Economia

Em quatro décadas, este modelo foi decisivo para aumentar em 45% o rendimento do 1% mais rico do mundo e concentrar US$ 42 trilhões no topo da pirâmide social, valor equivalente a 20 vezes o PIB do Brasil em 2024

Mais do que investigação exemplar, a liquidação do Banco Master e a prisão de seu dono, Daniel Vorcaro, nos permitem conhecer a complexa anatomia do crime organizado e a sua penetração nos mais variados segmentos sociais. O perfil dos acusados de comandar o maior crime ao sistema financeiro nacional é muito diferente do estereótipo permanentemente alimentado por operações espetaculares, macabras e ineficientes, como foi a recente chacina no Complexo do Alemão, comandada pelo governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro.

Desta vez, os ternos cortados sob medida, os sapatos italianos e os endereços mais badalados do “jet set” nacional ocuparam o lugar dos jovens de camisetas surradas e chinelos de dedo, que ostentam fuzis nas vielas da periferia e tiranizam as comunidades. Daniel Vorcaro é de outra turma. Recentemente, comprou a mansão mais cara já negociada em Orlando, nos Estados Unidos, por US$ 37 milhões e possuía uma frota de aviões, como o jato Falcon 7X, estimado em cerca de R$ 200 milhões. Sua fortuna foi construída por meio de um combo criminoso completo de fraudes financeiras e corrupção de pessoas em posições estratégicas, com poder de facilitar e/ou fazer vistas grossas para a emissão industrial de títulos de créditos falsos e venda de carteiras inexistentes.

A construção meteórica de fortunas como a de Vorcaro é uma das características mais marcantes do período de hegemonia neoliberal, que construiu uma arquitetura adequada para a extração da riqueza social, cujos pilares são: a desregulação, a privatização e a financeirização da economia. Em apenas quatro décadas, este modelo foi decisivo para aumentar em 45% o rendimento do 1% mais rico do mundo e concentrar US$ 42 trilhões no topo da pirâmide social (Oxfam, 2023), valor equivalente a vinte vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2024.
Para erigir esta sociedade hiper-desigual, foi preciso contar com uma vasta rede de colaboração e proteção atuando para afastar obstáculos e criar facilidades e o caso de Daniel Vorcaro é bom exemplo.

A rede de apoio
Campos Neto foi presidente do Banco Central de 28 de fevereiro de 2019 até 1º de janeiro de 2025. Membros do Fundo Garantidos de Crédito (FGC) afirmam ter enviado diversos alertas ao BC e representantes de grandes bancos, que financiam o FGC, teriam procurado diretamente a direção da autarquia. Segundo a Bloomberg, algumas dessas conversas ocorreram pessoalmente com o então presidente do BC.

Apenas em dezembro de 2024, alguns dias antes do final do seu mandato, Campos Neto convocou os dirigentes do Banco Master para uma reunião de emergência para tratar o assunto; Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal e controlador do Banco Regional de Brasília. As investigações revelam seu empenho em “ajudar” o Banco Master nas suas dificuldades de liquidez, mesmo ao custo da saúde financeira do banco estatal. Na operação, o BRB desembolsou R$ 12,2 bilhões em ativos que podem substituir o gelo no uísque, de tão frios. O ex-presidente do BRB, Paulo Henrique Costa, afirmou que o governador interferia em tudo no banco e que ele tinha sempre que “dar satisfações” a Ibaneis sobre todas as decisões; Ciro Nogueira, senador e presidente do Progressistas, foi o ministro da Casa Civil no Governo Bolsonaro. Aparece em vários momentos defendendo os interesses do Banco Master. Visto, junto com Antônio Rueda (presidente do União Brasil), como o principal articulador político da compra feita pelo BRB, apresentou uma Emenda Constitucional para quadruplicar a garantia do Fundo Garantidos de Crédito (FGC) para R$ 1 milhão, que logo passou a ser chamada de “Emenda Master”. Quando ministro de Bolsonaro evitou a instalação de uma CPI que investigaria as suas operações, mesmo que houvesse assinaturas suficientes para a sua instalação. A dupla Ciro Nogueira e Antônio Rueda foi decisiva para a aprovação do PL da blindagem dos parlamentares e dos presidentes dos partidos, como são ambos. Hoje, podemos afirmar que foi uma ação preventiva de proteção.

Campos Neto, Ibaneis Rocha, Ciro Nogueira, são pessoas que ao ocuparem cargos relevantes agiram de forma decisiva para que esse escândalo fosse tão longe. Devido a ação e/ou inação desses e tantos outros personagens, tornou-se possível um volume tão desproporcional de títulos fraudulentos: detentor de apenas 0,57% dos ativos do sistema financeiro, a liquidação do Master deverá absorver cerca de R$ 45 bilhões (1/3) dos recursos disponíveis no FGC. Caberá às investigações descobrir o papel de cada um, se agiram de forma dolosa - quando o agente atua com intencionalidade -, ou de forma culposa - quando o resultado danoso não é desejado, mas acontece.

É fundamental entender que este episódio não é um evento isolado. A liquidação do Banco Master, a Operação Carbono Oculto e a recente Operação Poço de Lobato (Grupo Refit), mostram o quanto a fragilidade na fiscalização, as brechas na legislação e a ausência de um Sistema Nacional de Cooperação, um modelo permanente de articulação entre os diferentes setores do Estado – federal, estaduais e Ministério Público – que fortaleça o trabalho de inteligência e prevenção, facilita a ação do crime organizado. A insistência do relator do PL Antifacção e de parte significativa no Congresso em não fazer avançar a integração das ações do Estado contra o crime organizado, mostra que o caldo de cultura no qual cresce a “economia bilionária do crime” pode ser visto como parte do trabalho de uma complexa rede de apoio e proteção de agentes políticos, que transformaram o discurso neoliberal numa arma apontada contra a sociedade. A própria justiça age de forma mais garantista quando se trata do andar de cima, como a soltura de Daniel Vorcaro, depois de apenas doze dias, é mais um exemplo. Entender as relações de poder e os interesses beneficiados pelas políticas de desregulação, privatização e financeirização da economia é fundamental para não repetirmos o personagem do romance David Cooperfield, de Charles Dickens “eu via a colheita, mas nunca tinha pensado na sementeira”.

Gerson Almeida é sociólogo