Internacional

O que testemunhamos hoje é a ascensão de governos de variados espectros da direita, unidos por uma submissão canina aos interesses de Washington e a adesão dogmática ao ideário neoliberal

Se ao alvorecer do século 21 a América Latina navegava as águas esperançosas da chamada “Onda Rosa”, com governos progressistas buscando, ainda que timidamente, reduzir as seculares desigualdades regionais, o cenário atual desenha-se com tintas muito mais sombrias. O que testemunhamos hoje é a ascensão de governos de variados espectros da direita, unidos por uma submissão canina aos interesses de Washington e a adesão dogmática ao ideário neoliberal. Mais grave ainda é a constatação de que, se o final da década de 1990 parecia apontar para a consolidação democrática na região, a tônica contemporânea é o retrocesso institucional e a erosão das garantias civis.

Essa reconfiguração geopolítica não ocorre no vácuo; ela responde diretamente à nova (e agressiva) política dos Estados Unidos para o hemisfério. A vitória de Donald Trump injeta um dramatismo sem precedentes nesta conjuntura. Os Estados Unidos deixam de lado as sutilezas diplomáticas ou as táticas de soft power para voltarem a encarar a América Latina estritamente como seu “quintal”, num revival anacrônico e perigoso da política do Big Stick. A interferência indireta, via lawfare ou pressões econômicas das últimas décadas, cede espaço a uma forma truculenta de imperialismo de ação direta. O cerco militar à Venezuela, com o envio ostensivo de navios de guerra, e o bombardeio aleatório de embarcações pesqueiras – resultando no assassinato sumário de suas tripulações sob o pretexto cínico da “guerra às drogas” – inauguram um novo e sangrento capítulo desta escalada.

Javier Milei e Nayib Bukele emergem, neste cenário, como os avatares mais radicais do avanço reacionário. Milei apresenta-se como um bufão anarcocapitalista, sem um projeto nacional próprio, sua gestão é como uma performance grotesca que disputa o posto de maior subserviência a Trump. Já Bukele, embora partilhe da mesma matriz neoliberal, optou pela via da autocracia: desmantelou a independência dos poderes e instaurou um estado policial que promove o encarceramento em massa de sua população, vendendo a paz dos cemitérios como modelo de sucesso.

Diante destas questões, quais são as perspectivas e desafios da esquerda? O momento histórico exige muito mais uma postura de trincheira e resistência do que de grandes avanços ofensivos. O imperativo é preservar posições e impedir novos retrocessos civilizatórios. A via revolucionária, que outrora inflamou o imaginário latino-americano, não se coloca no horizonte imediato. Seus remanescentes, por vezes distantes de um socialismo democrático, já não irradiam modelos capazes de inspirar novos projetos transformadores na região. Cuba resiste, com doses de heroísmo, mas enfrenta uma situação prolongada e dolorosa, cujo futuro permanece incerto. A Venezuela, por sua vez, imersa em crise social e econômica profunda, vive uma encruzilhada dramática: além do estrangulamento imposto por sanções, encara a ameaça real de uma intervenção militar direta dos Estados Unidos.

Em meio a este cenário desfavorável, o Brasil de Lula e o México de Cláudia Sheinbaum, sob a bandeira do Morena, simbolizam as experiências mais sólidas de uma esquerda democrática e popular. A Colômbia de Gustavo Petro também merece menção, representando uma tentativa corajosa de mudança, ainda que cercada por condições institucionais e correlações de força muito mais adversas do que seus pares regionais.

O governo da presidenta Claudia Sheinbaum no México tem sido marcado por avanços sociais significativos, dando continuidade às políticas de bem-estar de López Obrador, e por uma experiência inovadora de democratização do Judiciário. Sua postura tem sido altiva frente as pressões de Trump, como no episódio que envolveu a soberania no Golfo do México. Contudo, não podemos fechar os olhos para os sinais de alerta: os recentes protestos radicalizados, protagonizados por uma parcela da “Geração Z” capturada pelo discurso da extrema direita, mostram que, mesmo com o governo tendo índices de aprovação na casa de 70%, a disputa ideológica está longe de ser vencida.

Ao sul, o governo Lula reveste-se de uma importância que transcende a administração pública; ele atua como um dique de contenção, um freio de arrumação necessário ao avanço desenfreado da extrema direita no cone sul. A gestão petista não é apenas sobre reconstrução nacional, mas sobre a sobrevivência da democracia na região. Neste sentido, a reeleição de Lula em 2026 deixa de ser uma mera disputa eleitoral para ganhar um caráter estratégico fundamental, definindo se o Brasil continuará a ser um polo de resistência ou se sucumbirá novamente às trevas do autoritarismo.

Portanto, nesta conjuntura complexa, a luta anti-imperialista e a defesa intransigente da soberania nacional ganham uma centralidade renovada. Não há saídas nacionais isoladas. A esquerda latino-americana precisará investir, mais do que nunca, na articulação de movimentos transnacionais, seja fortalecendo os mecanismos de integração existentes, seja criando novos espaços que consolidem a resistência popular. Apenas uma América Latina unida poderá fazer frente a recrudescimento imperial e construir um futuro onde a autonomia não seja apenas uma palavra de ordem, mas uma realidade política.

Erick Kayser é historiador e Secretário-geral do PT de Porto Alegre.