Cultura

A avaliação positiva apenas anota que as políticas culturais formuladas e implantadas no século 21 no Brasil possibilitaram avanços importantes, mesmo que não suficientes, nas democratizações das culturas no país

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Uma das questões primordiais das políticas culturais na atualidade, no mundo e no Brasil, é sua relação com as democracias. Tais enlaces nada têm de simples. Nem as democracias desenvolvem sempre políticas culturais ativas e democráticas, nem as culturas e as políticas culturais possuem sempre uma perspectiva democrática, pois existem culturas e políticas autoritárias e opressoras. Cabe, por conseguinte, constatar a complexidade das conexões entre políticas culturais e democracias, bem como afirmar que tais enlaces são imprescindíveis para a existência tanto de políticas culturais substantivas, quanto de democracias consolidadas.

Em todo planeta e no Brasil as democracias estão sob ataque constante: do ódio da extrema direita; das desigualdades desenvolvidas pelo capitalismo; da destruição de direitos realizada pelo neoliberalismo; dos desastres ambientais e climáticos produzidos pela ganância de lucros; da violência do crime organizado, especial do narcotráfico; da globalização com suas imposições monopolistas; da hegemonia cultural das big techs e redes sociais; da crise da democracia liberal-representativa, que não consegue cumprir suas promessas de governo do povo para o povo; das dificuldades de emergência de novas modalidades de democracias: enfim, de um conjunto de fenômenos, que debilitam a radicalidade dos processos democráticos mundo e Brasil afora.

As culturas, por sua vez, sofrem com tentações de monoculturas intentadas pelos meios de produção e difusão de bens simbólicos; mercantilizações e monetizações capitalistas das culturas; tentativas

de redução das culturas à economia criativa; carências de apoio financeiro; agressões às diversidades e identidades culturais; concepções elitistas de culturas; descasos com modalidades alternativas e populares de culturas; crise das utopias, que impactam a capacidade das culturas de criar, inovar e inventar, inclusive novos mundos: enfim por todos os dispositivos de depressão das culturas e pela ausência de políticas de desenvolvimento democrático das culturas.

As articulações entre políticas culturais e democracias podem ser observadas por meio de diversificados procedimentos. Impossível no texto dar conta de muitos deles, dada suas inúmeras possibilidades. Necessário, portanto, escolher caminhos. Dois deles podem ser nomeados como democratizações das culturas e culturalizações das democracias. Eles funcionam como chaves analíticas para colaborar no processo de desvelamento dos complexos relacionamentos acontecidos entre políticas culturais e democracias no Brasil hoje.

As democratizações das culturas compreendem um conjunto amplo de dispositivos que buscam democratizar distintos registros das culturas. Apesar da ambiguidade de sentido da expressão “acesso à cultura”, pois todos os seres humanos possuem e vivem imersos em cultura, ela pode ser ressignificada como acesso a outras culturas para além da cultura de pertença do indivíduo, grupo, comunidade ou classe social. Acesso à cultura, assim redefinida, significa democratizar as culturas então acessadas. Some-se outros processos: ampliar a noção de culturas, incorporando distintas modalidades de culturas; acrescer agentes, comunidades, grupos e classes sociais como sujeitos culturais; alargar os territórios abrangidos pelas políticas culturais; respeitar diversidades e identidades próprias das culturas; diversificar os mecanismos de apoio e financiamento das culturas; coletivizar a organização, gestão, produção e curadoria culturais; socializar a participação nas políticas culturais: todos esses e outros dispositivos conformam procedimentos de democratizações das culturas.

Em uma avaliação rápida, pode-se constatar que desde a gestão Lula-Gil, tais dispositivos, com altos e baixos, têm sido desenvolvidos, com exceção dos períodos Temer e Messias Bolsonaro, que promoveram enormes retrocessos democráticos e culturais. Ainda que os patamares de desenvolvimento tenham variado em cada um dos dispositivos específicos, no geral eles propiciaram relevantes processos de democratizações das culturas no Brasil, o que não significa que muito ainda precise ser feito. A avaliação positiva apenas anota que as políticas culturais formuladas e implantadas no século 21 no Brasil possibilitaram avanços importantes, mesmo que não suficientes, nas democratizações das culturas no país.

Seu caráter combinado e desigual, entretanto, requer apontar dimensões que necessitam ser mais cuidadas. Por exemplo, as democratizações do apoio e financiamento continuam refém das leis de incentivo à cultura, como um dos maiores mecanismos de fomento no Brasil. As tentativas de suas democratizações são, sem dúvida, importantes, mas não suficientes para democratizar, de modo profundo, o financiamento. Ele reivindica a conformação de um complexo modelo de múltiplos mecanismos, que deem conta da complexidade das culturas. Sem isso, dificilmente vai se alcançar um patamar que seja radicalmente democrático no fomento.

