo ao avanço da financeirização

Rovena Rosa/Agência Brasil

A atuação do Banco Central do Brasil (BC) vem ganhando contornos da necessidade de uma disputa pública mais ampla desde o início do terceiro governo Lula. Em um primeiro momento, isso se devia a uma gestão excessivamente conservadora do presidente do BC indicado durante o governo Bolsonaro, Roberto Campos Neto, permaneceu no cargo até o final de 2024, protegido pelo mandato fixo previsto na lei que garante a autonomia da instituição, não podendo ser demitido pelo presidente da República. Os embates frequentes entre o governo e a gestão do BC estavam sendo notados por declarações públicas, entrevistas ou mesmo por vias institucionais. Um exemplo foi a ata da primeira reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) de 2023, que relacionava o aumento das expectativas inflacionárias à incerteza fiscal, mensagem interpretada como pressão velada sobre o governo Lula.

Em 2025, Galípolo assumiu com a expectativa, por parte do governo, de reverter esse quadro. A tolerância no primeiro semestre com a continuidade da política de Campos Neto se devia a alguns pontos específicos, como a dificuldade de reversão de sinalizações indicadas pelo seu antecessor nas atas do Banco Central, que poderiam ser vistas como um ataque à “credibilidade” da instituição. Porém, no segundo semestre de 2025, as taxas dos bancos centrais pelo mundo em queda, inclusive nos Estados Unidos, e o Brasil segue preservando a mesma política conservadora da taxa de juros da gestão anterior, embora por outras justificativas, como a sustentação da taxa de câmbio. Mercados importantes no Brasil, como o imobiliário, estão sofrendo há anos com esse ciclo de alta de juros que dificulta o acesso a direitos básicos defendidos pelo governo, como o acesso à moradia.

O caso brasileiro evidencia uma tendência estrutural da fase atual do capitalismo marcada pela dominância financeira. Historicamente, os bancos centrais adquiriram mais poderes a partir da segunda metade do século 20, em paralelo ao avanço da financeirização. Sua independência tornou-se um marco institucional que permite aos agentes do mercado financeiro pressionarem sobre a política monetária, ao mesmo tempo em que reduz a capacidade de intervenção dos governos, tornando o BC uma espécie de “quarto poder” (POSEN, 1995; RODRIGUEZ, 2024).

Os defensores desse modelo de BC partem do argumento de que, quanto menor a interferência governamental, menor a tendência da política monetária em tolerar uma inflação mais elevada (NORDHAUS, 1994). Nesse quadro, a função primária do BC seria conter a inflação, mesmo que isso implique adotar políticas de juros elevados contrárias à política do governo. Essa lógica se consolidou no Brasil, especialmente após a adoção do regime de metas de inflação, no qual a taxa Selic é tratada como instrumento central para garantir a estabilidade monetária. Como destaca Freitas (2006), medidas institucionais como mandatos fixos para dirigentes reforçam essa autonomia, blindando-os de pressões políticas — como o caso da impossibilidade de Lula demitir Campos Neto em 2023 e 2024.

No entanto, a teoria que sustenta essa independência contém uma contradição central: ao mesmo tempo em que busca excluir a influência do governo, abre maior espaço para a influência do setor financeiro, o que nos leva ao cenário atual do nosso BC. Os bancos centrais se apresentam como núcleos técnicos e racionais do capitalismo, em oposição ao “núcleo político”, mas, na prática, são mais pressionados pelos mercados do que por governos democraticamente eleitos, que exercem uma pressão política em figuras como o presidente atual do BC, Gabriel Galípolo e seus diretores. Suas decisões são monitoradas continuamente pelos agentes financeiros, sob o discurso de credibilidade e transparência. Caso falhem em cumprir seus interesses, podem ser “punidos” pelo mercado, o que limita ainda mais sua autonomia real.

Essa configuração tem implicações distributivas relevantes. A taxa de juros não é apenas um instrumento técnico de política econômica: ela define ganhadores e perdedores na distribuição de riqueza. Quanto mais pobre, maior a probabilidade de estar endividado e, portanto, mais afetado pelo aumento da Selic. O próprio Estado, como grande devedor, transfere recursos públicos ao setor financeiro via pagamento de juros. Em contrapartida, quem lucra é o segmento rentista da economia. Assim, a política monetária impacta diretamente no crescimento econômico, no consumo, no investimento e no emprego.

Além disso, a elevação dos juros pode influenciar processos eleitorais, não tanto por sua eficácia no combate à inflação, mas por esfriar a economia e elevar o desemprego, criando desgaste para o governo em exercício. O BC não controla preços de petróleo ou alimentos, mas pode reduzir o crédito e o investimento. Ao agir dessa forma, sua política atinge a base social do governo sem que a instituição seja responsabilizada pelo resultado: a conta política recai sobre o Executivo.

Parte da própria esquerda, inclusive, concede muito a essa lógica de que inflação só se combate com taxa de juros. A inflação no Brasil não pode ser tratada apenas como problema de política monetária, mas como problema de Estado. Políticas públicas estruturais — como a segurança alimentar, a redução da dependência de preços internacionais e o fortalecimento da agricultura familiar, inclusive iniciativas ligadas ao Movimento Sem Terra (MST) — poderiam atuar de forma mais eficaz sobre determinantes inflacionários de médio e longo prazo. Contudo, a adoção de tais medidas enfrenta barreiras significativas na correlação de forças políticas e econômicas vigente, tornando remota a possibilidade de um redesenho profundo das prioridades nacionais.