Um dos mais notáveis dispositivos de democratizações implantados nos governos petistas foram os processos participativos em muitas áreas sociais, inclusive nas culturas, por meio de conferências, colegiados, conselhos e outros procedimentos. Eles requerem, além de tempo e experiência para se desenvolverem e consolidarem, uma expressa explicitação de seu imanente caráter de instantes de democracia participativa. Ou seja, serem compreendidos como partes do processo de democratizações da sociedade, por via do fortalecimento da democracia participativa, dado ser ela imprescindível para radicalizar as democratizações da sociedade brasileira.

Se as democratizações das culturas apresentaram avanços importantes, o mesmo não acontece com as culturalizações das democracias. Diferente do eixo anterior, que se volta para o âmago das culturas, ainda que tomadas em sentido mais amplo, as culturalizações dialogam inevitavelmente com toda sociedade. Ou seja, elas precisam agir para além do âmbito singular das culturas. Elas requerem, lembrando Victor Vich, “desculturalizar a cultura”, no sentido de exercer, de maneira mais plena, as transversalidades inerentes à própria cultura. O recurso às transversalidades, por sua vez, guarda íntima conexão com a pretensão de centralidade da cultura no Estado e na sociedade, sempre desejada pelos fazedores de cultura. Para buscar a centralidade almejada, a cultura se vê compelida a realizar sua transversalidade com as democracias e os desenvolvimentos.

As culturalizações das democracias envolvem desenvolver dimensões como: culturas democráticas, culturas cidadãs, culturas políticas democráticas, culturas de paz, culturas identitárias, culturas criativas, inventivas e inovadoras. Em tal horizonte, as políticas culturais não podem estar direcionadas e focadas somente ao campo cultural, nem podem ter como responsáveis apenas gestões e movimentos sociais dedicados às culturas. As culturalizações exigem políticas culturais mais abrangentes, voltadas para a sociedade e assumidas por todo governo. Elas abrangem modos de vida, comportamentos, concepções de mundo, imaginários sociais, sensibilidades, valores sociais etc. Daí a necessidade imanente das transversalidades. Sem elas, as políticas culturais não são capazes de atingir a amplitude societária e, desse modo, desenvolver satisfatoriamente as culturalizações das democracias.

As culturas democráticas, por exemplo, demandam a prevalência de valores democráticos no ambiente social, tais como: liberdades, pluralidade, respeito às diferenças, valorização de conversas e negociações, legitimidade dos conflitos sociais, diversidade cultural etc. A conformação de culturas democráticas requer o envolvimento da sociedade política e da sociedade civil, com seus distintos segmentos, instituições e forças políticas. Assim, a confecção das culturas democráticas precisa ser assumida pela sociedade e pelo Estado. Nenhuma área social sozinha dá conta da extensão exigida pela tarefa, mas as culturas podem contribuir muito, ao manusear com dimensões simbólicas, imaginários sociais, concepções de mundo, modos de vida, comportamentos, sensibilidades, afetos, emoções etc. Assim, torna-se urgente que o campo e as políticas culturais se comprometam, de modo ativo e consciente, com a conformação das culturas democráticas.

Outro exemplo, por demais atual, das culturalizações das democracias, responde pelo nome de culturas de paz. Elas dialogam com um dos fenômenos sociais mais trágicos da atualidade internacional e nacional: a violência. O genocídio de Gaza escancara a cultura da violência, promovida por potências ocidentais e por suas indústrias armamentistas. O recente episódio das mais de cem mortes no Rio de Janeiro expõe a truculência de modo gritante como mecanismo de resolução dos problemas sociais no Brasil. As milícias e os narcotraficantes produzem culturas de violência, que se configuram como visceralmente antidemocráticas. A resposta do estado e da

sociedade civil não pode ser o mero recurso à violência, inúmeras vezes acontecida à revelia da lei, como se os fins justificassem meios inadequados e ilegais. Um dos postulados mais fundamentais da democracia é o reconhecimento da legitimidade de conflitos sociais, respeitadas as leis, que necessitam ser justas, para garantir suas resoluções através do recurso aos diálogos e negociações. Ou seja, a democracia requer paz. Sem culturas de paz, a democracia está em constante e iminente perigo.

Não se trata tão somente de desvelar os intricados enlaces entre políticas culturais e democracias, mas de ir adiante para enfrentar uma das questões cruciais de nosso tempo: como as políticas culturais podem contribuir para as democracias, visando sua ampla defesa, crítica, consolidação e aprofundamento. Nesse horizonte, as políticas culturais precisam superar a postura meramente bancária, equivocadamente dita democrática, de apenas assegurar e colocar recursos à disposição para todos desenvolverem as culturas, sem considerar o caráter democrático ou não de atividades, manifestações e produtos. Uma pergunta vital precisa ser arremessada às políticas culturais: cabe aos Estados, às sociedades civis e às políticas culturais democráticas apoiar, sem qualificar: culturas autoritárias, machistas, racistas, homofóbicas, xenofóbicas e outras, que discriminem e oprimam indivíduos, classes sociais, comunidades, grupos, faixas etárias, etnias, regiões de origem, pessoas com deficiências etc? As políticas culturais e as culturas podem ser omissas frente aos desafios democráticos que vive o mundo e o Brasil?

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)