Em síntese, o arranjo atual do BC revela não apenas uma mera institucionalidade para o combate à inflação, mas também um mecanismo de poder que acentua a dominância financeira, desloca a disputa distributiva para um campo de difícil acesso pela sociedade civil e fragiliza a capacidade dos governos de articular alternativas mais amplas de desenvolvimento.

De modo pragmático, é improvável que haja reversão do poder conquistado pelos bancos centrais nas últimas décadas. Uma vez concedido esse poder, sua reversão implicaria reações imediatas e retaliações das instituições financeiras nacionais e internacionais. Isso não significa, contudo, que não haja alternativas. Bancos centrais devem prestar contas não apenas aos mercados, mas também aos trabalhadores, ao setor produtivo e à sociedade em geral. Para isso, mecanismos de transparência e instâncias de escrutínio social deveriam integrar seu cotidiano, de modo a expor os custos políticos e distributivos de suas decisões. O discurso de neutralidade técnica, sustentado em modelos complexos e inacessíveis ao público, não pode servir como barreira ao debate democrático. Democratizar o Banco Central significa aproximá-lo da sociedade, tornando explícitas as consequências sociais de sua política monetária. Hoje, a cobrança sobre o BC recai pontualmente em sindicatos e movimentos sociais muito específicos.

Essa responsabilização se torna ainda mais urgente porque, embora governos sejam cobrados em períodos de crise, as políticas dos bancos centrais desempenham papel decisivo, mas nunca são as responsáveis pelas crises. Crises financeiras como a de 2008 evidenciaram que o sistema financeiro — e, por consequência, as autoridades monetárias — têm responsabilidades que não podem ser ignoradas. Se os bancos centrais são céleres em oferecer soluções para crises bancárias e cambiais, por que não são igualmente responsabilizados pelo baixo crescimento, pelo desemprego ou pela estagnação econômica? Sua missão precisa ser redefinida de forma a incorporar explicitamente e prioritariamente objetivos sociais, incluindo o nível de emprego e o crescimento econômico.

O fortalecimento dos bancos centrais, na lógica da financeirização, tem limitado a capacidade de formulação de políticas econômicas coordenadas pelos governos democraticamente eleitos, como estamos vivenciando no terceiro Lula. A política fiscal, cada vez mais subordinada à monetária, perde espaço como instrumento de desenvolvimento. No entanto, é possível conceber arranjos institucionais em que a cooperação entre governo e BC potencialize resultados, como metas de inflação de horizonte mais longo, ajustes temporários durante ciclos de investimento em infraestrutura, ou mesmo o uso de políticas complementares como subsídios estratégicos e preços para bens essenciais. Tais medidas poderiam articular estabilidade monetária com desenvolvimento econômico e social do Brasil.

É importante frisar que o BC não deve ser visto como o vilão em específico. Suas próprias margens de ação foram reduzidas pela volatilidade dos fluxos de capitais, pelas pressões cambiais e pela dinâmica global da financeirização, que enfraquece a soberania do governo na esfera monetária e financeira. Nesse contexto, torna-se fundamental pensar em novos mecanismos institucionais que tornem os bancos centrais menos reativos às pressões do mercado e mais ativos na regulação financeira — com medidas como controle à mobilidade de capitais e restrições mais severas aos fluxos especulativos.

Além disso, não se pode ignorar o papel dos bancos centrais na distribuição da riqueza pública. A atual dinâmica da dívida pública ilustra esse ponto: cada incerteza é imediatamente convertida em prêmios de risco e juros mais altos, aprofundando o comprometimento de recursos futuros com o pagamento ao setor financeiro. Em vez de financiar investimentos públicos, a dívida se converte em canal privilegiado de acumulação rentista, alimentada pelas decisões de política monetária.

Nesse sentido, os bancos centrais tornaram-se uma contradição central das democracias contemporâneas: instituições dotadas de enorme poder político, mas que se escondem atrás de uma retórica tecnocrática para afastar o interesse público. Se o problema da inflação é, antes de tudo, um problema de Estado, não apenas de política monetária, é necessário recolocar os bancos centrais no centro do debate democrático — não como entidades neutras e obscuras, mas como atores que moldam diretamente o presente e o futuro das sociedades.

Rodrigo Siqueira Rodriguez é professor Adjunto da Faculdade de Ciência Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Referências

FREITAS, Cristina Penido. Banco central Independente e coordenação das políticas macroeconômicas: lições para o Brasil. Economia e Sociedade, v. 15, n. 2, p. 269-293, 2006.

NORDHAUS, William D. Policy games: Coordination and independence in monetary and fiscal policies. Brookings papers on economic activity, n. 2, p. 139-216, 1994.

POSEN, Adam S. Declarations are not enough: financial sector sources of central bank independence. NBER macroeconomics annual, v. 10, p. 253-274, 1995.

RODRIGUEZ, Rodrigo Siqueira. A natureza da independência do banco central: antecedentes históricos e ascensão na era da financeirização. Brazilian Journal of Political Economy, v. 44, n. 3, p. e243575, 2024.